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Esvaziamento de Conselho da Criança expõe jovens às chibatadas modernas

Maria Carolina Trevisan

07/09/2019 15h16

Registro da tortura a escravos no Brasil. Imagem: Fundaj

A tortura sempre esteve presente na cultura brasileira. É uma prática desde quando os portugueses aportaram por aqui. Foi assim com os escravos, com os índios, com os "subversivos". Mas sua permanência e constância se revelam ainda hoje, principalmente contra os corpos negros. É o racismo, que se molda aos tempos, plástico que é. Hoje, há tortura nas favelas, nas viaturas, nos presídios, nas ruas, nos supermercados. Suas vítimas são os "suspeitos", os moradores de rua, os famintos, os dependentes de drogas, os presos, os pobres. É esse o resultado de uma sociedade constituída sobre a escravidão e que não soube trabalhar, até agora, a reparação devida.

"No Brasil é a escravidão que define a qualidade, a extensão, e a intensidade da relação física e espiritual dos filhos de três continentes que lá se encontraram. A imediata exploração da nova terra se iniciou com o aparecimento da raça negra, fertilizando o solo brasileiro com suas lágrimas, seu sangue, seu suor e seu martírio na escravidão", afirma o escritor, artista plástico, político e poeta Abdias Nascimento (1914-2011), um dos maiores ativistas pelos direitos humanos do Brasil, em seu livro "O genocídio do negro brasileiro", editora Perspectivas.

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O adolescente negro, de 17 anos, torturado no mercado Ricoy em São Paulo, suspeito de ter furtado um chocolate, vivia em situação de extrema pobreza e profundo abandono. Caçula entre sete irmãos, morava na rua havia cinco anos. Estava perdido dos outros, é dependente de drogas, não frequenta a escola, o pai faleceu e a mãe sofre de alcoolismo. Foi a fome que o levou a desejar o chocolate. Até a denúncia da tortura vir à tona, esse menino negro era invisível.

Ele contou que há cerca de um mês entrou no supermercado Ricoy, pegou uma barra de chocolate e tentou sair sem pagar. Mas foi abordado por dois seguranças (ele afirma que um deles já o conhecia) e levado para um quarto nos fundos da loja. Ali, foi obrigado a se despir, amordaçado e passou a ser torturado com um chicote de fios elétricos trançados. A tortura durou cerca de 40 minutos. "To fazendo isso para não te matar, moleque, pra não ter que te matar", dizia um dos agressores ao açoitar o jovem, enquanto outro filmava. Ao sair, ouviu de um deles que se denunciasse a tortura, alguém poderia matá-lo.

Calou-se. Mas os agressores expuseram as chibatadas nas redes sociais. Uma equipe chefiada pelo delegado Pedro Luis de Souza, também negro e sensível às questões relacionadas às violações de direitos humanos, instaurou inquérito, investigou, achou os agressores, conseguiu a prisão preventiva e prendeu Davi de Oliveira Fernandes nesta sexta (6). O outro está foragido. De acordo com Souza, os autores das torturas (há outras denúncias que levam a crer que aquela conduta era uma prática) queriam "impingir o medo naquela comunidade", disse, em entrevista coletiva.

Ao se tornar novamente um cidadão aos olhos do Estado, o adolescente foi localizado por um de seus irmãos, Wagner Bispo de Oliveira, 30 anos, que quer regularizar a sua guarda. Estiveram no Conselho Tutelar da Cidade Ademar onde o jovem terá acompanhamento psicossocial no Creas (Centro de Referência da Assistência Social) e no Centro de Apoio Psicosocial (Caps).

Rede de proteção a crianças e adolescentes e o desmonte dos conselhos

Fachada do Supermercado Ricoy, onde aconteceu a tortura contra o jovem negro. Foto: reprodução Google Street View

O menino passou cinco anos nas ruas, fora da escola, sem atendimento médico ou social, com fome, abandonado pelo Estado até que fosse resgatado pela rede de proteção a crianças e adolescentes. Algo falhou. Ainda assim, foi encontrado, resgatado e encaminhado ao conselho tutelar. Uma das portas de entrada do fluxo de garantia de direitos a essa população é a polícia. A Constituição brasileira garante que crianças e adolescentes são prioridade absoluta.

Se o sistema estivesse funcionando bem, o menino teria, há tempos, sido "abordado por educadores sociais, os vínculos familiares seriam restabelecidos, ou ele poderia ter ficado num abrigo, provisoriamente, até o reestabelecimento dos vínculos familiares", explica Ariel de Castro Alves, membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). "O conselho tutelar estaria acompanhando a família e os encaminharia para programas sociais, de orientação e apoio familiar. E a mãe dele para tratamento de alcoolismo. O jovem estaria matriculado na escola e frequentando e também incluído em atendimento de drogadição no caps."

