Aprovação do aborto na Argentina pode pressionar STF em votação no Brasil
Maria Carolina Trevisan
16/06/2018 13h48
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Na disputa pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito, a Argentina contrariou posições do presidente Maurício Macri, da ex-presidente Cristina Kirshner e do Papa Francisco. A vitória de quem votou a favor do direito de escolha das mulheres se deu muito pela força do movimento de mulheres, que desde 2003 impulsiona uma campanha nacional. Mas se tornou possível por uma brecha de oportunidade assinalada pelo presidente: ao perceber que a opinião pública era favorável a que o debate acontecesse na Câmara dos Deputados, Macri preferiu alertar governistas para que não interferissem na escolha do Parlamento. "Estou a favor da vida, mas não imponho [a mesma posição] a ninguém. Existe liberdade de consciência", disse, diante de mais de 80 deputados. A maioria dos governistas foi contra a descriminalização do aborto. "O tema é importantíssimo, deveria ter sido discutido há muito tempo. Tem que haver total liberdade para opinar."
A declaração do chefe de Estado, no final de fevereiro, abriu espaço para que o movimento a favor do aborto legal ganhasse tamanho e conquistasse lugar também nas províncias. Mas até o último minuto da maior votação da Câmara argentina, não se sabia o resultado. Durante as quase 24 horas de debate, milhares de pessoas empunhando o pano verde fizeram vigília diante do Parlamento, acompanhando a discussão por um telão. Os pró-vida, em menor número, também defenderam suas posições. Estava em jogo conquistar os deputados indecisos.
A pressão chegou às redes sociais e parlamentares declararam suas posições via Twitter e Facebook. Dentro das paredes do Congresso, denúncias de ameaças por infiltrados eram conhecidas pelas redes. Foi o que se deu com os deputados a seguir, eletrizando a votação hora a hora:
Pouco antes das dez da manhã, depois de passar uma madrugada gelada discutindo diante do povo em vigília, o painel anunciou o resultado: 129 votos a favor do aborto legal, 125 contra e uma abstenção. Houve comoção. Agora, a lei segue para discussão no Senado. O processo de votação fortaleceu a democracia argentina e mostrou maturidade política.
"Cabe a mim fechar um dos debates mais longos, mais responsáveis, mais plurais que levamos no Congresso nos últimos anos. Um debate que chegou ao seio desta Câmara pelas mãos dos movimentos de mulheres", disse a deputada Silvia Gabriela Lospennato, em seu emocionante discurso final.
"Não há volta atrás", declarou a deputada. Ela lembrou que 50 mil mulheres são hospitalizadas todos os anos na Argentina por causa de abortos inseguros, que chegam a 350 mil. Há também cerca de 60 mil mortes decorrentes dessa prática. "O aborto significa uma dor profunda, que se confunde com a culpa, com a criminalização e com a desigualdade, que se ampara na ausência do Estado."
Para as mulheres que participam do movimento a favor do aborto legal, seguro e gratuito, a votação foi uma vitória histórica. "Faz muitos anos que esperávamos por esse debate. Nos 13 anos de campanha, o tema entrou nas casas, nos bairros, tomou as ruas, chegou aos hospitais, colégios, movimentos sociais", conta Angélica Peña Defago, professora de Sociologia Jurídica na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Córdoba.
"Tudo isso fez possível um nível de amadurecimento social e político que tem impacto no debate que estivemos vendo. A vitória pode impactar a região latinoamericana porque os movimentos feministas de mulheres estão unidos com movimentos feministas e de mulheres, entre outras causas, em toda a America Latina. O aborto legal, seguro e gratuito é uma das dívidas da democracia para com as mulheres."
A professora diz que o que aconteceu na Argentina pode ser um pontapé para seguir lutando em outros países. "A votação deu visibilidade ao poder e às forças dos movimentos a favor de uma lei que é justa e urgente e que pode se estender por outros países como o Brasil", conclui Angélica.
Defender a vida é descriminalizar o aborto
No Brasil, a pesquisa "Percepções do Aborto no Brasil", de 2017, aponta que são realizados 500 mil abortos clandestinos por ano. Quase metade dos brasileiros acima de 16 anos declarou conhecer pelo menos uma mulher que realizou o procedimento. Mesmo assim, apenas 1/4 se disse favorável a que a mulher possa escolher se interrompe a gravidez.
Aqui, o buraco é mais profundo. Temos um Congresso conservador, que coloca a religião acima dos direitos das mulheres e chegou a tentar retirar o direito ao aborto de quem sofreu estupro. O fato de estarmos vivendo um período pré-eleitoral tanto pode ser um combustível para impulsionar o debate sobre o aborto legal, como pode funcionar para silenciar o tema.
"O executivo brasileiro avançou nas políticas a favor do aborto nos casos hoje legalizados no primeiro governo Lula (2003-2006) e depois se retirou do campo, muito pressionado pelas campanhas pró-vida nas eleições seguintes", explica a professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas, Marta Machado, responsável pela pesquisa "A batalha do aborto no Brasil (1986-2016)", com a professora Débora Maciel, uma parceria da FGV com o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
"O Congresso é pró-vida e a tendência é se manter assim. A menos que algo surpreendente aconteça. No Brasil, precisaremos ter alguma oportunidade e aliados no sistema político para reforçar o movimento a favor do aborto legal. Isso pode ecoar, mas o movimento não consegue avançar sozinho", afirma Marta. "Por enquanto, a única arena aberta para essa discussão é o STF. Uma mudança pode vir dali."
O Supremo Tribunal Federal pode discutir a ADPF (Arguição de Preceito Fundamental), que descriminaliza o aborto.
As advogadas que assinam a peça, ingressada pelo PSOL, sustentam ter convicção jurídica de que a criminalização do aborto, com base no Código Penal da década de 1940, não se sustenta diante da Constituição de 1988. Enquanto isso, mais mulheres em situação de vulnerabilidade morrem a cada dia no Brasil em decorrência da falta de uma política que sustente o direito ao aborto legal. São as mesmas vidas "matáveis", desprezadas pelo Estado brasileiro.
"Contra a decisão de uma mulher que não quer ser mãe, não há Estado, não há lei que faça com que ela seja mãe. Os que votaram pelo 'não', a única opção que estão oferecendo às mulheres é a ameaça de prisão", afirmou a deputada argentina Silvia Gabriela Lospennato. Por aqui, falta coragem ao Supremo.
Sobre a autora
Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.
Sobre o blog
Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.