Maria Carolina Trevisan http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política. Wed, 09 Sep 2020 17:08:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Cenário que país viverá em breve na economia será crucial para Bolsonaro http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/09/09/cenario-que-pais-vivera-em-breve-na-economia-sera-crucial-para-bolsonaro/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/09/09/cenario-que-pais-vivera-em-breve-na-economia-sera-crucial-para-bolsonaro/#respond Wed, 09 Sep 2020 16:42:00 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=2104

O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante solenidade no Palácio do Planalto (Gabriela Biló/Estadão Conteúdo)

O Brasil vive um momento único. Acometido por uma pandemia, que levou mais de 127 mil vidas até esta quarta-feira (9), o país agora enfrenta a necessidade de retomar a economia para evitar mais desempregos e o fechamento de empresas, sem sanar a crise sanitária. O auxílio emergencial de R$ 600, aprovado pelo Congresso, funcionou para conter a fome e a pobreza extrema e impulsionou a popularidade de Bolsonaro, tamanho seu impacto sobre a vida de milhões de brasileiros.

Mas o desafio para o governo neste momento não é pequeno. Bolsonaro terá de agradar todos os perfis que compõem a sua base. E eles são diversos, com necessidades distintas. Para entender esse cenário, entrevistei o economista Maurício Moura, fundador do instituto de pesquisa Ideia Big Data e professor da George Washington University.

A coluna teve acesso exclusivo aos dados de gênero, classe econômica e região sobre a análise mais recente, que aponta um maior apoio das mulheres, mas mostra que elas ainda correspondem ao grupo que mais resiste a apoiar o presidente, como ocorre desde a campanha de 2018. Cerca de 57% das entrevistadas avaliou o governo como ruim/péssimo, enquanto 44% dos homens entrevistados consideraram o governo “ruim/péssimo”. A pesquisa tem abrangência nacional, foi feita por telefone entre os dias 24 a 31 de agosto, com amostra de 1.235 entrevistados e margem de erro de 3 pontos percentuais.

“As mulheres sempre foram um problema para Bolsonaro, desde o começo, um ponto fraco. Ele melhorou bastante essa proporção ao longo do tempo. Agora, com o auxílio emergencial, essa proporção bate positivamente, mas ele sempre foi mais popular com o grupo masculino”, explica Moura.

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Há quatro conjuntos principais em sua aprovação. Bolsonaro conta com os que o apoiam em quaisquer circunstâncias, não importa o que ele faça. São sobretudo homens, das classes A e B, de regiões metropolitanas e de ideologia antissistema, os negacionistas. Esses são responsáveis por cerca de 10 pontos percentuais em sua aprovação.

Existem também os liberais de classe A e B, homens e mulheres de até 40 anos, antipetistas, que continuam acreditando no governo. Esses correspondem a cinco pontos percentuais na aprovação de Bolsonaro. Tem também um grupo formado pela classe C, homens e mulheres de grandes e médias cidades e evangélicos. Esse grupo compõe com aproximadamente 10 pontos percentuais a aprovação do presidente.

Há, por fim, o novo grupo, composto pelas classes D e E, do Norte e Nordeste, e que somam principalmente aqueles que foram beneficiados pelo auxílio emergencial. São 12 pontos percentuais em sua base de sustentação, que responde de forma mais pragmática às políticas públicas, pois se relaciona diretamente com o Estado. Ao que tudo indica, segundo Moura, a redução da renda básica para R$ 300 impacta um pouco a popularidade do presidente, mas menos do que voltar ao patamar anterior do Programa Bolsa Família.

Um quinto grupo aparece como ex-apoiador de Bolsonaro. São os lavajatistas, fortes defensores do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, das classes A, B e C, de grandes e médias cidades. Para esses, que correspondem a 10 pontos percentuais na perda de apoio a Bolsonaro, Moro seria um herói.

Esse cenário mostra que há um vácuo a ser ocupado nas eleições presidenciais de 2022 que desafiam o presidente: quanto mais o bolsonarismo aposta na polarização dos discursos, mais contrapõe antipetismo versus antibolsonarismo e acaba por abrir uma brecha onde estão aqueles que não apoiam nem um lado, nem o outro. Quem preencherá esse espaço?

É um quadro peculiar. “A gente vive um fenômeno que no meu histórico de fazer pesquisa é único: temos entre os cinco primeiros candidatos um presidente que não tem partido, Lula, com problemas sérios de se viabilizar como candidato, o ex-juiz Sergio Moro, que não tem partido, e o apresentador Luciano Huck, que também não tem partido”, descreve Moura.

Aparecem também na corrida o ex-ministro e ex-deputado federal Ciro Gomes (PDT), único representante da política tradicional sem entraves para se tornar candidato, mas que perdeu as eleições presidenciais de 2018 no primeiro turno, e o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), que já foi do MDB, é militar e médico, mas pouco conhecido no país. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), vem na sétima posição.

