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Maria Carolina Trevisan

Execução de Marielle evidencia descaso histórico com população negra

Maria Carolina Trevisan

15/03/2018 08h37

Mais um corpo negro tomba diante da violência letal. Na noite de quarta-feira (14), a vereadora negra Marielle Franco (PSOL), 38 anos, foi morta a tiros no Centro do Rio de Janeiro.

Marielle foi executada. Vinha denunciando a violência policial. Questionava o modelo de guerra às drogas, empregado na operação de intervenção federal a que está submetido o estado do Rio de Janeiro. Ela sabia que nessa "batalha" – termo usado pelo presidente Michel Temer ao anunciar o decreto da intervenção – são os mais pobres e mais negros que têm direitos violados. Podem perder a própria vida.

 

Socióloga, a vereadora foi a quinta mais votada para a Câmara do Rio. Foi nomeada relatora da Comissão da Câmara de Vereadores do Rio criada para acompanhar a atuação das tropas na intervenção federal.

No último sábado (10) denunciou a truculência de policiais contra moradores da Favela de Acari em abordagens. Ela se referia a atuação do 41º BPM (Irajá), um dos mais violentos da corporação. É o batalhão que mais mata no Rio. Contabilizou cerca de 450 mortes nos últimos cinco anos, de acordo com o ISP (Instituto de Segurança Pública). É o maior índice de letalidade policial do Estado do Rio de Janeiro.

Na denúncia, Marielle dizia que os PMs estariam "aterrorizando e violentando" moradores de Acari. Ela, que nasceu no Complexo da Maré, sabia que a violência contra os moradores das favelas do Rio é constante. Piora muito diante da população negra: são os jovens negros que mais morrem assassinados no Brasil. Dos quase 60 mil homicídios anuais, 70% correspondem a esse grupo populacional.

"Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior", denunciou Marielle.

"Os governos, em geral, não entendem os territórios onde vivem as mulheres negras como locais que deveriam ser foco das políticas públicas", alerta a socióloga Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia.

"Esses lugares são militarizados, criminalizados e depois se tornam campo aberto de violação de quase todos os direitos. Essa ausência das políticas, dos investimentos locais, da possibilidade do emprego e do lazer ali, o corte das linhas de transporte e outros meios de mobilidade urbana têm o papel de impor o isolamento social, econômico, político e cultural das comunidades onde as mulheres negras estão fazendo das tripas coração para sobreviver com seus filhos, filhas, netos, netas, que dependem diretamente do fazer, do labor da mulher negra para sobreviver", explica Vilma.

Mães de Acari

Acari é historicamente alvo da violência praticada pelo Estado. Em julho de 1990, o desaparecimento forçado de 11 jovens (sete adolescentes, a mais nova tinha 13 anos) da favela de Acari ficou conhecido como "Chacina de Acari" e marcou a história da comunidade. Eles foram levados por um grupo de policiais e seu paradeiro nunca foi descoberto. A investigação foi encerrada sem que ninguém fosse responsabilizado e levado à Justiça. O crime prescreveu em julho de 2010.

Na ausência de Justiça, as mães dos jovens iniciaram uma investigação por conta própria. São as "Mães de Acari". Uma delas, Edméia da Silva Eusébio, negra, foi assassinada à luz do dia, no centro da cidade, após ter obtido informações sobre os assassinos de seu filho, Luiz Henrique da Silva Eusébio. Para a Anistia Internacional, "a chacina de Acari revela a incapacidade do Estado brasileiro de garantir justiça para os casos de violência policial, desaparecimentos forçados e mortes por grupos de extermínio no País".

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro recebeu a denúncia do homicídio de Edméia em 11 de julho de 2011. Sete pessoas estão sendo acusadas, a maior parte policiais militares, incluindo o ex-comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar, então responsável pelo policiamento da região de Acari. Depois de 23 anos da morte de Edméia, o processo continua na fase de instrução e julgamento e ainda não foi encaminhado para júri.

De quem é a responsabilidade?

Quem vai investigar o caso da Marielle? Sob intervenção federal, essa deveria ser uma competência da Polícia Federal. O ministro Raul Jungmann disse que colocou a PF à disposição do interventor federal General Braga Netto, responsável pelas polícias do Rio neste momento. "Todos os defensores de direitos humanos correm risco no Rio neste momento", afirma o professor Guilherme de Almeida, de Direitos Humanos, da Faculdade de Direito da USP. "A Procuradora Geral da República deveria pedir ao STJ deslocamento de competência imediatamente para que a Polícia Federal possa investigar o caso."

Por enquanto o que se viu foi um empurra-empurra. Quem assume a responsabilidade?

Marielle é mais uma mãe negra que tem a voz – e a vida – silenciadas.

Marielle Franco denunciou abusos de policiais do batalhão que mais mata no Rio 

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.