Brasil é o 4º país que mais prende mulheres: 62% delas são negras
Maria Carolina Trevisan
16/05/2018 09h04
O sistema prisional brasileiro é um dos que mais prende mulheres no mundo. Somos a quarta maior população carcerária feminina do planeta. Mantemos privadas de liberdade cerca de 42.355 mulheres, de acordo com o novo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias sobre Mulheres, o Infopen Mulheres, divulgado (sem alarde) na quarta-feira (9), pelo Ministério da Justiça. Estamos atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia.
A situação é grave e não há indícios de melhora: o Brasil mantém uma taxa de aprisionamento feminino de 40,6, o que representa um aumento de 455% entre 2000 e 2016, como informa a Conectas, organização social de direitos humanos. No mesmo período, a Rússia diminuiu essa população carcerária em 2%.
"A expansão do encarceramento de mulheres no Brasil não encontra parâmetro de comparabilidade entre o grupo de cinco países que mais encarceram mulheres no mundo", diz o relatório.
Não existem vagas para todas. Há um déficit de mais de 15.300 vagas para receber essas mulheres, além de os presídios não serem adequados às mulheres e suas demandas. Um ponto escandaloso é que quase a metade das mulheres presas não foi condenada, o que configura um enorme descaso e descompromisso da Justiça e do Estado com essa população.
Lei de drogas para prender mulheres negras
O Brasil teve a mais longa e numerosa escravidão do mundo. Foi o último país a botar fim a esse regime e instituiu há exatos 130 anos a Lei Áurea, que em tese acabou com a escravidão. Mas a nova lei não promoveu a inserção dos ex-escravos na sociedade brasileira, nem reparou os anos de serviços forçados a que essas mulheres e homens foram submetidos, ou tampouco garantiu direitos aos afrodescendentes. Bem ao contrário.
O país não chegou a criar leis segregacionistas, como as Jim Crow, nos Estados Unidos, ou como as legislações da Jamaica e de Porto Rico. O Brasil fingiu ser cordial, alimentando o seu racismo de maneira sorrateira. "Serviu como um argumento para que o Estado dissesse que no Brasil não tem racismo, que a questão da escravidão está resolvida, é passado", explica o historiador e professor Rafael de Bivar Marquese, do departamento de História da USP, que estuda "Escravidão e História Atlântica".
Marquese explica que foi por meio de regras informais que essa segregação racial se estruturou na sociedade brasileira, gerando consequências até hoje. "Abriu-se um amplo espaço para arbitrariedades por parte dos agentes públicos. Discriminação religiosa, criminalização do negro, desigualdades raciais no mercado de trabalho, tudo o que nós estamos vendo hoje é algo que vem historicamente desde o início da escravidão."
Dessa forma, o Estado criou outras regras para controlar a população negra sem, no entanto, explicitar o componente racial. Não é por acaso que a maioria das mulheres presas (62%) é negra ou que a taxa de aprisionamento de negras (62,5) é muito superior à de brancas (40,1). Há, obviamente, uma seletividade racial que determina, por meio da Justiça, que mulheres negras são mais suspeitas que mulheres brancas.
O mecanismo que opera esse aprisionamento em massa é a nova Lei de Drogas, instituída em 2006. Nela, falta regulamentar de maneira mais explícita o que define quem é traficante e quem é usuário. Essa margem faz com que o racismo opere livremente: cabe primeiro ao policial/delegado e depois ao juiz (geralmente homem e branco) definir se a mulher se enquadra como traficante ou como usuária.
Dados os estereótipos do "suspeito" a que o Brasil está acostumado e a julgar pelas desigualdades que essas mulheres enfrentam, sendo, portanto, muito mais vulneráveis, sabemos quem será privada de liberdade na escolha da Justiça.
"As prisões modernas têm o 'privilégio' de ser o lugar onde se materializam as estruturas hierárquicas impostas pela lógica racial da desumanização do corpo negro. A desumanização na prisão abre caminho para a criminalização pelo Estado penal", afirma a advogada e pesquisadora Dina Alves, em sua análise Rés negras, juízes brancos.
Um sistema inadequado às mulheres
Mesmo com uma população carcerária feminina tão grande, o Brasil não tem estrutura para dar conta das demandas das mulheres: a maioria dos estabelecimentos penais que as abriga é masculina ou mista. Significa que não tem espaço adequado para gestantes, berçários, locais de aleitamento materno, atenção à saúde da mulher ou visitas. A separação por gênero dos estabelecimentos destinados ao cumprimento de penas privativas de liberdade está prevista na Lei de Execução Penal e foi incorporada à Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional.
O relatório revela que apenas 55 unidades em todo o país declararam apresentar cela ou dormitório para gestantes. Os estados do Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima e Tocantins não possuem nenhum espaço para gestantes. As unidades que declararam ser capazes de oferecer esse local somam uma capacidade total para receber até 467 bebês. Apenas 3% das unidades prisionais femininas ou mistas que declararam ter creches dizem ter condições de receber crianças acima de dois anos.
É o direito à maternidade que está sendo violado. Assim como o direito da criança de conviver com a mãe.
Incompatível com a vida e com a dignidade
A chance de uma mulher cometer suicídio no sistema prisional é 20 vezes maior se comparada à população brasileira. "Entre a população total foram registrados 2,3 suicídios para cada grupo de 100 mil mulheres em 2015, enquanto entre a população prisional foram registradas 48,2 mortes autoprovocadas para cada 100 mil mulheres", diz o relatório.
Esse quadro permite afirmar que o sistema penitenciário brasileiro é um "estado de coisas inconstitucional", como reconheceu o Supremo Tribunal Federal. O plenário afirmou que o sistema produz "violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios converter-se-iam em penas cruéis e desumanas."
Por tudo isso, não adianta construir mais e mais presídios. É preciso adotar políticas de desencarceramento. É urgente acelerar o processo dos presos provisórios. É necessário rever a Lei de Drogas.
Sobre a autora
Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.
Sobre o blog
Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.