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Maria Carolina Trevisan

Castração química e trabalho infantil: artimanhas do populismo bolsonarista

Maria Carolina Trevisan

27/08/2020 09h22

Imagem: Getty Images

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) apelou mais uma vez ao defender os "bons tempos" em que o trabalho infantil não era proibido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao discursar nesta terça (25), em Brasília. Usou novamente a sua própria vivência como argumento. Já disse que trabalhou com o pai em uma fazenda e também que seu progenitor o obrigou ao labor em um bar. O menino Jair e sua família, no entanto, não passavam fome, não viviam em pobreza extrema.

A observação fora de lugar e de tempo demonstra a falta de empatia que Bolsonaro tem pelos direitos da infância. Não que isso seja uma surpresa. Mas um Presidente da República tem a obrigação de gerir o país em nome da maioria – das milhões de crianças obrigadas ao trabalho, fora da escola e em sofrimento contínuo – e não baseado em si mesmo e em suas crenças.

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Na mesma toada, seu filho (que não trabalhou na infância), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), resgatou um projeto de lei de Jair sobre castração química para pessoas que cometeram crimes de violência sexual. Ele quis aproveitar a onda de indignação causada pelo absurdo e triste caso da menina de 10 anos que ficou grávida depois de sofrer abusos por quatro anos.

O PL 4233/2020 é uma reedição de uma proposta do então deputado federal Jair Bolsonaro, de 2013, perseguido e batalhado com veemência e obsessão pelo agora presidente. Jair usava do discurso da castração química para se mostrar defensor das mulheres e duro contra estupradores. Mas é uma proposta inócua.

O projeto de lei propõe que homens condenados por estupro se submetam à castração química "voluntariamente" (aspas minhas) para que tenham acesso ao direito de liberdade condicional e progressão de pena. Eduardo Bolsonaro diz que seria "uma ação preventiva" para evitar reincidência. Nada mais falso, como demonstro a seguir. A proposta se justifica em uma única fonte, um único autor, cujo argumento afirma que a medida teria diminuído casos de violência sexual nos países que adotam esse tipo de mutilação. Se a punição rígida funcionasse, países que submetem pessoas à tortura das prisões superlotadas e incompatíveis com a vida, como o Brasil, seriam paraísos de paz.

Quem entende de violência sexual e de direito criminal afirma que a castração química é uma medida ineficaz, antiética e inconstitucional. "A violência sexual contra criança e adolescente não é uma questão de libido", afirma a psicóloga Karen Esber, que há mais de 20 anos pesquisa esse tema e é uma das principais autoras de livros sobre violência sexual contra crianças e adolescentes. "As motivações para que uma pessoa cometa violência sexual são muito amplas. Vão desde aquele que tem desejo sexual focado na criança – mas não tem a libido exacerbada – até quem comete o abuso porque sofreu recorrentes abusos a vida inteira e não teve como processar esse trauma, repete a mesma situação como uma forma de elaboração mental", afirma a pesquisadora.

Há ainda uma dimensão cultural, em que o machismo, o racismo e o sexismo se impõem como forma de poder e posse sobre a menina ou o menino, além de situações circunstanciais de violência que acabam em estupro. Ou seja, a origem da violência sexual é tão complexa que demanda medidas também complexas para ser mitigada. "Não dá para tratar uma questão que é do campo da psiquê, da psicologia, a partir de uma lógica corporal. Não surte efeito, além de ser antiético. Uma violência não justifica a outra. Se for assim, vamos voltar para a lei de talião, olho por olho, dente por dente. Nós já passamos dessa fase na humanidade."

O que funciona para evitar a reincidência é o tratamento psicológico, a mudança de comportamento social dos agressores. Em relação às vítimas, o que pode mudar o grave cenário em que estamos inseridos no Brasil, em que uma menina é estuprada a cada 15 minutos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, é a adoção de políticas como educação sexual e de gênero nas escolas, pauta rechaçada por autoridades bolsonaristas. Porém, são essas as políticas que funcionam: ensinar às crianças o que é abuso, o que é amor, o que é violência, o que são seus direitos, além do fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, que prevê a denúncia e o acolhimento de meninos e meninas vítimas de violência sexual.

Castração química e Justiça

No âmbito do Direito, a medida não poderia ser mais equivocada. "A castração química é inconstitucional. Não vejo como passar essa medida porque, ainda que seja voluntária, ela é uma lesão corporal de natureza grave, prevista no Código Penal", explica Maíra Zapater, professora de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "É o equivalente a um projeto de lei em que a pessoa teria direito a um determinado benefício prisional se aceitasse amputar uma das mãos, por exemplo. Existe um limite de quanto a pessoa pode dispor do próprio corpo. Portanto, é absolutamente inconstitucional."

Também é ineficaz no contexto do direito penal. "Qualquer tipo de modificação no cumprimento da pena já foi tentado em outros crimes sem qualquer efeito na prática, como tráfico de entorpecentes, um crime equiparado a hediondo, que não diminuiu o tráfico. Nada leva à conclusão de que o endurecimento seja efetivo na prática do crime. Tanto pior em relação à castração química. Ela incorre em dois erros: primeiro o de achar que a dificuldade de cumprimento da pena impacta no processo decisório de praticar o crime; o segundo erro é vincular os crimes sexuais a uma questão de desejo sexual. Esses crimes têm a ver com uma relação de poder e uma imposição de violência. O estupro acontece não por um desejo sexual desenfreado", afirma Maíra.

Para ela, o meio mais eficiente de enfrentar esse problema é a educação sexual e de gênero. Em regra, os crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes são silenciosos, praticados por familiares ou conhecidos, no ambiente doméstico. "É preciso dar à criança o espaço de acolhimento dentro da escola, que é o lugar que ela frequenta e socializa, além de seu lar, para que ela tenha o entendimento sobre o que são os direitos sobre seu corpo. Estudos demonstram que quando crianças e adolescentes têm acesso à educação sexual de qualidade, conseguem compreender que não precisam se submeter àquele tipo de conduta praticada por um adulto. Isso pode modificar uma cultura de estupro. A legislação penal não tem poderes para isso."

Nem a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) acredita no efeito da castração química. Em entrevista de 2019, ela afirmou que a medida não resolve o problema. Na tentativa de amplificar um suposto comportamento "autêntico" e "ousado" para combater a violência sexual, Eduardo e Jair Bolsonaro apenas demonstram que não têm qualquer apreço pelos direitos da infância. A apologia ao trabalho infantil reforça essa conclusão.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.