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Maria Carolina Trevisan

Ódio em discurso de Bolsonaro pode virar política de extermínio e prisão

Maria Carolina Trevisan

29/11/2019 06h30

Presidente Jair Bolsonaro – Foto: Eduardo Anizelli/ Folhapress

O reiterado discurso de ódio propagado e apoiado por autoridades bolsonaristas leva a que mais pessoas se sintam à vontade para expressar raiva e desprezo contra determinados grupos populacionais. As declarações sistemáticas que normalizam práticas autoritárias abrem espaço para atitudes arbitrárias, como a prisão de brigadistas no Pará; para o uso abusivo da força, que fez com que a letalidade policial alcançasse recorde no Rio de Janeiro, com 1.534 mortes, a maioria negras; e para legalizar decretos e projetos de lei que atentam contra o direito à vida, como a insistência em impor a excludente de ilicitude para militares e policiais.

Ao demonstrar apreço pela política da bala, o governo Bolsonaro funciona como um aval para que outras autoridades adotem comportamentos semelhantes e criem na sociedade o sentimento de que essas práticas estão permitidas e respaldadas. O risco é que povos indígenas podem pagar com a extinção. Negros, com a vida. Perdemos todos nós enquanto a democracia vai definhando.

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Nesta quarta, 27, o governo Bolsonaro deu nova demonstração de afeição pela ira. Seu secretário de Cultura, Roberto Alvim, nomeou o jornalista Sérgio Camargo como presidente da Fundação Palmares, órgão responsável por promover a cultura afro-brasileira e implantar políticas públicas que ampliem a participação da população negra nos processos de desenvolvimento do país. Alvim ignorou atributos técnicos e privilegiou a religião dos novos integrantes da Cultura.

Com essas atitudes, o recado do governo federal é transparente: tudo o que possa ser classificado como "de esquerda" será destruído sem pudor – ou responsabilidade. Não é racional. É o que cabe na cegueira alimentada pela cólera. Na esteira desse aniquilamento estão a defesa da Amazônia, as questões de gênero, a liberdade religiosa, as políticas reparatórias, o enfrentamento ao racismo, a busca por igualdade, os direitos humanos.

A nomeação de Camargo gerou um mal-estar maior pela contradição que representa seu perfil na função de presidente da Palmares. Sua raiva é tão intensa que ele chega a ofender a memória de Marielle Franco. Como cristão, não sabe que devemos respeito aos mortos? Sabe. Mas desdenha. Porque Marielle é símbolo. Em sua página no Facebook, ele nega a negritude da vereadora, a chama de "mulata" – um termo reconhecidamente machista -, diz que seus admiradores estão "na biqueira ou nos presídios" e afirma que Marielle é "um exemplo do que os negros, e por extensão os brasileiros, não devem ser". Ofende sua memória, sua companheira, sua mãe, sua filha, seu pai.

Camargo incita o ódio a artistas e jornalistas e quer o fim do movimento negro, que ele acusa de piorar o racismo. Afirma que "não somos um país negro". Então, por que aceitou presidir uma instituição que é resultado das demandas do movimento negro e cuja função é valorizar a cultura afro-brasileira, ampliar o acesso da população negra a direitos e reconhecer terras quilombolas? "Foda-se a cor da sua pele", escreveu Camargo.

Site da Fundação Palmares é retirado do ar e documentação pode ser perdida

Foto: reprodução Facebook

No mesmo dia em que foi anunciada a nomeação de Camargo, o site da Fundação Palmares foi retirado do ar. "Até ontem, constavam no site da instituição os nomes de 3.386 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação, além de 192 certificações em análise e 38 comunidades esperando a visita técnica do órgão. Infelizmente, ao final do mesmo dia em que foi anunciada a nomeação de Sérgio Camargo, o site da Fundação já não estava mais disponível, o que traz vivo temor sobre a segurança da grande massa de documentação acumulada pela instituição", denuncia nota do núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que também alerta para a falta de atributos técnicos e conhecimento histórico para ocupar o cargo.

