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“Apavorado”: com o risco da Covid, presos enviam cartas de amor e despedida

Maria Carolina Trevisan

29/04/2020 13h25

Internos no pátio do presídio de Franco da Rocha (Grande São Paulo) – Foto: Evelton de Freitas/Folhapress

"Estou apavorado com o que pode vir. Eu quero que você saiba que você foi a melhor mulher do mundo. Em tão pouco tempo me fez muito feliz e realizado, até aqui só me deu orgulho. Me sinto o homem mais feliz do mundo. Te amo e obrigado por tudo o que você fez por mim. Por ter me dado uma oportunidade de ter um filho com você. Você é uma mulher maravilhosa. Até as suas brigas estão fazendo falta. Te amo, te amo. Espero que você nunca se esqueça de mim. Porque aonde eu estiver nunca vou te esquecer."

Este é o trecho de uma carta enviada no dia 19 de abril por um homem que cumpre pena em um estabelecimento penitenciário de São Paulo para sua companheira. É uma carta de amor e de despedida. Ele explica a situação em que se encontram os presos onde ele está: cada vez mais doentes, cada vez mais abandonados. E não vê outro desfecho que não seja a doença e a morte. É triste. É o retrato da negligência do Estado com pessoas sob sua custódia. No limite, é a morte como pena. A coluna teve acesso a dezenas de cartas como essa.

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As celas superlotadas não permitem o isolamento de quem apresenta sintomas, como sugeriu o ex-ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), que pulou do barco em pleno naufrágio. Faltam mais de 312 mil vagas no sistema prisional brasileiro. Nas enfermarias também não cabe mais ninguém. Até os funcionários estão adoecendo e perdendo a vida. O desespero é tanto que os servidores choram, contam as cartas. "Tem 30 presos isolados esperando as confirmações. Tem funcionário chorando, falando que tem família, que está com medo de pegar o vírus. E nós não temos ninguém. A única coisa que nos resta é rezar. E pedir a Deus que nos proteja. Proibiram até a visita do advogado. A única pessoa que poderia fazer algo por nós", diz um outro trecho.

Em outra carta, fica evidente a falta de cuidado com a saúde dos presos. Nem aqueles que têm sintomas muito claros de Covid-19 estão tendo acesso a cuidados. "Minha vida, eu não sei mais o que fazer. Estou há 20 dias com febre. Ela vai e volta. De vez em quando, dor de cabeça e tosse seca. Não sinto gosto de nada. E nem cheiro de nada. Estou apavorado. Não sou só eu. Tem vários com esses sintomas, vida."    

São muitos registros como esses. Uma conta no Facebook chamada "Amor atrás das grades" compartilha a angústia dessas mulheres. Não são poucas. Desde que as visitas estão suspensas, elas têm dificuldade em ter notícias dos maridos, namorados, irmãos, filhos. Quem está dentro do sistema não sabe das condições de saúde dos parentes. Nem receberam mascaras de proteção – parte delas produzidas por eles mesmos. Também dependem do envio do "jumbo" para obter utensílios de higiene (como sabão, papel higiênico, pasta de dente), medicamentos e alimentação. Não há material de limpeza suficiente para desinfectar as celas. Mas há muitos relatos de colegas com dor de cabeça, dor no corpo, febre, perda de paladar, de olfato, tosse, dor no pulmão. Em São Paulo, a maior população carcerária do país, com mais de 234.500 presos, quem tinha direito ao regime semiaberto, com a pandemia, acabou tendo que ficar dentro da prisão, com poucas garantias de acessar o regime domiciliar conforme recomendação do Conselho Nacional de Justiça. Seria mais lógico, razoável e digno para um ambiente em que faltam mais de 86 mil vagas. 

"Oi minha rainha, espero que esteja tudo bem com você e as crianças. Eu vou indo. Isolado do mundo. Sem saber o que está acontecendo. Os dias que não passam são os piores dias da minha vida. Ninguém está preparado para passar essa que estamos passando. Nenhum ser humano se importa com nós", descreve uma das cartas. "Bom, meu amor, eu não queria entrar nesse assunto. Mas não consigo esconder nada para você e até mesmo para não te preocupar. Mas tenho compromisso com a verdade. Vida, em 2011 eu tive um problema de saúde, tive tuberculose e água no pulmão. Passei pelos tratamentos necessários e superei a tuberculose. Só que de uns dias para cá estou sentindo muita dor no pulmão. Essa noite mesmo quase não dormi com dor. Quando amanheceu, tomei um remédio e deu uma amenizada. Hoje tentei ir para a enfermaria só que não consegui, tinha muito atendimento. Não quero que fique preocupada, vou fazer de tudo aqui para ver isso e ver o porquê está vindo essa dor. Não fala nada pra minha mãe pra não preocupar ela, tá minha vida." O relato demonstra a preocupação, a angústia, o descaso e a desesperança.

