Falta de dados camufla aumento da violência contra população LGBTI+
Maria Carolina Trevisan
05/06/2019 12h02
Parada Gay no Rio – Foto: Luiz Gomes/Fotoarena/Estadão conteúdo
Uma das evidências mais importantes demonstradas pelo novo Atlas da Violência é que existe um apagão de dados oficiais que ajudem a compreender a violência contra a população LGBTI+. Isso mostra um claro descaso do poder público com essa parcela dos brasileiros. Sem entender o quadro, fica difícil construir políticas públicas que mitiguem a violência. Ainda assim, a pesquisa conseguiu captar o aumento desse tipo de violência, unindo registros de denúncia do Disque 100 (do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) a informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde.
Houve um forte aumento de denúncias no Disque 100 nos últimos seis anos: de 5 casos em 2011, o serviço registrou 193 casos em 2017; um crescimento de 127%. O Sinan indica que em mais de 70% dos crimes de 2015, os autores das agressões eram do sexo masculino e que mais de 90% das violações aconteceram em áreas urbanas. O levantamento também mostra uma prevalência de pessoas do sexo feminino e de negros como vítimas. Esse último ponto confirma — como em todos os recortes analisados pelo Atlas — a persistência do racismo que estrutura a sociedade brasileira, permitindo que 75% dos mais de 65 mil homicídios anuais no Brasil tenham negros e negras como vítimas. Ao não desenhar políticas para combater esse quadro, o Estado se omite de seu papel.
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Fonte: Atlas da Violência
Pela primeira vez, o Atlas incluiu uma seção específica sobre a população LGBTI+. Foi uma maneira de chamar a atenção para a falta de dados e também de agendar demandas urgentes. "Primeiro precisamos conhecer o quadro para saber o tamanho dessa violência, descobrir suas especificidades e aí sim atuar sobre o problema", explica a socióloga Thandara Santos, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo estudo em parceria com o IPEA. "Precisamos de estatísticas oficiais, que informações sobre identidade de gênero e orientação sexual constem não só nos levantamentos feitos sobre a população geral, como os do IBGE, mas também nos registros de ocorrência das polícias e nas declarações de óbito do sistema de saúde. Hoje essa clivagem não importa ao poder público."
Homofobia como crime
Um dos meios de dar visibilidade para a violência que a população LGBTI+ sofre no Brasil seria determinar que homofobia é crime, garantem os especialistas. Essa possibilidade está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Assim como aconteceu com a Lei do Feminicídio, a inclusão da questão no sistema de Justiça colocaria o problema no mapa de ações do Estado.
"Se a legislação penal não pode ser uma solução para as todas as questões sociais e para a busca de igualdade, pode ser uma resposta imediata para conter o avanço dessa violência. A criminalização da homofobia teria um caráter imediato e preventivo para combater essa invisibilidade e dar início a um debate para a formulação de outras políticas", afirma Thandara. As pessoas estão morrendo agora assassinadas por motivações ligadas ao ódio.
Para a advogada e socióloga Fernanda Emy Matsuda, professora de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o sistema de justiça criminal tem atuação muito limitada. "Essa não é a única solução possível, o sistema de Justiça não vai dar conta de resolver o problema. Mas o sistema de Justiça comunica e tem uma capacidade de mudar a opinião pública por meio da condenação. Mas não pode trabalhar isoladamente", alerta Fernanda. Essa seria uma forma de nomear a violência invisível.
A criminalização, no entanto, tem efeito limitado e pode não ter impacto se não for associada a outras políticas. É fundamental que identidade de gênero, orientação afetivo-sexual, desigualdade entre homens e mulheres sejam, por exemplo, tratados no âmbito da escola e da universidade. "Temos tido dificuldade de pautar esse tema. Isso prejudica de uma forma violenta o reconhecimento dos direitos da população LGBT. Cria um ambiente em que há uma permissividade com a agressão contra essas pessoas", afirma Fernanda. Elas estão sendo mortas pelo discurso preconceituoso e pelo descaso.
Sobre a autora
Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.
Sobre o blog
Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.