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Como as declarações de Bolsonaro atingem as mulheres torturadas na ditadura

Maria Carolina Trevisan

29/03/2019 07h25

– Quantos o senhor matou?
– Tantos quanto foram necessários.
– Não se arrepende de nenhuma morte?
– Não.
– Quantos o senhor torturou?
– Difícil dizer a quantidade. Mas mulher, não.
– Por quê?
– Porque há uma diferença muito grande em interrogar um homem e uma mulher. A mulher não vai entregar a pessoa que ela ama. O homem, em duas ou três horas, entrega qualquer um. Ganhar uma mulher é uma coisa assim do outro mundo. Mulher subversiva para mim é homem.

Esse é um trecho do depoimento do coronel Paulo Malhães à Comissão Nacional da Verdade, em 2014. O ex-agente do Centro de Informação do Exército, que atuou em missões de extermínio de opositores da ditadura e também na Casa da Morte, admitiu ter praticado tortura, assassinatos, ocultação de cadáveres e mutilações. Foi apontado como o responsável, por exemplo, por colocar jacarés sobre os corpos nus de mulheres durante as sessões de tortura.  

Os agentes da repressão tinham uma fúria especial contra as mulheres. Os relatos de crueldade são inimagináveis. A condição de ser mulher aumentava as possibilidades de tortura. Além dos choques na boca, ouvidos, dedos, seios, ânus e vagina, do pau de arara, da cadeira do dragão, do "telefone" e da "geladeira", os torturadores muitas vezes praticavam violência sexual e estupro.

Mas entre todos os métodos utilizados contra as mulheres, o mais cruel era usar os filhos como estratégia para obter informação. Prendiam mãe e filho juntos, obrigavam crianças a assistir pais e mães sendo torturados, desapareciam com os filhos sem informar seus paradeiros e ameaçavam matá-los  maltratavam as grávidas para que abortassem. Diziam que "comunista não pode engravidar". Mexer com os filhos é o terror maior de qualquer mãe. 

É preciso ser muito forte para resistir, como contou Amélia Teles no depoimento a seguir, para a Comissão Nacional da Verdade. 

Trauma permanente

A dor causada por essas situações é tamanha, que a ferida nunca cicatriza. O trauma é tão profundo que passa para os filhos e netos de quem sofreu tortura no cárcere. Muitas mulheres contam que levaram anos até conseguir falar das violações sexuais que sofreram. "Ouvir outras mulheres me deu uma força para que eu lutasse contra qualquer violência e violação dos direitos humanos. Consolidou minha consciência política, a capacidade de me indignar diante das injustiças. É o que me movimenta ainda nos dias de hoje", contou Amélia Teles na Comissão Nacional da Verdade. Seus filhos, Janaína, na época com 5 anos, e Edson, com 2, foram levados à sala de tortura para ver a mãe e o pai, César, serem torturados. Essa foi a rotina por cerca de 10 dias. À Amélia, diziam que sua filha já estava "num caixãozinho". 

A memória dos tempos de prisão não desaparece. Ecoa permanentemente, como os gritos que vinham das salas de tortura. São lembrados também nas sequelas pelo corpo, resultado da tortura. "Não éramos terroristas. Éramos jovens idealistas com o dever de lutar contra a ditadura", relatou à CNV, Darci Myaki. Ela carrega no corpo as marcas daqueles tempos.

"É muito íntimo e duro falar sobre isso, mas acho que tem que ser registrado, por mais que me doa. Me tornei uma mulher estéril e sem companheiro. O olhar frio dele [Capitão Ubirajara] me perseguiu durante muitos anos." 

Política de assombração

Cartaz no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, sobre as ossadas encontradas em Perus. O presidente do Chile, Sebastian Piñera, condenou essa atitude – Foto: reprodução

Quanto menos se reconhece os horrores da ditadura, mais profunda fica a ferida que esse período provocou. Por isso, quando o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, diz que o país vai comemorar (ou rememorar, como corrigiu) o dia da tomada do poder pelos militares, em 1964, está causando sofrimento em boa parte dos brasileiros. "Para alguém que carrega essa dor, a comemoração dessa data é profundamente retraumatizante", explica Maria Beatriz Costa Carvalho Vanucchi, psicanalista, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e terapeuta das Clínicas do Testemunho, que deram atenção psíquica às vítimas da violência de Estado.

"Se a não punição dos responsáveis já era um fator de manutenção do traumático, a comemoração da data é algo muito violento", afirma a psicanalista Maria Beatriz Costa Carvalho Vanucchi. 

Negar o período mais sombrio da história do Brasil é como estar em tortura permanente. Esse trauma se mantém vivo e pulsante pela negação do que ocorreu, na falta de punição dos responsáveis, na não reparação e ao não reconhecer a ditadura e o golpe militar. Sobrevive tão profundamente que se reflete nos corpos dos que resistiram. Passa de geração em geração. "A negação é o segundo tempo do trauma. É terrível. A pessoa sente como se aquilo que ela viveu não tivesse lugar", diz Maria Beatriz. É como uma assombração permanente. "Falar sobre o trauma é reconstruir a história. Mas para que isso aconteça é preciso ter uma estrutura de suporte bem feita porque é uma experiência muito dolorosa." O mesmo se aplica aos filhos e netos dos presos políticos da ditadura. Aqueles que puderam compreender sua história estão mais protegidos do trauma. 