O que já é frágil ficará ainda mais precário. Na última quinta (5), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) decidiu enxugar o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) em decreto publicado no Diário Oficial. O decreto reduz de 56 para 36 o número de representantes do governo federal e de entidades sociais, destitui os atuais conselheiros (voluntários) e convoca nova eleição para membros da sociedade civil em até 90 dias. A partir do decreto, os novos conselheiros serão indicados por entidades escolhidas pelo governo e as reuniões passarão a acontecer a cada três. Antes as reuniões eram mensais.  

Criado em 1991, por meio da Lei nº 8.242, o conselho é um órgão colegiado e deliberativo, responsável pela elaboração das normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos das crianças e dos adolescentes. Entre outras atribuições, compete aos conselheiros controlar e fiscalizar a execução das políticas públicas voltadas a esse segmento, em todos os níveis de governo (federal, municipal e estadual).

"Esse decreto significa uma extinção na pratica do Conanda. Um ato ditatorial. Na semana em que foi revelado o caso brutal e chocante do adolescente negro torturado com chicote, o principal órgão deliberativo sobre políticas de proteção das crianças e adolescentes está sendo na prática extinto", alerta Castro Alves. A medida pode se refletir nos conselhos estaduais e municipais.

"Com o desmantelamento dos conselhos teremos também o desmonte dos serviços e programas sociais e socioeducativos. Por consequência, teremos mais crianças e adolescentes nas ruas e em risco, sem proteção, expostas a abusos sexuais, exploração do trabalho infantil e outras violências e violações."

Para o ex-vice presidente do Conanda, Antônio Lacerda Souto, "quem vai perder com isso é a criança e o adolescente, todos os dias. Além disso, a pauta de discussão interessará ao governo. Hoje nós somos favoráveis, por exemplo, de trabalhar os direitos de crianças das comunidades LGBT, da questão de gênero". Dessa forma, o conselho perde suas essência e independência de acompanhar e fiscalizar as políticas públicas para crianças e adolescentes. "É um retrocesso muito grande que afronta a democracia." Com o esvaziamento do papel do Conanda, jovens vulneráveis estarão ainda mais expostos à violência como a que ocorreu com o adolescente de São Paulo.

O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, em nota enviada à reportagem, não responde aos questionamentos feitos e diz ter sido apenas adequação para "otimizar" o trabalho do Conanda. "A alteração legislativa decorreu da necessidade de adequar as competências, a composição, a estrutura e o funcionamento do Conselho aos atos normativos que reorganizaram a estrutura do Governo Federal e dispuseram sobre as diretrizes para a manutenção de colegiados no âmbito da Administração Pública Federal, a exemplo do Decreto n° 9.759, de 11 de abril de 2019, da reestruturação ministerial promovida pela Lei 13.844, de 18 de junho de 2019."

Práticas da escravidão que se perpetuam: a Porta do Não Retorno

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) em desfile do 7 de setembro. Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

A tortura está na constituição da sociedade brasileira. A prática nasce com o próprio Brasil, na escravidão. Recebemos cerca de 5 milhões de cativos africanos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América ao longo de três séculos e meio. Somos o país que mais escravos teve e cuja escravidão durou mais tempo.

O livro "Escravidão – volume I", obra mais recente do jornalista Laurentino Gomes, mostra que assim que eram comprados pelos senhores na chegada ao Brasil e no restante da América, os escravos sofriam torturas físicas e psicológicas. O objetivo era "mostrar a ele quem, de fato, mandava, quem era o dono e o senhor de seu destino", diz um trecho.

A obra também mostra que situação semelhante às chicotadas no adolescente de São Paulo se deu também no Rio de Janeiro do século XVII, quando traficantes traziam negros africanos para serem escravizados no Brasil. O relato de Dierick Ruiters, um holandês que presenciou torturas, em 1618, diz: "Vi um negro faminto que, para encher a barriga, furtara dois pães de açúcar [bloco de cristal no formato de um pão caseiro no qual o açúcar bruto era comercializado assim que saía do engenho]. Seu senhor, ao saber do ocorrido, mandou amarará-lo de bruços a uma tábua e, em seguida, ordenou que um negro o surrasse com um chicote de couro. Seu corpo ficou, da cabeça aos pés, uma chaga aberta, e os lugares poupados pelo chicote foram lacerados a faca. Terminado o castigo, um outro negro derramou sobre suas feridas um pote contendo vinagre e sal. O infeliz, sempre amarrado, contorcia-se de dor. Tive, por mais que me chocasse, de presenciar a transformação de um homem em carne de boi salgada."

Atualmente, em um dos pontos em que os escravos deixavam a África em direção à América, no Benim, há a um monumento chamado "Porta do Não Retorno". O que está acontecendo no Brasil em relação às principais vítimas da violência é a perpetuação dos valores e práticas da escravidão. Como se algumas vidas valessem nada, medidas em arrobas, como quando os escravos chegavam aqui. O preço se paga nos corpos negros, jovens e pobres. É como se entrássemos por essa porta e não conseguíssemos mais sair.

 

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.