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Uma funerária chamada Brasil: como políticas de segurança promovem mortes

Maria Carolina Trevisan

28/08/2019 14h33

Policiais da Tropa de Choque da PM do Rio realizam operação na favela da Rocinha, na capital fluminense
– Imagem: Wilton Junior/Estadão Conteúdo

A cena se repete: homens carregam um jovem baleado pelas vielas de uma favela do Rio de Janeiro. Levando o rapaz desfalecido, de pés descalços e bermuda, o grupo passa pela polícia, que não ajuda no socorro. Ouvem-se gritos de revolta que logo dão lugar ao inconfundível ruído do desespero quando uma mãe, esposa, parente, se dá conta de que aquele corpo carregado é uma parte sua. Não há lugar para a comemoração.

A brutalidade policial encontra eco na sociedade, que aplaude quando um atirador de elite "abate" uma pessoa, que não se opõe às operações policiais com "caveirões aéreos" que atiram mesmo enquanto as crianças estão em aula ali embaixo. É a normalização da letalidade policial, que ganha legitimidade pela postura, retórica e política de segurança pública de governos que privilegiam a contagem de cadáveres como indicador de "sucesso". É o caso do governo de Wilson Witzel (PSC), respaldado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). Mas esses números são, na verdade, comprovantes do ódio ao pobre e ao negro, herança da escravidão, que segue estruturando a nossa sociedade e determinando quais são as vidas "matáveis". "O cenário de mortes provocadas por agentes do Estado destaca o país no plano internacional, vitimiza uma população específica, assim como corrói as expectativas de democracia e legitima a violência arbitrária", conclui a pesquisadora e mestre em direito Poliana da Silva Ferreira, do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV, em seu artigo "Direitos fundamentais e letalidade policial: sentidos opostos numa mesma trilha".

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O estado do Rio de Janeiro contou, no 1º semestre, 881 mortes decorrentes de intervenção policial, de acordo com o Instituto de Segurança Pública. Quanto mais operações policiais, mais mortes. Não há, no entanto, indícios de preocupação por parte de autoridades no sentido de frear a "política de abate", cunhada por Witzel. O uso de helicópteros como plataforma de tiro passou a fazer parte da rotina em áreas de favela do Rio. Segundo o Observatório da Segurança do RJ, nos seis primeiros meses de 2019, foram 34 as operações com helicópteros. A chuva de tiros, presente em 11 das investidas aéreas, é uma forma cruel de amedrontar uma determinada população. Nesses dias, as escolas ficam fechadas (ou as crianças aguardam o fim dos tiros agachadas nos corredores), os comércios não abrem, as pessoas não conseguem sair para trabalhar, as ruas ficam desertas, tomadas pelo medo. Essa rotina parece não preocupar os responsáveis pela segurança pública no estado e no país.

Os primeiros direitos fundamentais que são violados quando há uma morte decorrente de intervenção policial são, simultaneamente, o direito à vida e à integridade física e à segurança pública, garantidos pela Constituição Federal. "As práticas autoritárias mostram-se arraigadas, não só no plano das políticas ou das práticas eleitorais, mas também nos aparelhos de Estado de controle da violência e do crime", afirma Poliana. É uma prática incompatível com a democracia.

O sofrimento da polícia: quando a missão é matar

Se, de um lado, os moradores das comunidades, os jovens negros e seus familiares se sentem acuados e amedrontados por essas políticas de segurança pública, os policiais também sentem os efeitos de estarem expostos a mais violência. A obrigação de matar causa sofrimento nos agentes de segurança. A dor da mãe que enterrou o jovem carregado na cena que abre este texto é a mesma dor da mãe do policial morto em serviço, ou que tira a própria vida.

Os suicídios de agentes de segurança no Brasil cresceram 140%, aponta estudo do Gepesp (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção). São indícios de adoecimento. Foram 67 suicídios e homicídios seguidos de suicídio em 2018 contra 28 casos em 2017. Os mais vulneráveis são oficiais de baixa patente. "Um policial não faz concurso para a corporação para matar ou para morrer. Isso é o discurso da 'guerra' que vai legitimar não só que a polícia mate muito, mas que ela morra muito também. Porque em uma guerra só se pode matar ou morrer", afirma o delegado Orlando Zaccone, da polícia civil do Rio de Janeiro no excelente documentário "Relatos do Front", dirigido por Renato Martins, disponível no sistema de vídeo por demanda. É, no mínimo, um grave desrespeito do Estado com todos os lados envolvidos. É um descaso profundo.

