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Maria Carolina Trevisan

Pátria armada, Brasil: Bolsonaro, Moro e Witzel expõem pessoas à letalidade

Maria Carolina Trevisan

08/05/2019 10h52

Bolsonaro assina decreto de porte de armas e parlamentares celebram com "arminha" | Foto: Marcos Corrêa/PR

"Fomos no limite da lei", admitiu o presidente Jair Bolsonaro (PSL) ao assinar o "Decreto da Nova Regulamentação do Uso de Armas e Munições", que facilita o porte de armas (autorização para transportar armas), nesta terça-feira (7). Além de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), a nova determinação inclui agentes de trânsito, caminhoneiros, residentes em áreas rurais, conselheiros tutelares e até profissionais da imprensa que atuem na cobertura policial, entre outros. Esses pontos não foram mencionados pelo presidente em seu discurso, mas estão publicados no Diário Oficial desta quarta-feira (8).

Cerca de 255 mil pessoas poderão andar armadas nas ruas após essa decisão. "Ao possibilitar que mais pessoas andem armadas, o decreto altera a legislação que proíbe o porte de armas no Brasil, cuja mudança só poderia ser feita pelo Congresso Nacional", diz nota do Instituto Sou da Paz. Nos últimos cinco anos, houve uma explosão no número de pessoas que se identificam como CACs: as concessões cresceram 879%, segundo dados oficiais.

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O Estatuto do Desarmamento prevê que para obter o porte de armas é preciso ter 25 anos, comprovar capacidade técnica e psicológica para o uso de arma de fogo, não ter antecedentes criminais, responder a inquérito ou a processo criminal e ter residência certa e ocupação lícita. Além disso, é preciso comprovar "efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física".

Bolsonaro realiza, assim, uma de suas principais promessas de campanha. Em seu programa de governo, para garantir que não haverá aumento da violência letal com mais armas em circulação, afirmava: "As armas são instrumentos, objetos inertes, que podem ser utilizadas para matar ou para salvar vidas. Isso depende de quem as está segurando: pessoas boas ou más. Um martelo não prega e uma faca não corta sem uma pessoa." A ampliação da legítima defesa, que consta de seu programa de governo, está no pacote anticrime defendido pelo ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública). 

Chuva de tiros

Depois da chuva de tiros, o silêncio. Os minutos seguintes ao sobrevoo do helicóptero blindado da Polícia Civil no Complexo da Maré, na segunda-feira (6), foram de medo. Nas escolas da região, professores evacuaram as salas de aula e colocaram as crianças nos corredores, sentadas no chão, para diminuir o risco de serem atingidas por "balas perdidas". Mães e pais aflitos buscavam notícias. Na Escola Municipal Teotonio Vilela, em Manguinhos, há a suspeita de que um tiro teria atingido uma sala através do ar condicionado (a Secretaria Municipal de Educação do Rio não respondeu à solicitação de informações até este momento). A escola fica no Conjunto Esperança. Esperança de quê?

Em outra escola, na região oeste do Rio – as costas do Cristo Redentor -, a professora do 6º ano Rosalia Romão conta que um de seus alunos tentava acalmá-la enquanto se protegiam dos disparos fora da escola. "Aquela boquinha pequena começou a falar umas cem mil histórias sobre a sua infância naquela comunidade", conta Rosalia. Era uma maneira de desviar a atenção dos tiros que caíam do céu.

"Quando o tiroteio cessou, o sinal tocou e todos saíram, ele ainda ficou uns instantes guardando o material, bem devagar, para de algum jeito se certificar de que eu estava bem. E ao sair, olhou pra mim e disse: – Professora Rosalía, pode deixar que quando eu for um jogador famoso, eu vou te dar uma casa fora daqui, tá?".

Rosalia, que dá aula em escolas públicas e particulares, do 6º ano à pós graduação, não mora na comunidade. Mas sabe que a chance de as crianças crescerem em paz é mínima. "Rezei para que ele ficasse bem. Na sua casinha, com a sua família. E que crescesse muitos anos, quão grande é o seu coração."

A operação da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil do Rio de Janeiro na Maré visava a apreensão de armas e drogas e a prisão de traficantes. Foram encontrados sete fuzis, 3 pistolas, carregadores com munição, 14 granadas e cerca de R$35 mil reais. Um dos objetivos principais seria capturar Thomas Gayson Gomes Vieira, conhecido como 3N. Mas ele não foi preso. Há denúncias de que policiais invadiram casas e que pessoas foram mortas já tendo sido rendidas pelos agentes. A Defensoria Pública do Rio cobra apuração das mortes na Maré.

No sábado (4), o governador Wilson Witzel (PSC) participou de uma operação da Polícia Civil em Angra dos Reis (RJ) e filmou o sobrevoo. Da porta da aeronave, agentes da polícia miravam suas armas para as casas da comunidade. São todos pobres, quase todos são negros. A operação teve um saldo de zero apreensões de armas e drogas e ninguém detido.

Mercadores do medo

Pesquisadores e organizações da sociedade civil que atuam na área da segurança pública alertam para a escalada da violência letal sob esse tipo de política pública. "São políticos populistas irresponsáveis que, no rastro do medo e da insegurança da população, dizem que a polícia agora vai matar mesmo. É algo terrível para a sociedade e para os próprios policiais", afirma o economista e especialista em políticas de segurança pública Daniel Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O governo Witzel tem quebrado recordes de mortes decorrentes de intervenção policial. Entre janeiro e março, os agentes de segurança do Estado mataram 434 pessoas. Os primeiros três meses de 2019 foram os mais letais em 16 anos. Nesta terça, a Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) e a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) denunciaram à ONU (Organização das Nações Unidas) o que consideram uma "agenda genocida" do governador Wilson Witzel (PSC).

A política do "abate" expõe a população já vulnerável a mais violência e também torna a vida dos policiais muito mais suscetível à letalidade. Estão sujeitos a mais riscos diante do discurso de "atirar na cabecinha". "O policial se despede da mulher e do filho e vai trocar tiro, ver um colega morrer, vai matar alguém. A experiência da morte no dia a dia gera enfermidades na população policial", afirma Daniel Cerqueira, que trabalha atualmente em uma pesquisa que demonstra que policiais se suicidam três vezes mais que civis. "É um desrespeito profissional."

Crianças que crescem em meio à violência, que pulam corpos para ir à escola ou precisam parar a aula porque helicópteros da polícia miram suas armas na região em que vivem, sofrem muito. Seus pais e professores também, inclusive policiais que são obrigados a cumprir com essa rotina. Só não se abala quem não consegue enxergar o outro diante de si.  

"A gente só vai crescer enquanto sociedade quando resgatarmos os princípios básicos civilizatórios, que passam pela empatia, ou seja, reconhecer o outro. Sem isso, vamos ficar eternamente nesse processo de violência", alerta Cerqueira.

Enquanto isso, a sala de aula, mesmo sob risco de ser alvejada pelos tiros do governador, é o espaço do cuidado e do acolhimento. O aluno que acalmou Rosalia tem só 11 anos. "E outros mil anos de maturidade, sensibilidade e amor. Sala de aula é espaço de aprender muito. Ensinar às vezes. E partilhar sempre esperanças de um mundo novo pelas vias da educação. O que sei é que tenho alguns anos de sala de aula para aprender a ser melhor. Com eles. Para eles. Por eles", ensina a professora Rosalia.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.