Como cresce uma criança que convive com a violência em casa?
Maria Carolina Trevisan
10/09/2019 10h00
A violência contra a mulher ocorre muitas vezes em silêncio, invisível, como mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Acontece dentro de casa, entre paredes que escondem a vergonha e o medo. Além de abusos, ameaças e humilhações recorrentes, pode conter violência sexual e, em seu estágio mais grave, terminar em feminicídio. Funciona em escalada. "Quando a mulher é morta pelo marido, ela já apanhou e passou por outros abusos, até de ameaças, sempre presentes", diz a psicoterapeuta de crianças, adolescentes e família Ana Olmos. "Certamente, os filhos presenciaram essas agressões."
As principais testemunhas dessa convivência agressiva são as crianças da família. Quando vêem a mãe ser humilhada ou espancada, levam dentro de si um buraco. Aprendem com isso. "Em geral se trata de um vínculo que foi constituído dentro da violência", afirma Olmos. Elas perdem o parâmetro de convivência saudável e passam a se referenciar no pai agressor ou na mãe agredida. Mas estão aniquiladas enquanto sujeitos. Se o entorno da família é também violento, a criança vive esse quadro potencializado. Aí, fica difícil enxergar um jeito de existir.
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O remédio para essa dor enorme e profunda da criança ou do adolescente que conviveu com a violência é o amor e o amparo. "A criança precisa encontrar alguma fonte de reparação: pode ser uma tia, uma avó, alguma possibilidade de reparação daquele coração partido, daquela agressão visceral, daquela ameaça de aniquilamento", afirma a psicoterapeuta. O importante é que seja uma figura que possa restaurar a função materna do acolhimento, da segurança. Sem isso, ela terá dificuldade de cuidar, de amar e de ser amada. Como se entrasse numa espiral de dor sem cura.
No caso de famílias mais vulneráveis, com poucos recursos, o Estado precisa garantir proteção a essas crianças. Acolher e tentar restabelecer vínculos familiares é o primeiro passo. Se não for possível, elas precisam ser encaminhadas aos abrigos, além de ser acompanhadas pelo conselho tutelar e entrar no mapa da rede de proteção da infância e adolescência. Por isso, os conselhos dos direitos de crianças e adolescentes são tão importantes. Sem esses amparos, a chance de que a violência se reproduza e que a vida termine em tragédia é muito grande. Implica perder a própria vida. Ou viver em tristeza, quando se precisa de amor.
Sobre a autora
Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.
Sobre o blog
Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.