Em 2020, é importante trabalhar por um Brasil que não mate tanto
Direitos humanos não são "direitos dos manos" ou de "humanos direitos". Essas são definições fundadas em preconceitos, que têm o objetivo de distorcer seu significado para enfraquecer o acesso a eles. A universalidade é, justamente, uma das principais características dos direitos humanos: todos somos sujeitos de direitos. São garantias essenciais para a vida, por isso, devem ser protegidos e defendidos por Estados e sociedades. Deveriam valer tanto -e igualmente- para a população carcerária quanto para o presidente Jair Bolsonaro e sua família, e serem respeitados tanto no Morumbi quanto em Paraisópolis, bairros vizinhos da capital paulista que sintetizam o abismo da desigualdade no Brasil. Os moradores do Morumbi vivem em média 10 anos a mais que do que aqueles que moram em Paraisópolis.
Os direitos humanos deveriam ser prioridade em qualquer governo. Mais que isso, teriam de ser garantidos a todos. Não é o que acontece no Brasil quando, por exemplo, um grupo populacional está mais sujeito à morte do que outro: a cada 100 pessoas assassinadas, 75 são negras, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019, sendo os jovens negros os mais suscetíveis à violência letal. A taxa de homicídios contra a população negra cresceu 33,1% enquanto a de não negros cresceu 3,3%. Entre as mulheres, são as negras que mais morrem de forma violenta (66%, em 2017). Quando há vítimas em intervenções policiais, 74,5% são negras (2017 e 2018), assim como os policiais negros também são os mais assassinados (51,7%), mesmo sendo minoria no efetivo de policiais.
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O Brasil tem falhado na defesa dos direitos humanos da população negra. Não adianta celebrar a queda no número de homicídios —como se fosse resultado das ações do ministério de Sergio Moro e do governo Bolsonaro— e ao mesmo tempo estimular uma ação violenta de policiais nas favelas sob justificativa de combate ao crime organizado, sobretudo estando consciente de que quem mais morre são os jovens negros, como sempre; não dá para flexibilizar o porte de armas, fazer campanha pela excludente de ilicitude no pacote anticrime ou posar com arminha se não mudar o contexto que vulnerabiliza essas vidas. O mesmo se dá em relação aos indígenas, aos campesinos, aos sem teto, aos LGBT e às mulheres. Nossos índices são inaceitáveis.
O Brasil precisa de políticas públicas específicas para esses grupos populacionais antes de comemorar a chegada de 2020 -de olho em 2022. O programa-piloto "Em Frente, Brasil", do Ministério da Justiça, foi implementado nos municípios de Ananindeua (PA), Cariacica (ES), Goiânia (GO), Paulista (PE) e São José dos Pinhais (PR). Foram escolhidos pelo número de homicídios dolosos, situação fiscal do estado e comprometimento das gestões municipal e estadual, segundo documento obtido pela coluna via Lei de Acesso à Informação (o ministério não especificou o que significa "comprometimento"). Trata-se de uma "ação policial orientada por planos pontuais de desarticulação dos grupos criminosos e da criminalidade profissional, pela identificação de suspeitos contumazes e a intervenção estratégica contra eles, de forma coordenada, articulada e integrada" entre União, estados e municípios. "A atuação será feita por operações integradas, choque operacional, forças-tarefa e intervenções nos mercados de fomento aos crimes contra o patrimônio", informa o MJ. Para alcançar o objetivo do projeto, o ministério afirma usar de ações de "prevenção socioeconômica e repressão qualificada, formatadas em uma arquitetura de governança e gestão interministerial, interfederativa e multiagencial".
Há, no entanto, alguns problemas relacionados ao projeto. Um deles é o fato de que a repressão à base de operações policiais tem reproduzido o trágico destino brasileiro de desprezar a vida negra. É o que tem se praticado desde o descobrimento do Brasil, de diferentes modos. As evidências de que esse modelo de intervenção policial não funciona são inúmeras no laboratório montado no Rio de Janeiro pela intervenção federal e amplificado pelo governador Wilson Witzel: nunca a polícia matou tanta gente (pobres e negros). Em São Paulo, a tragédia de Paraisópolis demonstrou como pode ser letal o desprezo por determinadas vidas. "Testemunhamos em 2019 um crescimento exponencial de demandas e denúncias", revela Ana Amélia Mascarenhas Camargos, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, em artigo na Folha, nesta quinta (2).
O que o país precisa é de políticas que protejam essa população e não de mais ações repressivas. Necessitamos investir em inteligência policial, planejamento e prevenção. Precisamos que se atue contra as milícias, diminuir a taxa de encarceramento, que só contribui para a violência e não o contrário, entre outras ações. Em 2020, é importante trabalhar por um país que não mate tanto. Quando todos tiverem acesso aos direitos fundamentais básicos, independente de cor, raça, classe social e credo, podemos comemorar. Direitos humanos se referem a liberdade, igualdade e dignidade. Não são fruto de "merecimento" ou "privilégio" de ninguém. Por enquanto, não há o que celebrar. Deus (para quem acredita que ele existe) está vendo.
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