Têm responsabilidade sobre a manutenção desse trauma o governo brasileiro e também a Justiça. Recentemente o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, afirmou que prefere chamar o golpe militar de "movimento de 64". Na sequência dessa declaração, em ação penal movida pela família do jornalista Luis Eduardo Merlino, desembargadores disseram que Brilhante Ustra seria um "suposto" torturador. Mas o Brasil já reconheceu a participação do coronel em pelo menos 50 mortes.

Além da determinação do presidente Bolsonaro para comemorar o dia do golpe militar e do desdém com a Comissão Nacional da Verdade, a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) têm colocado em dúvida políticas de reparação, como as indenizações aos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff e um memorial que está sendo construído pela UFMG. Como se fosse uma questão partidária – e não graves violações causadas pelo Estado brasileiro.

Eduardo Bolsonaro chamou as indenizações de "ralo".

Cada vez que se relativiza os crimes da ditadura, mais fissuras se cria na sociedade. Esse cenário, junto com os discursos de ódio, fazem com que o índice de adoecimento da população cresça. Ameaças que negam o direito à cidadania causam pavor. "A política de incutir medo é adoecedora", diz a psicanalista Maria Beatriz. Por mais que se negue o golpe militar e a existência da ditadura, são componentes presentes na sociedade brasileira. Por isso, lembrar que ocorreram é uma missão que jamais se esgota.

"Muitas de nossas doenças são decorrentes do que nós passamos na cadeia", disse a socióloga e ex-ministra da Secretaria de Política para Mulheres do governo Dilma Rousseff, Eleonora Menicucci, que foi presa e torturada pelo regime militar e testemunhou tortura e morte de outros presos. "Por outro lado, a nossa força vem de lá, a nossa disciplina, determinação e ética com a coisa pública. Isso tem que ser resgatado reconhecido e relembrado." Quando Eleonora foi presa, sua filha, Maria, tinha um ano e dez meses. Ficou com a avó no período em que seus pais estiveram presos. Maria conta, neste documentário, o medo que sentia quando era criança.

As mulheres foram fundamentais na defesa da democracia. O Brasil deve a elas, pelo menos, um reconhecimento que possa acolher o sofrimento que sentem até hoje.

ENTREVISTA

Maria Madalena Prata Soares – Foto: arquivo pessoal

Maria Madalena Prata Soares foi presa a primeira vez aos 20 anos. Seu filho mais velho, Eduardo, tinha um ano e foi encarcerado com ela. Na segunda vez que foi presa, Madalena tinha 26 anos. Seu marido, José Carlos Mata Machado, foi morto pelos agentes da ditadura. Hoje, aos 71 anos, Madá consegue falar sobre o que aconteceu. Não sem sofrimento.

UOL – O trauma da prisão e da tortura melhora com o passar do tempo? 
Maria Madalena – Quando você para de chorar quando conta uma história é porque você a aceitou. Eu levei muito tempo para aceitar que a minha história fosse tão difícil. Então eu não contava para as pessoas. Só ficaram sabendo em 1996 [28 anos depois, portanto]. Eu não conseguia comentar. Não sei se o trauma passa.

Falar sobre isso aumenta ou diminui essa ferida?
A ferida muda. Ela não cicatriza. Ela muda. Passa a ser mais aceitável. Falar sobre o que aconteceu ajuda. A gente vai falando, nos primeiros tempos eu chorava muito, vomitava quando tinha que falar. Hoje não. Falo tranquilamente. Mas a memória não desaparece. Aliás, com o tempo a gente lembra mais de coisas ruins do que lembrava antes. 

A prisão teve consequências para seus filhos?
Sim. O mais velho esteve preso comigo. Na segunda vez em que fui presa, seu pai o levou do Brasil. Meu segundo filho foi morar com os avós. Só o terceiro é que morou comigo. 

Você sente que houve alguma tentativa do Estado brasileiro em reparar essa violência?
Eu acho que o Estado tentou reparar no governo Fernando Henrique quando reconheceu a existência de mortos e desaparecidos no Brasil. 

Como você se sente quando o presidente Jair Bolsonaro diz que vai "comemorar" o golpe militar?
Acho que o Bolsonaro está sendo o que ele prometia ser. Na época que a gente estava procurando os mortos e desaparecidos, quando achávamos as ossadas, no gabinete dele tinha uma frase assim "quem procura osso é cachorro" [sobre os desaparecidos no Araguaia]. É uma coisa terrível. É um desprezo pelo que aconteceu. Não é um 'militante' que foi assassinado. É o marido, é o irmão, é a mãe, o pai. Pessoas que a gente têm uma relação afetiva. Não é o 'companheiro'. É meu marido que desapareceu, que foi assassinado. 

Que sentimentos lhe causam quando Bolsonaro elogia um torturador como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra?
É incrível alguém elogiar uma pessoa como o Ustra. É terrível ter um presidente que elogia o Ustra. Elogia porque ele foi um torturador. Eu conheci Ustra bem de perto. Fiquei quatro meses mais ou menos no DOI-Codi, na Oban. Nesses quatro meses ele era o coordenador. Era um lugar horrível. A gente lembra de coisas o tempo todo. O tempo todo a gente escuta grito. O tempo todo a gente escuta a música alta que escondia a tortura. 

Você acha que a sua dor vai passar um dia?
Não sei se a dor passa. Acho que a dor se modifica. A gente sempre vai lembrar. Leva um tempo para a gente aceitar que é essa a nossa história. Você vive, namora e faz tudo com essa história. Ela te acompanha. 

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.