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Maria Carolina Trevisan

Moore: mira do racismo letal aponta também para pessoas públicas negras

Maria Carolina Trevisan

29/03/2018 04h00

Carlos Moore em retrato de Isadora Brant/Folhapress

Há quinze dias, na quarta-feira 14 de março, atiradores ceifaram a vida da vereadora Marielle Franco. A morte de uma autoridade, mulher negra, moradora da favela da Maré, lésbica, mãe e defensora dos direitos humanos representa tanta gente que o Brasil se assustou. E protestou.

A repercussão da execução rompeu fronteiras e foi parar na primeira página de jornais importantes, como o The Washington PostThe New York TimesThe Guardian e na rede BBC. Deputados do Parlamento Europeu exigiram esclarecimento rápido. O governo Alemão pediu transparência nas investigações. As Nações Unidas requisitaram uma investigação "rápida e imparcial". Mas, até agora, nenhum resultado. Ninguém preso.

"O caso da Marielle Franco é emblemático", diz o escritor cubano Carlos Moore, doutor em Ciências Humanas. "Ela era uma mulher negra que estava crescendo politicamente, impulsionada desde a base. Não era uma mulher negra criada pelo sistema, para defender os interesses do sistema. Marielle articulava os desejos e interesses dessa base. Por isso, ela era mais "perigosa" que um intelectual negro, por exemplo, que se limita a escrever. Alguém como eu, que não está articulado na ação social de uma comunidade. Não seria necessário matar um Carlos Moore. Seria uma perda de tempo."

Moore é um dos mais importantes intelectuais negros do mundo. É especialista em cultura e identidade negra, defende o pan-africanismo e é um dos grandes ativistas no enfrentamento ao racismo. Em sua caminhada, foi amigo do grande líder negro Malcom-X, esteve com o filósofo fundador do movimento da negritude Aimé Césaire e com o cientista senegalês Cheikh Anta Diop, que contestou o racismo científico. No exílio, conheceu a antropóloga negra brasileira Lelia Gonzalez, com quem aprendeu sobre a interseccionalidade que soma a questão racial às questões da mulher. Também militou com um dos maiores intelectuais brasileiros, o professor e escritor Abdias Nascimento, com quem compreendeu o "racismo à brasileira".

Nascido e crescido em Cuba, filho de imigrantes da Jamaica e de Trinidad, Carlos Moore foi obrigado a deixar Cuba ao denunciar a existência do racismo em seu país. Ele conta que era chamado de "pichón" (em sua tradução, "filho de urubu") na infância, uma maneira racista se referir aos filhos de pais oriundos de outros países do Caribe. Com sua contestação, contrariou o regime de Fidel Castro. E se viu entre os dois muros da Guerra Fria. Fugiu para o Egito e para a França, onde ficou por 16 anos. Atuou como jornalista da France-Presse e se tornou doutor em Etnologia. Mais tarde fez também doutorado em Ciências Humanas pela Universidade de Paris-7.

Tem sete livros publicados. Entre eles, Fela, esta vida puta (Nandyala), uma biografia de Fela Kuti (1938-1997), o criador do Afrobeat com quem teve amizade profunda.

Vive em Salvador com sua família desde 2000, onde se sente em casa. Segundo Carlos Moore, o racismo é um fenômeno permanente e dinâmico, com incrível capacidade plástica de se adaptar aos momentos históricos. "É a dinâmica de opressão mais plástica que a humanidade já desenvolveu."

A seguir, ele fala sobre o racismo letal que vitimou Marielle – e alerta para o novo alvo dessa violência: as autoridades negras.

UOL – Sobre a execução da vereadora Marielle Franco, tem se discutido se existiu motivação racial para o crime ou se ela se tornou alvo puramente por ser uma autoridade, independentemente de sua cor. Qual a sua opinião?
Carlos Moore –
 Essa discussão serve simplesmente para diluir a situação, para criar confusão. É tipicamente como funciona o racismo brasileiro. Ele age assim: aqui no Brasil nunca as coisas são nítidas, nunca são claras. Porque quanto mais claras, mais se voltam sobre o discurso, sobre a retórica das classes opressoras. Marielle Franco é um caso claríssimo: a sociedade não admite uma mulher negra contestando o racismo. Não admite porque isso é cavar no fundo das bases do racismo.

O que acontece quando se toca na raiz do racismo?
As pessoas veem o racismo não como algo basilar. A sociedade vê o racismo como algo de relações pessoais. De gostar ou não gostar, de ser discriminado no cinema ou no supermercado. Se Marielle Franco fosse discriminada num shopping, imediatamente saíram todos os racistas na televisão dizendo 'Somos todos Marielle'. É assim que as coisas se resolvem no Brasil. Tudo o que tem a ver com o racismo aqui não é levado a sério. É dissolvido. Dissolvido rapidamente em uma farsa. Então, essas conversas são umas farsas. As farsas normais do racismo brasileiro.

O senhor costuma dizer que o racismo é um fenômeno permanente com alta capacidade de adaptação. Como isso se dá?
O racismo é um fenômeno dinâmico e permanente da sociedade. Não é algo que vai desaparecer, com alguma medida aqui, outra medida lá. Acho que os movimentos negros do mundo inteiro, aqueles que não tinham pesquisado precisamente a historicidade do racismo, caíram nesse erro durante muito tempo. Organizaram estratégias e táticas para lidar com algo que sumiria logo, ao tratar de educação. Agora estão compreendendo que não se trata de um fenômeno que surgiu nos últimos 300 anos, como disse a Sociologia universitária. O racismo surgiu há mais de 3 mil anos, quando se encontraram os leucodermos e os melanodermos pela primeira vez.

