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Maria Carolina Trevisan

Falta coordenação nacional para conter violência doméstica na pandemia

Maria Carolina Trevisan

20/04/2020 14h07

Ministra Damares Alves – Imagem: Kleyton Amorim / UOL

A quarentena se impõe como uma mordaça para mulheres em situação de violência doméstica. Conviver o dia inteiro com um homem agressor aumenta o risco de serem mortas ou machucadas. O ambiente é agravado pelo consumo de álcool, a dependência financeira cada vez maior e o estresse causado pela crise de saúde, social e econômica. O pedido de socorro abafado pela pandemia passa a se expressar de outras maneiras: pela voz de vizinhos, nas redes sociais ou por meio de aplicativos de denúncia.

Um levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com a empresa de pesquisa Decode Pulse, publicado nesta segunda (20), mostra que, desde o começo da quarentena no Brasil, houve um aumento de 431% nas menções sobre brigas de casais no Twitter. Desde fevereiro, foram coletadas 52.315 menções de terceiros a casos de violência contra a mulher nessa rede social. As postagens foram feitas na maioria das vezes por outras mulheres (67%), entre meia-noite e 3h da manhã (53%) e às sextas-feiras (25%).

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Com a dificuldade de sair de casa, é mais difícil fazer o registro das ameaças e agressões nas delegacias para obter medidas protetivas urgentes. Por isso, houve queda nas denúncias nos primeiros dias de quarentena. Ao mesmo tempo, ocorreu um aumento no atendimento da Polícia Militar para violência doméstica. Significa que, apesar de as mulheres em situação de violência não conseguirem sair de casa para fazer o Boletim de Ocorrência nas delegacias, elas têm lançado mão do 190 para pedir ajuda. Em São Paulo, houve aumento de 44,9% nesse tipo de ocorrência na comparação entre março do ano passado e março deste ano (foram 6.775 chamadas em março de 2019 e 9.817 em 2020). É o que mostram as informações obtidas pelo FBSP, a pedido do Banco Mundial, que teve acesso a registros de cinco estados acerca da violência contra a mulher durante a quarentena.

Houve também crescimento nos casos de feminicídio, revela a pesquisa. No Mato Grosso, por exemplo, aconteceram 10 casos em março deste ano contra 2 em 2019; em São Paulo, foram 19 em relação a 13 no ano passado. Todo esse cenário – que já era crítico antes da pandemia – torna ainda mais urgente a criação e o fortalecimento de políticas de proteção da mulher. As medidas anunciadas pela ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) para o período da pandemia reforçariam a importância do Disque 180, principal canal de denúncia e porta de entrada para apuração de violações contra mulheres. A ministra disse também que um aplicativo foi desenvolvido para evitar que a mulher tenha que falar ao telefone ao denunciar a agressão estando confinada com o agressor. Porém, até o momento da publicação desta reportagem, o aplicativo não estava disponível.

"É importante garantir que o Estado seja célere e tenha respostas rápidas e adequadas para lidar com o problema que está se colocando. Não temos clareza sobre como o Estado vai fazer para acolher essa mulher", alerta Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "Coordenar esses esforços localmente e dar respostas com a celeridade necessária é o grande desafio para os órgãos estatais."

Nos Estados de São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro, agora é possível realizar o Boletim de Ocorrência para violência doméstica pela internet, sem a necessidade de deslocamento e em silêncio. Os casos devem ser priorizados na análise da delegacia da área. Em São Paulo, o projeto "Carta de Mulheres", lançado pelo Tribunal de Justiça, aproxima profissionais da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário (Comesp), que respondem às mulheres com orientações por meio de um formulário. No entanto, mulheres que não têm acesso à internet, não possuem celular, computador ou não sabem ler e escrever estão excluídas dessas possibilidades. 

O 190 ainda é a melhor chance de interromper a agressão contra a mulher e evitar a violência letal. Qualquer pessoa que testemunhe situações como essa pode chamar a polícia. Mas é uma medida limitada. "A mulher precisa ser amparada pela Lei Maria da Penha. Precisamos saber se as mulheres foram protegidas e encaminhadas para outros serviços ou se a polícia fez apenas uma mediação, o que não tira a mulher da vulnerabilidade", explica Samira.

É também necessário um procedimento nacional padrão, que regulamente o atendimento das polícias em todos os estados. "Na falta desse padrão nacional, é função do Ministério da Justiça propor essa padronização." Seria o caso de o ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) atuar em conjunto com a ministra Damares e dispor os meios que já existem, sem muitos gastos, para chegar a um protocolo de ação junto às polícias.

Além disso, seria fundamental ter clareza sobre os abrigos para mulheres em situação de violência. Na França, por exemplo, durante a quarentena, quartos de hotéis servem como casas de acolhida para essas mulheres. "Me parece que isso seria simples de coordenar e de imediato resolveria o problema dessas mulheres que estão em situação de alta vulnerabilidade por causa da violência. Mas isso só funcionaria se houvesse uma instância de coordenação", afirma Samira. "Esse é o grande desafio: fazer com que prefeituras e estados conversem entre si." Difícil esperar do governo federal um posicionamento que viabilize nacionalmente essa coordenação se o próprio presidente da República se contrapõe a protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Espera-se, então, que governos e prefeituras consigam se ajustar para proteger as mulheres e as crianças em situação de violência doméstica. É para ontem.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.