Bolsonaro x Lula e a economia como discussão central

Pela primeira vez, Bolsonaro está equilibrado com Lula nas classes D e E, mostra a pesquisa. “Isso é novidade. Vejo duas externalidades para Bolsonaro, uma negativa e uma positiva. A positiva é que ele está ganhando terreno no espaço do principal adversário político. Isso é sempre positivo, do ponto de vista de capital político, de popularidade. A outra, que é complexa, é que se isso se perpetuar, daqui para frente, até 2022, a gente vai ter um tema principal a nível nacional que é a economia”, diz o professor.

“Teremos um cenário que ainda não vivemos enquanto país, que é o desemprego alto, o aumento da informalidade em um curto espaço de tempo, muitas empresas quebradas e a discussão mais real sobre a questão da renda básica, que vai ter um papel enorme.”

Todo mundo sabe que Bolsonaro nunca simpatizou com programas sociais como o Bolsa Família. Tampouco teve empatia com seus beneficiários, perpetuando a noção de que seriam “vagabundos” que se aproveitariam do governo. Agora, as circunstâncias exigem uma discussão aprofundada sobre calibragem e modelo a ser adotado pós-pandemia, que deve durar até 2022. Junte-se a esse quadro uma corrente do governo federal que defende obras de infraestrutura como base de sustentação para gerar emprego, uma linha pouco apreciada pelo ministro Paulo Guedes (Economia). Essa administração será determinante para as eleições presidenciais.

A movimentação do governo Bolsonaro terá de lidar com a complexidade da composição social e econômica, portanto. Para se sobressair, o presidente terá de se contrapor ao PT, seu melhor adversário, o mais visível e mais antagônico. Por isso, é arriscado corroer demais a base do Partido dos Trabalhadores para um eventual segundo turno.  “É um equilíbrio complexo, difícil de ver.”

O que está claro é que Bolsonaro está entrando onde nunca esteve e no Nordeste isso é bastante evidente. A tendência, de acordo com Moura, é que o PT entre com menos força nas eleições de 2022. Será fundamental acompanhar o que pode acontecer com aqueles que não querem nem Bolsonaro, nem Lula. Além dos lavajatistas, há um eleitorado de centro-esquerda, principalmente de regiões metropolitanas, que votou no Ciro, foi importante para a ascensão de Fernando Haddad (PT), mas não se identifica nem com Moro, nem com o PT. “Esse espaço é uma incógnita”, afirma Moura. “Se Bolsonaro administrar bem a sua popularidade, estará no segundo turno. A questão é contra quem.”

Neste momento, temos o presidente refém da renda básica (ou Renda Brasil, não se sabe ao certo), encurralado pelas perspectivas econômicas e que acena ideologicamente para o grupo que já o apoia. Diferente de 2018, cujos temas centrais eram anticorrupção, segurança pública, fake news e uso do whatsapp, a campanha de 2022 deve mirar na economia, na geração de emprego e renda e nos efeitos da pandemia, como afirma Moura.

São áreas em que Bolsonaro não transita com facilidade e com as quais não se identifica. As dúvidas são: Bolsonaro e seus ministros terão competência e jogo de cintura para sustentar a aprovação do governo sem levar o país a uma crise econômica muito maior ou postergar a crise? Que preço pagará a população pela postura antidemocrática exposta quase diariamente por Bolsonaro? Diante desse contexto, o país ainda acreditará em forasteiros políticos, salvadores da pátria ou candidatos antissistema?

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Portaria do Ministério da Saúde reforça posição antiaborto do governo http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/28/portaria-do-ministerio-da-saude-reforca-posicao-antiaborto-do-governo/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/28/portaria-do-ministerio-da-saude-reforca-posicao-antiaborto-do-governo/#respond Fri, 28 Aug 2020 21:14:03 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=2094

Reprodução: YouTube

Um dos sofrimentos mais extremos que uma pessoa pode sentir é estar grávida de um agressor sexual. As mulheres que procuram o serviço de saúde para ter acesso ao aborto legal em caso de estupro chegam ao hospital muito fragilizadas. Têm medo, vergonha, não enxergam perspectivas de vida. Muitas pensam em suicídio. Os olhos não têm mais brilho. Quando são crianças, muitas vezes nem entendem o que está acontecendo. Para todas elas, realizar o aborto legal é um renascimento, um alívio.

