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Coronavírus: tanto o pânico quanto a negação podem fomentar o autoritarismo

Maria Carolina Trevisan

29/02/2020 04h00

A chegada do coronavírus aos Estados Unidos, ao Brasil, à Itália e à França provocou diferentes reações por parte de seus governos e políticos. Líderes da extrema-direita na Itália e na França amplificaram o pânico e forçaram, na Itália, medidas radicais e, na França, pressão nas fronteiras. Os Estados Unidos vêm minimizando o problema e o Brasil parece se alinhar a essa posição, como de costume.

Mas tanto o pânico quanto a omissão podem fomentar decisões autoritárias e merecem atenção.

Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump primeiro negou a gravidade da expansão do vírus. Temia influenciar negativamente a economia. Mas a displicência de Trump gerou uma reação negativa de investidores e o mercado despencou. Só então o presidente dos Estados Unidos admitiu a necessidade de dar mais estrutura para lidar com uma possível epidemia. Terá, porém, que encarar o problema de ter esvaziado o departamento de saúde que cuida da área de pandemias e de deve chamar especialistas às pressas para um comitê de crise.

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Ações na área de saúde pública precisam ser robustas e sustentadas ao longo do tempo, com planejamento e protocolos para não sobrecarregar o sistema. Por isso, a negação de Trump foi percebida como negligência por grande parte da imprensa como as revistas "Time" e "The New Yorker", os jornais "New York Times" e "Washington Post" e a emissora de TV CNN – veículos que o presidente costuma atacar – além de seus opositores. A principal solução para combater o Covid-19 seria investir em ciência e criar uma vacina eficaz. Mas, segundo especialistas, apesar da rapidez com que se conseguiu isolar o vírus, uma vacina levaria pelo menos um ano.

Em coletiva de imprensa nesta quinta (27), Trump disse que passageiros do Brasil e da Itália estão sendo checados nos aeroportos e que pode aumentar as restrições a outros países. Afirmou também que fechou os Estados Unidos para voos e decolagens à China e que esse seria o principal fator para o que ele define como "baixo risco" nos EUA. Ou seja, uma decisão dele. Sobre o Brasil, o presidente americano minimizou o problema. "É um país muito grande, com apenas um caso, mas ainda assim é um caso. Estamos checando as pessoas que chegam [do Brasil] bem atentamente", disse, em coletiva. Trump elogiou Bolsonaro, a quem chamou de amigo.

Capa da New Yorker

Como Jair Bolsonaro (sem partido) costuma imitar o presidente americano, a tendência é que se privilegie aqui, também, o mercado e se culpe o coronavírus pelo mau desempenho econômico. É uma forma de não se responsabilizar e evitar temas como tensão com Congresso, reformas e Orçamento impositivo. "Estamos tendo problema nesse vírus aí, o coronavírus. O mundo todo está sofrendo. As Bolsas estão caindo no mundo todo, com raríssimas exceções. O dólar também está se valorizando no mundo todo, e no Brasil o dólar está R$ 4,40. A gente lamenta, porque isso aí, mais cedo ou mais tarde, vai influenciar naquilo que nós importamos, até no pão, o trigo. Vai influenciar", disse durante transmissão ao vivo nesta quinta. "O problema agora do dólar, a culpa é do coronavírus, paciência." O fato é que a política econômica brasileira não tem gerado renda e emprego. Mas o responsável, segundo Bolsonaro, é o Covid-19.

O médico oncologista Dráuzio Varella, em entrevista ao podcast Café da Manhã, da Folha, disse que a doença deve ser enfrentada como se lida com a gripe e ações de higiene precisam ser levadas a sério, como lavar as mãos com maior frequência e cuidado, evitar levar as mãos à boca, cobrir a boca com o antebraço em caso de espirro ou tosse, não ir ao pronto-socorro por simples sintomas de gripe. Mas nada de pânico. O que já está acontecendo por aqui é uma discriminação contra chineses. E o que pode se tornar realmente grave é a possibilidade de que o coronavírus chegue às comunidades mais vulneráveis do Brasil. O potencial letal aumenta nesse caso. Vale lembrar também que o ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta levantou uma falsa preocupação com uma possível subnotificação na Venezuela, que poderia piorar o surto no Brasil. Mas não há indícios de infectados no norte do país, não há nada que indique essa apreensão. "Nós temos aqui do lado a Venezuela com um sistema de saúde em frangalhos. A gente está lá lutando com difteria, febre amarela, sarampo. Como é que será que está a qualidade de informação e notificação da Venezuela?", questionou Mandetta. Esse tipo de colocação pode aumentar a tensão contra venezuelanos na fronteira, o que já é grave. 

Itália e França

Se Trump e Bolsonaro miram na economia, Itália e França buscam outros focos. Na Itália, havia, até esta sexta (28), 650 casos confirmados e 17 mortes, ao menos 37 pessoas já se recuperaram da doença. O pânico provocado pelo anúncio de novos casos levou à limitação de movimentação e à suspensão da vida normal no país. Dez cidades na Lombardia e uma no Veneto foram isoladas, restringindo o deslocamento de 50 mil pessoas. Autoridades sanitárias determinaram a suspensão obrigatória de atividades em escolas, empresas e comércio sem utilidade pública, além de eventos coletivos como festas, missas e competições esportivas em determinados locais. No sábado (22), o governo italiano aprovou um decreto-lei especial para proibir a entrada e saída em áreas consideradas foco da epidemia. A Itália foi um dos primeiros países da Europa a suspender voos com origem e destino à China, no final de janeiro.