Com a falta de medidas para conter a pandemia nos presídios, resta pedir um milagre. "Tem mais uns cinco ou seis amigos na cela que estão [se sentindo] ruim também, fora uns 30 no raio que estão mals também. Então, pede pra minha mãe e pra meu pai fazerem uma corrente de oração bem forte, pois o negócio está sério. Olha, amor, é como tu diz, são poucos meses que faltam, porém que nos deixam muito distantes um do outro pelo fato de não podermos nos ver, nos abraçar, nos tocar e nos amar. Mas tenho muita fé em Deus que mais essa barra que estamos enfrentando será para honra e glória do nome Dele, eu não estou com medo de pegar esse vírus pois sei que Deus não iria me curar milagrosamente de uma úlcera pra me deixar falecer com esse vírus", relata outro homem privado de liberdade.

Não há previsão de testagem dos presos. Não há sequer orientação. De acordo com relatos dos familiares, os presos que ficam doentes são isolados em suas celas e ficam proibidos de tomar ar e banho de sol, o que piora o estado de saúde das pessoas. Os pavilhões estão superlotados. Tanto que, em muitos casos, não há espaço para deitar nem no chão e os detentos improvisam redes.  Os policiais penais também relatam medo, falta de equipamentos de proteção e de testes. "Oi meu grande e maravilhoso, mais precioso amor. Como está sua saúde? E seu psicológico, está melhor? Amor, é só Deus na nossa causa pois está um comentário que foram afastados 2 agentes por causa desse vírus e tem um monte de parceiros com sintomas. Porém, a enfermaria não suporta o tanto de pessoas que estão subindo com sintomas. Então, nem todos que estão com sintomas estão isolados. O barato tá louco, amor. Nós estamos sem saber o que fazer.

Não há dados atualizados. A população prisional brasileira alcançou a marca de 748.009 presos em dezembro de 2019 e estima-se que o número de testes realizados no sistema prisional corresponde a menos de 0,1% dos custodiados.

Muitas vezes, não há sequer informações sobre remoção de detentos doentes para hospitais. A coluna ouviu a história de uma mulher que descobriu por acaso que o marido estava internado em estado grave no interior de São Paulo. Dias depois, ele morreu. Sozinho e sem despedida. A esposa lamentou nem ter tido direito a orar por ele.

Novo ministro terá de gerir crise nos presídios com desencarceramento

O ex-ministro e ex-juiz Sergio Moro sempre defendeu o encarceramento em massa. Em sua gestão no ministério da Justiça e Segurança Pública, não demonstrou preocupação em melhorar as condições do sistema prisional – reconhecido pelo STF como incompatível com a vida. Defendeu como única medida para melhorar a superlotação a construção de mais presídios. Trata-se de uma iniciativa que não tem fim dentro da lógica punitivista, em que os Tribunais de Justiça preferem privar uma pessoa de liberdade mesmo quando ela tem direito a penas alternativas. As defensorias e pesquisas acadêmicas têm demonstrado essa predileção.

Na pandemia, uma das iniciativas defendidas pelo ex-ministro é o isolamento de presos idosos e com a saúde precária em contêineres. Mas o uso desse tipo de arquitetura foi anteriormente, em 2009, considerado tortura. É uma estrutura que segue amontoando pessoas, não tem ventilação adequada e a temperatura pode chegar a 50 graus. Imagine quem está doente em um ambiente como esse? A recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), editada em 17 de março, é o desencarceramento dos presos que não tenham cometido crimes violentos ou com grave ameaça e que estejam em grupos de risco.

"A manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde coletiva, haja vista que um cenário de contaminação em grande escala nos sistemas prisional e socioeducativo produz impactos significativos para a segurança e a saúde pública de toda a população, extrapolando os limites internos dos estabelecimentos. Além disso, é acentuada a responsabilidade do Estado em estabelecer medidas adequadas a esse cenário", afirma nota técnica conjunta do CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público, encaminhada nesta terça-feira (27), diante da lenta implementação das medidas recomendadas. Sobre a possibilidade de uso de contêineres, a nota diz: "Trata-se de estrutura cujo uso para aprisionamento de pessoas já foi expressamente rechaçado em outras oportunidades, por representar condição degradante e violadora de direitos humanos."

O CNJ alerta para o risco de uma "tragédia humanitária sem proporções", reforça a importância de preservar a dignidade da pessoa humana e diz que o Estado brasileiro pode ser responsabilizado perante os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, notadamente a Corte Interamericana de Direitos Humanos. "O estado de calamidade decorrente da pandemia Covid-19 não outorga salvo conduto ao Estado brasileiro para desrespeitar direitos das pessoas sob sua custódia, submetendo-as a situação ainda mais vulnerável do que as que já se encontram em um sistema reconhecido como inconstitucional." A nota técnica é assinada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, Dias Tóffoli, e pelo procurador geral da República, Augusto Aras, que é também presidente do Conselho Nacional do Ministério Público. 

O novo ministro da Justiça, André Mendonça, que não tem experiência na área de segurança pública, terá que lidar com essa crise de forma urgente. Enquanto isso, as pessoas continuam adoecendo e perdendo a vida. As cartas de despedida não param de chegar. "Meu amor, espero poder te olhar nos olhos novamente e dizer que te amo mais que tudo meu amor, do seu marido que nunca te esquece…"

O Estado precisa assegurar o direito das pessoas dizerem outra vez "eu te amo". Olhos nos olhos

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.