Como funciona essa dinâmica?
O racismo é algo muito plástico. É a dinâmica de opressão mais plástica que a humanidade ja desenvolveu. O racismo não é um problema de educação. Não tem nada a ver com ignorância. Também não é interpessoal, entre um branco e um negro, se amarem ou não se amarem. É algo da sociedade. Uma dinâmica social.

O racismo não é um fenômeno ideológico, criado por alguém, intelectualmente, ideologicamente. Se acreditarmos nisso, o racismo vai fugir. Não vamos poder compreender que se trata de dinâmicas que criam estruturas sociais, que criam sociedades, e pairam por cima das sociedades, por cima das religiões, que fertiliza as religiões, que fertiliza os sistemas jurídicos, os sistemas de governo e todas as relações humanas, sociais e políticas. O racismo surge de toda uma série de interações históricas.

 

Que características tem o racismo no Brasil? É diferente de outros países?
Claro que é diferente. Porque ele surge de outro molde histórico, não vem do mesmo molde histórico que, por exemplo, o racismo anglo-saxão. Aqui no Brasil, o disfarce vem caindo a partir do momento em que o movimento negro daqui se desenvolveu e se expressou de maneira tão aberta. Até desmascarar a sociedade. Tirou essa máscara de democracia racial. Aí você vê o rosto verdadeiro do racismo.

Essa máscara sorridente, de que no Brasil todo mundo se ama, todo mundo vive junto, que todo mundo é igual, etc, isso é mentira.

Quando você desmascara um monstro, a cara que aparece é a cara real desse monstro. Isso está acontecendo no mundo inteiro: Brasil, Argentina, Peru, na própria África, em todas as partes. Na África, portugueses, espanhóis e franceses também implantaram um "racismo cordial". Mas cometia suas grandes violências sempre com essa máscara de sorrisos.

O que acontece quando o racismo vai perdendo suas máscaras?
Ele passa a agir de maneira direta. A violência já não é mascarada. É uma violência direta. A letalidade do racismo não pode mais ser disfarçada. Por exemplo, aqui, sempre houve o genocídio da juventude negra. Mas agora é cada vez menos disfarçado. Está atingindo não somente os jovens na periferia, mas também aquelas pessoas – os líderes – que se levantam e estão defendendo esses direitos dos jovens negros.

Ou seja, aquelas pessoas públicas negras estão sendo também mortas. Antes não era necessário matar uma pessoa pública negra diretamente. Porque ela não ameaçava o status quo. Eram os jovens que ameaçavam.

Então, a morte dos negros está se "democratizando" dentro da sociedade negra, está atingindo grupos sociais de negros que antes não atingida. A classe média baixa negra está sendo atingida agora pela primeira vez.

Existe um fim para o ódio racial?
O racismo é algo permanente. Ele não acaba um dia. É um erro pensar que vai acabar. É necessário organizar estruturas permanentes para lutar com ele e se adaptar às mudanças. Porque o racismo é um fenômeno dinâmico, plástico, metamorfósico, e está constantemente se adaptando aos novos tempos. Então, as estruturas anti-racistas têm absolutamente que ser plásticas e dinâmicas, além de se adaptar aos novos tempos, ou seja, precisam ser duráveis. Precisam durar de uma geração para outra.

Porque, finalmente, o racismo é uma questão de poder. E aqueles grupos que têm o poder estão na frente da plasticidade desse racismo. Não querem perder os privilégios. O racismo é feito para guardar privilégios. Se é eliminado, os privilégios de raça são também eliminados. Aí cai a supremacia racial do grupo dominante. Que nesse caso, no caso das Américas, é o grupo branco. Não é tão fácil eliminar o racismo porque os privilégios estão bem enraizados. A cada vez que você desenraíza, ele surge de outra maneira, a menos que você 'mate' essas raízes. Elas podem ser mortas somente quando o grupo dominado chega ao poder, a articular outro tipo de sociedade.

Por isso os políticos negros agora são alvo dessa tentativa de eliminação?
Sim, os políticos negros que pensam nesse sentido. Porque tem políticos negros que são tão descarados como alguns políticos brancos. São negros de pele somente. Imagine que catástrofe certos políticos negros que não têm poder mas são colocados lá para atuar nessa farsa permanente dos países latino-americanos? Não é somente no Brasil, não. Você vai para a Colômbia, Cuba, Costa Rica, e tem a mesma farsa, os mesmos políticos negros que estão lá para disfarçar o regime.

Aqueles políticos negros que estão na política, que estão fazendo política, que são sinceros e que estão expressando a vontade e os desejos da base, das favelas, do mundo pobre negro, do mundo negro em geral, isso é outra coisa. Eles, sim, são alvos. E sempre serão.

 

Para ler escutando Fela Kuti:


Fela Kuti
Water no get enemy
LP Expensive Shit

Desembargador diz que magistrados não podem afrontar memória de Marielle 

Execução de Marielle evidencia descaso histórico com população negra

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.