Mas o medo também funciona como vírus. Espalha-se rapidamente. Há quem se aproveite disso e é nessas brechas que se impõe o pensamento autoritário, que pode gerar uma escalada de violência e xenofobia. O ex-ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, líder da extrema direita, aproveitou para desqualificar as ações do governo e afirmou que o primeiro ministro Giuseppe Conte deveria renunciar "se não tem condições de defender a Itália e os italianos". Ele pediu também que as fronteiras do país fossem fechadas para evitar a migração na Europa e afirmou que a Itália não deveria receber migrantes da África, em um esforço para manter "nossas fronteiras blindadas". Ele criticou a ação de uma ONG que salvou da morte no Mediterrâneo centenas de africanos refugiados. "O governo subestimou o coronavírus. Permitir que os imigrantes desembarquem da África, onde a presença do vírus foi confirmada, é irresponsável", afirmou. Até esta sexta (28) havia apenas um caso confirmado, no Egito.

O ministro italiano das Relações Exteriores, Luigi Di Maio, pediu aos turistas estrangeiros que visitem a península diante da onda de cancelamentos das viagens e explicou que o foco do novo coronavírus está em uma pequena área circunscrita. "Sem querer minimizar a situação, são apenas 11 cidades envolvidas de um total de 7.904, e todos os casos fora dessa região tiveram origem ali", afirmou Di Maio. 

O filósofo italiano Giorgio Agamben, chamou a atenção para o "estado de exceção" gerado por esse medo, em artigo publicado no "Il Manifesto", na quarta (26). Ele enxerga um perigo autoritário quando se normaliza o Estado de exceção. "Manifesta-se mais uma vez a crescente tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo. O decreto-lei imediatamente aprovado pelo governo 'por razões de higiene e segurança pública' resulta de fato em uma verdadeira militarização dos municípios e das áreas" em que há casos suspeitos ou confirmados de contágio pelo vírus. "Parece quase que, esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia possa oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de todo limite", alertou o filósofo. Há realmente um perigo quando limitações da liberdade são impostas pelo governo e aceitas pela sociedade como meio de obter segurança. 

No artigo "O coronavírus e a tentação autoritária", publicado pelo "El País" da Espanha, o professor e historiador Federico Finchelstein, autor de "Do fascismo e populismo na história" (Edições 70, 2019), e Laura Palermo, professora de Biologia Humana na CUNY (City University of New York), especialistas em virologia e história das doenças, mostram que o clima de pânico, associado à paranoia e às ideologias extremistas podem gerar medidas autoritárias. "A ideia de culpar minorias e imigrantes pela propagação da enfermidade não é nova e tem precedentes fascistas. Há muitas formas de frear a transmissão do coronavírus, mas a combinação de ideologia, magia e má ciência não deveria ser uma delas." Eles tratam dos posicionamentos de Salvini, na Itália, e de Marine Le Pen, na França, líderes da extrema-direita. Le Pen tem reforçado a ideia de seu amigo italiano, de que a epidemia estaria fora de controle na Itália e que por isso as fronteiras deveriam ser fechadas. O presidente francês, Emmanuel Macron, respondeu simplesmente "não".

Finchelstein e Palermo afirmam que a paranoia (como prega Salvini na Itália) e a omissão (como fez Trump) são faces da mesma moeda. "A história das enfermidades nos adverte contra a ideia de otimismo sem prevenção. As epidemias envolvem pessoas que morrem e suas lições são extremamente importantes para avançar na investigação científica. Ignorar esses aspectos não pode ser bom para a saúde global", escrevem. "Não há razão para entrar em pânico, mas este é o momento para reforçar a pesquisa sobre vacinas." Para eles, não se pode substituir a ciência pela fé. 

A revista científica The Lancet publicou nesta sexta (29) um artigo em que 16 pesquisadores do direito global à saúde pedem que se observem as diretrizes do Regulamento Internacional de Saúde, que engloba 196 países. A intenção é que os países não tomem medidas desnecessárias ou que desestimulem o registro transparente sobre casos suspeitos e confirmados de infecção pelo coronavírus. As medidas devem ser baseadas em estudos científicos. Os pesquisadores questionam a eficácia de proibir voos de e para a China.

"Existem outras medidas mais eficazes que os países podem adotar para proteger seus cidadãos. A OMS emitiu orientação técnica acerca do Covid-19. As medidas incluem comunicação de risco, vigilância, gerenciamento de pacientes e triagem nos portos de entrada e saída." O regulamento exige ainda que todas as iniciativas adicionais de saúde sejam implementadas "com total respeito à dignidade, direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas. Sob nenhuma circunstância as decisões de saúde pública ou política externa devem basear-se no racismo e na xenofobia que estão sendo direcionados agora ao povo chinês e aos descendentes de asiáticos", dizem os pesquisadores. "Respostas ancoradas no medo, desinformação, racismo e xenofobia não nos salvarão de surtos como o Covid-19. A manutenção do estado de direito internacional é necessária agora mais do que nunca. Os países podem começar revertendo restrições ilegais de viagem que já foram implementadas."

No que diz respeito a protocolos e prevenção, o Brasil parece estar em um caminho razoável, tentando não aumentar o alarde e nem se tornar negligente. Pode estimular a pesquisa, adiantar a vacina de gripe, se for o caso. Não pode, no entanto, justificar suas falhas em setores como a economia com a epidemia de coronavírus. Tampouco pode usar o Covid-19 para desfazer o perigoso endosso a uma manifestação contra o Congresso e o Supremo, como chegou a sugerir a deputada estadual Janaína Pascoal (PSL-SP). É preciso assumir os erros e buscar saídas. Aguardemos os próximos passos.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.