O Coletivo de Entidades Negras (CEN) manifestou repúdio pela escolha de Camargo porque o jornalista "se opõe às funções do órgão para o qual foi nomeado" e diz que entrará com ação judicial contra ele por improbidade administrativa caso não renuncie ou seja exonerado.

Sérgio Camargo conseguiu arranjar encrenca também com sua própria família. O músico e produtor cultural Oswaldo de Camargo Filho, conhecido como Wadico Camargo, seu irmão, rechaçou a escolha de Sérgio para o cargo. "Tenho vergonha de ser irmão desse capitão do mato. Sérgio Nascimento de Camargo, hoje nomeado presidente da Fundação PALMARES", escreveu Wadico em seu perfil no Facebook. Os dois são filhos de Oswaldo de Camargo, poeta, ficcionista, crítico, historiador da literatura e um dos mais destacados escritores negros das últimas décadas. Aos 83 anos, Oswaldo pai deve sofrer com tudo isso. Em sua escrita delicada, exalta a negritude, critica, por exemplo, a maneira como é narrada a abolição. No poema "Em maio", do livro "O Estranho" (Roswita Kempf, 1984), escreve:   

"Já não há mais razão para chamar as lembranças e mostrá-las ao povo em maio. Em maio sopram ventos desatados por mãos de mando, turvam o sentido do que sonhamos. Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça e desce às praças das bocas entreabertas e começa: "Outrora, nas senzalas, os senhores…" Mas a Liberdade que desce à praça nos meados de maio, pedindo rumores, é uma senhora esquálida, seca, desvalida, e nada sabe de nossa vida. A Liberdade que sei é uma menina sem jeito, vem montada no ombro dos moleques ou se esconde no peito, em fogo, dos que jamais irão à praça. Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes e seu grito: "Ó bendita Liberdade!" E ela sorri e se orgulha, de verdade, do muito que tem feito!"

Em vez de prestar respeito à obra, história e trajetória do pai, Sérgio Camargo deseja em seus posts uma "boa noite opressora".

Jair Bolsonaro é denunciado no Tribunal Penal Internacional

Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana denuncia ameaças  – Foto: Victor Moriyama/Instituto Socioambiental (ISA)

Diante das ameaças e incitações ao ódio expressadas pelo governo Bolsonaro e direcionadas aos povos tradicionais e indígenas, a Comissão Arns e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) denunciou o presidente por incitar o genocídio e promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas do Brasil. O documento, que reúne evidências que podem configurar crimes contra a humanidade, foi encaminhado à procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional, Dr.ª Fatou Bensouda, que solicitará informações ao Estado e outras fontes para avaliar a abertura de uma investigação. Se considerar que há base, um inquérito poderá ser instaurado. "Queremos que a procuradora preste atenção para o cenário gravíssimo de violações e que ponha fim ao ciclo de incitação à violência", afirma Eloísa Machado, uma das advogadas da ação. "A supervisão internacional é essencial para que se tenha uma investigação razoável."

De acordo com Eloísa, caso a investigação seja aceita, haverá todo o processo. Se for comprovada a incitação ao genocídio indígena, o presidente pode sofrer pena de prisão. É a primeira vez que o Brasil passa por uma situação como essa. "É intolerável o cenário de incitação à violência que pode levar ao extermínio dos povos indígenas, a maiores conflitos no campo com garimpeiros e grilagem." A comunicação reuniu pelo menos 33 atos que compõem esse quadro de incitação ao extermínio, 20 deles são medidas tomadas pelo presidente, segundo a denúncia.

Os povos indígenas também estão se alertando para o agravamento das violações, que incluem violência. Na semana passada, o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana, que aconteceu na comunidade Watoriki, na região do Demini, na Terra Indígena Yanomami, reuniu 116 lideranças de 26 regiões, representando 53 comunidades de todo o território. Em carta endereçada a autoridades do Executivo e Judiciário, indígenas afirmam que há presença de garimpeiros em suas terras, que o governo prometeu proteger. 

Veja o momento em que os brigadistas de Alter do Chão (PA), presos arbitrariamente, foram libertados, nesta quinta (28):

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.