Copa: post contra Mbappé prova que Brasil é racista e futebol espelha isso
Maria Carolina Trevisan
01/07/2018 14h31
Momento em que Mbappé é derrubado por Marcos Rojo após disparada que levou ao pênalti contra a Argentina – Imagem: Kevin C. Cox/Getty Images
A arrancada do jogador da França Kylian Mbappé chegou a 32 km/h e levou ao pênalti contra a Argentina, que abriu o placar a favor dos franceses. A imagem do jovem negro de 19 anos, filho de mãe argelina e pai camaronês, cruzando o campo em disparada foi o suficiente para que um youtuber brasileiro associasse a corrida a um arrastão na praia. Foi um óbvio ato racista:
Post apagado pelo autor após repercussão negativa
Julio Cocielo tentou remendar dizendo que a associação nada tinha a ver com a cor da pele do jogador francês, e apagou o post publicado em sua conta no Twitter. Disse estar arrependido.
Mas não foi a primeira vez que o ~ingênuo~ moço cometeu racismo. Em pouco tempo, apareceram mensagens em que ele explicita seu preconceito racial ao ponto de pedir o extermínio dos negros. Ele minimizou. Disse que eram outros tempos. Que até se sente envergonhado. Classificou seus posts como "comentários infelizes".
Não são comentários "infelizes". São comentários racistas. Cocielo não é nenhum coitado. Tem um público de 16.823.254 de inscritos em seu canal no youtube. Tem mais de 7 milhões de seguidores no Twitter. O que ele diz, ecoa (e deve render bem, ele é garoto propaganda de grandes marcas).
Imigração na França
Cerca de 10% da população da França é imigrante. Uma pesquisa publicada na última sexta (29), revelou que 60% dos franceses consideram que o país acolhe imigrantes demais. A enquete, realizada pelo instituto Odoxa-Dentsu Consulting, mostrou também que a população sente mais medo que compaixão pelos imigrantes oriundos de países como Síria e Iraque.
É uma sociedade que rechaça seus próprios craques. Zinedine Zidane, por exemplo, considerado um gênio por sua elegância e capacidade técnica, é descendente de argelinos. A seleção francesa não seria nada sem seus jogadores de origem africana.
Mbappé se tornou o primeiro adolescente a marcar dois gols em uma partida de Copa desde 1958, na Suécia. Foi parabenizado por ninguém menos que Pelé. O jovem atacante do PSG doa seu salário na Copa (20 mil euros por jogo, quase 90 mil reais) instituições filantrópicas. Educação que ganhou dos pais africanos.
Futebol e racismo no Brasil
Futebol é a manifestação da cultura de um país. Tem a capacidade de escancarar o pior e o melhor de uma nação. Por isso, é importante saber como, do ponto de vista racial, se estruturou esse esporte no Brasil, país que abrigou a mais longa escravidão do planeta, e que mais escravos trouxe da África.
O futebol chegou ao Brasil trazido pelos ingleses, em 1874. Passaram-se 31 anos até que jogadores negros fossem aceitos oficialmente nos clubes. Bangu e Ponte Preta disputam entre si o título de primeiro clube a aceitar negros, na década de 1920. Anos depois, o Vasco levou a taça do Campeonato Carioca com um time que incluía negros. Antes disso, os atletas usavam pó-de-arroz para embranquecer a pele e entravam em campo com toucas para esconder os cabelos crespos. Porque, como diz o escritor cubano Carlos Moore, o racismo é plástico. Ele não acaba, ele se adapta, mostra suas máscaras, e nunca para.
A partir da década de 1930, com a profissionalização do futebol, os clubes queriam jogadores negros, os melhores. "Era a vez do preto, agora sim. Ia-se a um treino de um Fluminense, de um Flamengo, de um América, de um Vasco, os pretos se amontoavam na pista. Não admira, portanto, que um time quase inteiramente de pretos fosse o campeão de 1933. Para se ter uma ideia, eram oito mulatos e pretos no time do Bangu", escreveu Mário Filho em seu livro O Negro no Futebol Brasileiro.
O racismo persiste. Jeovânio, Tinga, Arouca, Manoel, Roberto Carlos, o árbitro Márcio Chagas da Silva, Neymar, Dani Alves, Paulão, Obina, Ubaldo, Cafu e Aranha já passaram por situações de racismo em campo. Mas a própria estrutura do futebol oprime quem é negro. Mesmo com toda a genialidade do jogador negro no futebol brasileiro, poucos chegaram ao alto escalão do futebol. É mínimo o número de técnicos negros.
Em 2014, depois que o goleiro Aranha (no Santos) foi chamado de macaco em uma partida contra o Grêmio, o compositor Emicida me deu uma entrevista sobre racismo e futebol, para o site Ponte. Ao perguntar o que uma criança negra sente ao ver um ato racista em um jogo de futebol – ou como consequência de uma partida, ele disse: "Você sente vergonha da cor da sua pele. Faz com que a pessoa vá se esforçar o resto da vida para se tornar invisível e não ser mais agredida." Quem comete racismo em jogo, comete racismo em qualquer lugar. Não tem graça, não é uma "brincadeira infeliz", não é piada. É crime, inafiançável e imprescritível.
Sobre a autora
Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.
Sobre o blog
Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.