Congresso altera legislação de violência contra a mulher. Isso é bom?
Maria Carolina Trevisan
13/12/2019 04h00
Mulheres fazem manifestação no Dia Internacional da Mulher, na av. Paulista, região central de São Paulo – Foto: Paulo Guereta – 8.mar.19/Photo Premium/Folhapress
A violência contra a mulher não tem fronteiras sociais. É silenciosa, acontece dentro de casa e geralmente é provocada pelo companheiro. As agressões passam do destrato para o controle e vão ganhando corpo. Tornam-se ameaças e chantagens, mudam do xingamento para a violência física. Em uma escalada, se intensificam ao longo dos anos de relacionamento e podem acabar em feminicídio. Por isso, é importante que a mulher consiga sair da dinâmica que a coloca dentro do ciclo de violência.
Mas esse rompimento só acontece se ela tiver acesso a alguma estrutura que a apoie. É aí que entra a diferença social e racial que faz com que as mulheres negras sejam as principais vítimas de violência letal (66%), feminicídio (61%), estupro (51%), entre outras agressões: com menos recursos, dependem mais do Estado para protegê-las. As instituições que deveriam dar suporte como delegacias, postos de saúde, hospitais e a Justiça são, muitas vezes, racistas, além de machistas e despreparadas. Em muitos casos, culpam a vítima até no julgamento sobre sua própria morte. É o famoso: "mas o que ela fez para deixá-lo tão bravo?". Nada mais abjeto.
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Veja também
- "O feminicídio é previsível e evitável. Isso é terrível", diz Patrícia Melo
- Mudança na Lei Maria da Penha pode inibir denúncias: "É medida perigosa"
- Como cresce uma criança que convive com a violência em casa?
Nesta quarta (11), foram publicadas no Diário Oficial da União duas mudanças legislativas sobre violência contra a mulher. O presidente Jair Bolsonaro vetou, em outubro, o projeto de lei 2.538/19, de autoria da deputada Renata Abreu (Pode-SP). O Congresso derrubou o veto presidencial em novembro e a lei 13.931/19 foi sancionada nesta quarta (11).
A alteração determina que profissionais de saúde registrem indícios de violência contra a mulher em seu prontuário médico "para fins de estatística, prevenção e apuração da infração penal". A partir desse registro, o hospital deve encaminhar o prontuário à Polícia Civil e o processo penal pode ser iniciado sem que a mulher decida fazer a denúncia. É o que se chama "infração penal de ação pública incondicionada", ou seja, não depende da vítima para acontecer.
A Lei 13.894/19 também foi atualizada nesta quarta (11). O Congresso derrubou os vetos parciais do vice-presidente Hamilton Mourão e agora, a lei passa a prever a competência dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher para ações de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável, nos casos de violência. Também consta da lei o dispositivo que garante preferência à ação de divórcio ou de dissolução de união estável se ocorrer uma situação de violência doméstica e familiar após o início do processo de divórcio. O pedido de separação é o momento mais sensível da tentativa de acabar com a violência. Essa alteração garante à vítima de violência doméstica e familiar assistência judiciária para o pedido de divórcio e prioridade de tramitação de processos judiciais.
Se por um lado as novas normas podem acelerar pedidos de medidas protetivas que ajudam a retirar a mulher da relação abusiva, por outro, é muito delicado que a denúncia se dê sem o consentimento da vítima. Pode acontecer também de elas se sentirem inibidas a buscar o sistema de saúde, com medo do processo penal.
Por que é difícil denunciar o agressor?
Há uma série de complexidades e delicadezas que envolvem denunciar o companheiro agressor: o receio de afastar as crianças do pai e ser responsável por acabar com o núcleo familiar; a separação inevitavelmente acontece com a denúncia e o processo penal. É o momento mais vulnerável da mulher que vive uma relação violenta. A maioria dos casos de feminicídio acontece justamente quando a mulher decide se separar. Ela se sente envergonhada e tem medo de como será recebida nas delegacias ou hospitais. Geralmente, depois de um longo relacionamento abusivo, a mulher está isolada dos amigos e da família.
Para conseguir sair do ciclo de violência, ela precisa de amparo. O companheiro faz promessas, procura psiquiatra, começa terapia e ela acredita que ele pode mudar. Ou, quando o homem agressor percebe que a mulher está disposta a deixar a relação, passa a chantageá-la com, por exemplo, requisitar a custódia dos filhos, negar a pensão, difamá-la no trabalho. Por fim, é difícil se enxergar em uma relação violenta.
"O homem violento percebe que perdeu o controle sobre sua parceira. Exigir que a mulher em situação de violência abandone o agressor pode ser uma enorme irresponsabilidade se não pudermos oferecer a ela as condições mínimas de segurança para que possa dar esse passo tão arriscado", diz o manual ''Enfrentando a Violência Contra a Mulher: Orientações Práticas para Profissionais e Voluntários(as)'', de autoria da socióloga Bárbara M. Soares.
"Cada vez que um médico, um psicólogo, um líder religioso, um policial ou um advogado as trata com indiferença, desconfiança ou desprezo, contribuem para aumentar a violência. Quando isso acontece, as vítimas perdem a esperança de encontrar apoio externo e acabam se recolhendo novamente ao seu inferno particular", completa o manual.
É difícil saber se as mudanças concretizadas vão ajudar ou vulnerabilizar ainda mais a mulher vítima de violência. "É preciso compreender que a dificuldade de agir ou reagir não é culpa da mulher, mas decorre de um aprendizado emocional criado pela própria situação de violência", alerta a cartilha "Mulher, vire a página", elaborada pela Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do Ministério Público de São Paulo. O grupo ganhou nesta quarta (11) o Selo de Práticas Inovadoras de Enfrentamento à Violência contra Meninas e Mulheres, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pelo trabalho de prevenção da violência doméstica na área de saúde da família.
De acordo com a cartilha, é necessário que a mulher ganhe independência para que seja capaz de escapar do ciclo da violência e sobreviver. "É preciso adotar e incentivar ações de fortalecimento das mulheres. É fundamental apoiar as mulheres diante de situações de violência, escutando-as, respeitando as suas dificuldades, incentivando-as a não permanecer sozinhas e a buscar ajuda na rede de atendimento às mulheres."
Para saber se você está em perigo, responda o questionário presente na cartilha e encontre apoio o quanto antes: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Cartilhas/vire_a_pagina.pdf
Sobre a autora
Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.
Sobre o blog
Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.