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Maria Carolina Trevisan

Estado deveria acolher criança grávida, mas ela foi violada novamente

Maria Carolina Trevisan

17/08/2020 17h11

Mulheres protestam a favor de menina vítima de estupro

A criança de dez anos que foi vítima de abuso sexual constante praticado por um familiar durante, no mínimo, quatro anos, só teve a violência revelada porque engravidou. Não fosse isso, talvez o abuso durasse muito mais tempo. Sempre em silêncio, como costuma se dar a violência sexual contra crianças.

Mas o calvário pelo qual a menina está passando parece não ter fim. Além de lidar com as sequelas físicas e psicológicas dos abusos e da interrupção de uma gravidez fruto de estupro, ela também terá de enfrentar a fúria dos que não concordam com o aborto legal. É violência atrás de violência, numa somatória cruel, que considera qualquer outra coisa, menos os direitos dessa menina. A Constituição Federal brasileira afirma, em seu artigo 227, que crianças e adolescentes são prioridade absoluta e devem ser protegidos pela família, pela sociedade e pelo Estado. Ela tem direito à dignidade.

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A ex-funcionária do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Sara Giromini, conhecida como Sara Winter e investigada no inquérito que apura fake news e atos antidemocráticos, revelou o local onde o procedimento para interrupção da gravidez seria realizado. Também disse o nome da menina, o que é vedado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Diz o artigo 17: "O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais". Além disso, Sara Winter também revelou dados de um processo que corre em sigilo na Justiça, por conta da pouca idade da menina.

Na frente do hospital onde a criança está internada, deputados da Assembleia Legislativa de Pernambuco tentaram impedir o procedimento invadindo o local. Foram identificados em imagens coletadas por movimentos de defesa dos direitos humanos e da mulher, que fizeram vigília para tentar conter esse tipo de atitude. São os deputados estaduais Clarissa Tércio (PSC) e Alberto Feitosa (PSC).

A própria ministra Damares Alves levou o caso a público em suas redes sociais, se identificando com a violência, mas esquecendo que ela fala de sua dor como adulta que teve tempo de processar a violação que sofreu.

"Estou chocada. Essa exposição que a menina está vivendo é como se ela estivesse novamente sendo estuprada", afirma a ginecologista e obstetra Albertina Duarte Takiuti, coordenadora do programa de saúde do adolescente do estado de São Paulo, com mais de 40 anos de experiência. Albertina diz que nunca viu o sigilo acerca de uma criança ser quebrado dessa forma. "Agora, ela vai se sentir como se fosse culpada pela violência que sofreu. Como profissional de saúde, a minha vontade é ir pra lá e abraçar essa menina."

É de assistência, acolhimento, cuidado, atenção, carinho, amparo que a menina precisa. Ela só tem dez anos. Albertina conta que ofereceu o serviço paulista à menina e que o programa continua a sua disposição.

"A agressão que ela sofreu deixa marcas físicas e psicológicas profundas, que jamais serão apagadas. O que eu percebo em muitas mulheres que são abusadas sexualmente, vítimas de estupro, é a dificuldade de engravidar, dor na relação sexual, problemas no relacionamento amoroso, na aceitação do próprio corpo, mais cólicas na menstruação. É como se o útero chorasse", explica.

Muitas guardam o abuso como um segredo que machuca para sempre. Passam-se anos e elas sentem o cheiro do agressor impregnado. Ou têm sequelas que as impedem de se relacionar em sociedade novamente, como dificuldade em conter a urina (e, assim, evitar que o outro se aproxime).

Se para uma mulher adulta é tão difícil, para uma criança é infinitamente mais complicado e delicado. Uma dor que não se sabe onde vai dar. Para Albertina, o importante agora é dar apoio para os dias que se seguem ao procedimento de interrupção da gravidez.

"É preciso se solidarizar com essa menina vítima. Agora, ela está grávida de uma tristeza profunda, de uma dor terrível, de uma discriminação imensa. Como vai ser quando ela voltar para a escola, para casa? O Estado tem que proteger a criança, saber se tem irmãos, se também sofreram violência, acolher essa família, dar acesso a psicólogo, a assistente social."

Direito à dignidade

Deputados tentam invadir hospital no momento em que procedimento acontece

Entre a descoberta da gravidez e a conclusão do aborto legal se passaram infinitos oito dias. Em um atendimento digno, sabendo que cada dia é como um ano para quem carrega uma gestação fruto de violência e que o tempo funciona contra a saúde da menina, ela teria sido perguntada sobre como se sente, sem se insistir em detalhes dos estupros recorrentes, atendida por profissionais treinados para lidar com crianças, além do protocolo de exames e orientação aos pais.

Mas ela teve que esperar dias enquanto negociavam a sua vida. "Se uma mulher que foi estuprada aos 30 anos, depois de 15 ela me diz que ainda sente o cheiro do estuprador no corpo, imagina a criança?", questiona Albertina.

Há risco de depressão, apatia, anorexia. Ela terá de recuperar o sentido da liberdade porque viveu acuada por quatro anos. Também terá de entender novamente o que é o amor. "Poucos casos foram registrados com tanta violência e tanta violação de direitos", afirma a socióloga Graça Gadelha, especialista em direitos da infância há 30 anos. "Eu nunca tinha acompanhado uma situação que envolvesse tanto conservadorismo, tamanha ausência de princípios elementares do ponto de vista de violação de direitos humanos. São consagrados internacionalmente pela essência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo primado básico é a integridade."

A gravidez foi o limite da violência sofrida pela criança. Mas ela segue sendo vítima de violações: do médico que se recusa a fazer o aborto legal, do hospital que não aceita fazer o procedimento, da necessidade de se transferir a criança para outra cidade, com todos os riscos, sem que se observe todo o conjunto de sofrimento e de dor pelo que essa menina passa.

"É desalentador, é triste. Trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente uma situação dessa gravidade e dessa natureza, com  consequências imprevisíveis, sem o devido acompanhamento, certamente terá transtornos muito graves no seu desenvolvimento biopsicossocial. É muito triste a gente ver uma sociedade que não cuida de suas crianças", conclui Graça. 

Nenhuma mulher, muito menos uma menina de dez anos, quer tornar público um estupro. Ninguém que sofreu estupro esquece essa violência. É ferida para a vida toda.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.