Nesta sexta-feira (28), o Ministério da Saúde publicou uma portaria que dificulta o acesso ao aborto legal. As novas medidas expõem a vítima de violência a mais constrangimentos, tornam o processo mais burocrático e revitimizam a mulher violentada -tudo isso com um verniz que aparenta buscar punição ao agressor. Obriga médicos e profissionais da saúde a notificarem a polícia ao acolher a mulher que sofreu estupro (no caso de crianças, essa medida já estava prevista), determina que as pacientes assinem um termo de consentimento que cita riscos (mas não fala na melhoria da vida da mulher violentada e não menciona que é um procedimento seguro), exige a presença de mais um médico que não é da área e – uma determinação cruel – obriga os profissionais de saúde a perguntarem se elas querem ou não ver e ouvir o feto ou embrião por meio do exame de ultrassonografia.

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Tudo para levar a mulher em profundo sofrimento a se sentir ainda mais culpada, ainda mais violada, ainda mais confusa, ainda mais frágil, ainda mais triste. Todo o oposto de um serviço que deveria ser pautado pela delicadeza, pela ajuda e pelo acolhimento.

“O senhor trouxe para o Brasil o mais espetacular ministério, que era um sonho da família brasileira: o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”, disse a ministra Damares Alves em live com o presidente Bolsonaro nesta quinta-feira (27). Em seguida, a ministra afirmou que na espinha dorsal das ações de seu ministério está “a proteção da vida desde a concepção”, mais uma vez ignorando o direito ao aborto legal e se posicionando contra a interrupção da gravidez. A ministra e o presidente conversaram sobre estupros de recém-nascidos, enfrentamento à pedofilia (lembrando que pedofilia é uma doença e que o estuprador muitas vezes não é pedófilo) e pornografia infantil com detalhes sórdidos sobre um homem que cometeu esse crime. Desnecessário para gerir um país, mas eficaz para botar medo na população e inflar o já fervoroso coro dos antiabortistas. Falou ainda que “crianças estão tendo relações sexuais cada vez mais cedo”. Damares não sabe que criança não faz “relação sexual”? Ela é vítima de abuso, estupro, violência, crime.

A portaria do Ministério da Saúde é a ferramenta que opera essa ideologia do governo Bolsonaro. “O que está por trás da portaria não é o que parece. Ela dá a entender que é um passo para diminuir a impunidade dos crimes de violência sexual no Brasil. Mas o estupro é um crime que praticamente não deixa vestígios, é silencioso”, explica a ginecologista e obstetra Helena Paro, professora da Universidade Federal de Uberlândia e coordenadora do Núcleo de assistência e atenção integral a vítimas de agressão sexual do Hospital de Clínicas, um dos lugares onde é possível realizar o aborto legal. Obrigar a reunir provas de um abuso sexual e a divulgar a identidade da vítima é o mesmo que não acreditar na palavra da mulher violentada. “É sugerir que a mulher que procura um aborto previsto em lei mente.”

A portaria exige também a presença de um anestesista. Mas muitas vezes o aborto é feito por via medicamentosa, de maneira segura (é menos arriscado que o parto vaginal). Ao incluir a necessidade de mais um profissional, que não está acostumado a tratar da saúde da mulher, a medida impõe outro empecilho para a realização do procedimento: a maioria dos médicos não quer fazer o aborto legal e alega “objeção de consciência”, como aconteceu com a menina do Espírito Santo. São poucos os que aceitam, têm sensibilidade e capacitação para um acolhimento tão delicado como é o caso do aborto legal em que a paciente foi violentada.

O terceiro ponto conflitante com os direitos dessas mulheres é a obrigatoriedade de informar à mulher sobre a possibilidade de visualizar o feto na ultrassonografia. Além de ver o feto e o embrião, é possível ouvir os batimentos cardíacos. “É uma ideia muito equivocada, de fundamentalistas antiaborto, que acreditam que se a mulher visualizar o feto ela mudará de ideia”, diz Helena. “Isso pode representar uma tortura para mulheres, crianças e adolescentes que engravidam por estupro.” Reforça o sofrimento, porque as vítimas de violência sexual também têm religião, crenças. Fazer o aborto nunca é uma decisão fácil.

“Apesar da Portaria falar em “possibilidade”, tal regulamentação remete ao que ocorreu no Kentucky, estado americano em que os médicos são obrigados a mostrar às mulheres que desejam realizar o aborto as imagens de ultrassom, os batimentos cardíacos e a descrição do feto antes do procedimento. Isso pode ser considerado como uma forma de violência psicológica contra a mulher, pois que a submete a uma situação de constrangimento emocional muito grande”, diz a advogada

“É importante destacar que a portaria fala em “possibilidade” de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje”, o que me parece resguardar a vontade da mulher. Quando se trata de criança ou adolescente, essa etapa consistiria em nova violência que não se mostra compatível com a proteção que a criança e o adolescente devem receber da família, da sociedade e do Estado, nos exatos termos do artigo 227 da Constituição Federal”, afirma Beatriz Rabello Presgrave, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Conselheira Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Para selar esse doloroso processo, a portaria mudou ainda o termo de consentimento, que já existia. Agora, ele lista os riscos (baixos) e não aborda os benefícios que ela pode ter ao realizar o aborto previsto em lei. Tudo para dificultar a decisão pelo procedimento de interrupção da gravidez. “Hospital não é lugar de polícia, não é lugar de desconfiar da mulher. É lugar de acolher suas necessidades e acreditar em sua palavra”, afirma a médica.

