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Bolsonaro acerta ao vetar lei que obriga denúncia de violência à mulher

Maria Carolina Trevisan

14/10/2019 14h33

Marcha das mulheres Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) vetou, na quinta-feira (10), um projeto de lei que altera a Lei 11.340 (Maria da Penha) de 2006 e determina que profissionais de saúde registrem indícios de violência contra a mulher em seu prontuário. A finalidade seria de "estatística, prevenção e apuração da infração penal".

O PL, de autoria da deputada Renata Abreu (Pode-SP), determina que "o profissional de saúde que identificar sinais, ou suspeitar da prática de violência contra a mulher, deverá efetuar o registro no prontuário de atendimento da paciente e notificar a direção da instituição de saúde onde ocorreu o atendimento da identificação de indícios de violência contra a mulher", diz o ofício. Ao ser notificada, a instituição de saúde teria 24 horas para comunicar o fato às autoridades policiais, que deveriam informar a Secretária de Segurança Pública.

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Dessa vez, o veto do presidente é correto. Trata-se de mais uma violência submeter uma mulher, fragilizada por uma agressão tão grave que a leva a procurar ajuda médica, a essa obrigatoriedade. Primeiro, porque quem tem que decidir se vai ou não denunciar o agressor –geralmente o companheiro ou ex-companheiro– tem que ser a mulher. Mais ninguém pode ter essa autorização. A compulsoriedade é um desrespeito ao movimento e ao desejo da própria mulher, que pode não querer ser identificada, porque só ela sabe as pressões que enfrenta.

Segundo, porque o Estado não tem como garantir a vida dessa mulher depois do atendimento de saúde. Que reação terá o homem ao saber que foi denunciado? Ela estará sujeita à fúria, aos gatilhos que levam a novas e mais graves violências, subordinada a ameaças e chantagens de todas as ordens e temerá pelos filhos –o elo mais delicado de todo o processo que envolve a violência doméstica.

Terceiro, porque a violência contra a mulher, geralmente silenciosa, é muito complexa. Envolve delicadezas que um profissional de saúde ou um policial pode não compreender. Relaciona-se com humilhação, vergonha, medo (muito medo) e dependência financeira. Tem a ver com proteger as crianças.

Isso tudo fora a imposição da quebra do sigilo entre médico e paciente, preocupação entre os profissionais de saúde.

O Estado deve tratar de acolher a mulher que sofre violência. De dar assistência para que ela se sinta segura em fazer a denúncia, que ela compreenda que há uma rede que a protege. Para isso, os esforços precisam se dar na capacitação de profissionais de saúde, no atendimento psicológico, no fortalecimento das delegacias da mulher, na conscientização das autoridades policiais e, principalmente, na mudança cultural que permite ainda hoje que um homem violente física, sexual ou psiquicamente uma mulher. Significa atuar nas escolas, na formação dos jovens e também trabalhar com os agressores. É atuar no sistema de Justiça, que muitas vezes não compreende os cuidados que envolvem, por exemplo, um pedido de medida protetiva. Precisamos cuidar de aplicar corretamente a Lei Maria da Penha em todos os seus aspectos. É uma das legislações mais completas para tratar desse tipo de violência.

Tudo o que for compulsório no que concerne à violência contra a mulher deve ser olhado com muito cuidado. Atualmente, a legislação determina a notificação obrigatória de casos de violência contra a mulher. Mas não a expõe a novos riscos.

Reação da oposição

Em consonância com os posicionamentos dos ministérios da Saúde e da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Bolsonaro argumentou que a medida "contraria o interesse público ao determinar a identificação da vítima, mesmo sem o seu consentimento e ainda que não haja risco de morte, mediante notificação compulsória para fora do sistema de saúde, o que vulnerabiliza ainda mais a mulher, tendo em vista que, nesses casos, o sigilo é fundamental para garantir o atendimento à saúde sem preocupações com futuras retaliações do agressor, especialmente quando ambos ainda habitam o mesmo lar ou não romperam a relação de afeto ou dependência". Está correto.

Deputados da oposição, a bancada feminina e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, reagiram ao veto e trabalham para derrubá-lo. "Ao contrário do que diz Bolsonaro ao vetar a lei da notificação em 24 horas, as mulheres estão expostas quando se impõe o silêncio à violência, caminho para o feminicídio. E não obriga a medidas urgentes e graves para prender e responsabilizar o agressor", disse a deputada Maria do Rosário (PT-RS), que sugeriu que o governo estaria criando "subterfúgios para vetar uma lei tão importante".

Algumas deputadas estaduais começaram a rever posição após discussões internas. A Monica Francisco (PSOL-RJ) publicou uma errata.
Em 2018, foram 263.067 casos registrados de lesão corporal dolosa relacionados à violência doméstica. É necessário que o Estado crie as condições para a denúncia e o acolhimento. O que pode acontecer se o Congresso derrubar o veto do presidente é que muitas mulheres deixarão de procurar os serviços de saúde com medo de serem identificadas e terem suas vidas ligadas a denúncias sem estarem protegidas. Não é assim que se trata quem está vulnerável.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.