Witzel e a ideia de "narcoterrorismo"

Na lógica perversa que se impôs, uma menina, a Maria Eduarda, de 13 anos, morreu dentro da escola no bairro de Pedreira, no Rio. Em São Paulo, o adolescente Douglas Rodrigues, 17 anos, perguntou antes de sucumbir: "Por que o senhor atirou em mim?". Marcos Vinícius, de 14 anos, morreu com tiro da polícia, vestido de uniforme escolar. Margareth, de 17 anos, segurava seu bebê quando ambos foram alvejados em um confronto na favela em que vivia. Esses filhos não estavam envolvidos nem com o tráfico, nem com a milícia e nem com a polícia. Mas a política imposta expôs esses adolescentes à violência letal.

Desde que assumiu o governo do Rio, Witzel tem usado a palavra "narcoterrorista" para se referir aos traficantes e justificar a letalidade policial. O termo tem origem no início dos anos 1980, e foi usada pelo governo peruano para se referir ao grupo antifascista Sendero Luminoso, que atuava contra o regime militar. Na mesma época, o conceito foi usado na Colômbia para denominar as Farc (Forças Revolucionárias da Colômbia). Portanto, "narcoterroristas" seriam fruto da combinação entre traficantes e terroristas.

"Quando o Witzel fala em 'narcoterrorismo' é para criar uma imagem sensacionalista de pavor", explica o professor de Relações Internacionais Thiago Rodrigues, da Universidade Federal Fluminense (UFF). "O termo [da forma que é usado por Witzel] não tem nada a ver com suas origens históricas. A expressão 'narco' está vinculada ao medo do narcotraficante e 'terrorismo', desde 2001, virou sinônimo do medo total. Então, quando ele fala em 'narcoterrorismo' está querendo gerar pânico."

Em maio, o governador do Rio declarou: "Muitos, infelizmente, confundem a contundência necessária com o enfrentamento de narcoterroristas, traficantes que tomaram de assalto comunidades do Rio, e também o enfrentamento à máfia das milícias. São criminosos, sim. Não há como enfrentar sem a máxima dureza o crime organizado", disse Witzel, um dia depois de ser denunciado à ONU e à OEA por conta da violência de Estado. Ao se referir ao desfecho do sequestro do ônibus na Ponte Rio-Niterói, o ex-juiz também disse: "Vamos investigar, mas tenho na minha convicção de que esse fato que ocorreu hoje tem vinculação com o crime organizado, que estimula esse tipo de ação terrorista", declarou. 

Para Rodrigues, as eleições do presidente Jair Bolsonaro e de Wilson Witzel são efeito de um processo de longa duração cujo apelo é securitário. "As pessoas estão apavoradas com a possibilidade de serem atingidas pela insegurança, por assaltos, roubos, estão vivendo cada vez mais amedrontadas pela própria precariedade da vida, do emprego, da economia, e começam a clamar por segurança em todos os níveis. A segurança pública é um desses níveis", explica. "Há, portanto, um inchaço, uma inflação do medo, que alimenta esses discursos de hipersegurança, que legitima uma forma de pensar já muito antiga no Brasil, que é a eliminação das pessoas consideradas perigosas. Essa vontade hoje está desavergonhada."

"A gente é o que? Uma funerária chamada Brasil?", questiona a jornalista Flavia Oliveira em trecho do documentário Relatos do Front. No nosso imaginário racista, essa ameaça mora nas favelas, é pobre e negra. Estamos doentes como país, como pátria. Não há mais pudor em querer eliminar quem é considerado uma ameaça. De outro lado, com essa política, a polícia pode morrer todos os dias, exposta a essa demanda do pavor. Ao tolerar – e até celebrar – essa política, toda a sociedade brasileira suja as mãos de sangue. E carrega para sempre a dor das mães que perderam seus filhos, não importa se eram policiais, traficantes ou inocentes.

 

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.