Para Damares, “nunca a pauta da mulher foi levada tão a sério como neste governo”.

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Castração química e trabalho infantil: artimanhas do populismo bolsonarista http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/27/castracao-quimica-defendida-por-bolsonaro-e-inocua-contra-estupros/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/27/castracao-quimica-defendida-por-bolsonaro-e-inocua-contra-estupros/#respond Thu, 27 Aug 2020 12:22:45 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=2081

Imagem: Getty Images

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) apelou mais uma vez ao defender os “bons tempos” em que o trabalho infantil não era proibido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao discursar nesta terça (25), em Brasília. Usou novamente a sua própria vivência como argumento. Já disse que trabalhou com o pai em uma fazenda e também que seu progenitor o obrigou ao labor em um bar. O menino Jair e sua família, no entanto, não passavam fome, não viviam em pobreza extrema.

A observação fora de lugar e de tempo demonstra a falta de empatia que Bolsonaro tem pelos direitos da infância. Não que isso seja uma surpresa. Mas um Presidente da República tem a obrigação de gerir o país em nome da maioria – das milhões de crianças obrigadas ao trabalho, fora da escola e em sofrimento contínuo – e não baseado em si mesmo e em suas crenças.

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Na mesma toada, seu filho (que não trabalhou na infância), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), resgatou um projeto de lei de Jair sobre castração química para pessoas que cometeram crimes de violência sexual. Ele quis aproveitar a onda de indignação causada pelo absurdo e triste caso da menina de 10 anos que ficou grávida depois de sofrer abusos por quatro anos.

O PL 4233/2020 é uma reedição de uma proposta do então deputado federal Jair Bolsonaro, de 2013, perseguido e batalhado com veemência e obsessão pelo agora presidente. Jair usava do discurso da castração química para se mostrar defensor das mulheres e duro contra estupradores. Mas é uma proposta inócua.

O projeto de lei propõe que homens condenados por estupro se submetam à castração química “voluntariamente” (aspas minhas) para que tenham acesso ao direito de liberdade condicional e progressão de pena. Eduardo Bolsonaro diz que seria “uma ação preventiva” para evitar reincidência. Nada mais falso, como demonstro a seguir. A proposta se justifica em uma única fonte, um único autor, cujo argumento afirma que a medida teria diminuído casos de violência sexual nos países que adotam esse tipo de mutilação. Se a punição rígida funcionasse, países que submetem pessoas à tortura das prisões superlotadas e incompatíveis com a vida, como o Brasil, seriam paraísos de paz.

Quem entende de violência sexual e de direito criminal afirma que a castração química é uma medida ineficaz, antiética e inconstitucional. “A violência sexual contra criança e adolescente não é uma questão de libido”, afirma a psicóloga Karen Esber, que há mais de 20 anos pesquisa esse tema e é uma das principais autoras de livros sobre violência sexual contra crianças e adolescentes. “As motivações para que uma pessoa cometa violência sexual são muito amplas. Vão desde aquele que tem desejo sexual focado na criança – mas não tem a libido exacerbada – até quem comete o abuso porque sofreu recorrentes abusos a vida inteira e não teve como processar esse trauma, repete a mesma situação como uma forma de elaboração mental”, afirma a pesquisadora.

Há ainda uma dimensão cultural, em que o machismo, o racismo e o sexismo se impõem como forma de poder e posse sobre a menina ou o menino, além de situações circunstanciais de violência que acabam em estupro. Ou seja, a origem da violência sexual é tão complexa que demanda medidas também complexas para ser mitigada. “Não dá para tratar uma questão que é do campo da psiquê, da psicologia, a partir de uma lógica corporal. Não surte efeito, além de ser antiético. Uma violência não justifica a outra. Se for assim, vamos voltar para a lei de talião, olho por olho, dente por dente. Nós já passamos dessa fase na humanidade.”

O que funciona para evitar a reincidência é o tratamento psicológico, a mudança de comportamento social dos agressores. Em relação às vítimas, o que pode mudar o grave cenário em que estamos inseridos no Brasil, em que uma menina é estuprada a cada 15 minutos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, é a adoção de políticas como educação sexual e de gênero nas escolas, pauta rechaçada por autoridades bolsonaristas. Porém, são essas as políticas que funcionam: ensinar às crianças o que é abuso, o que é amor, o que é violência, o que são seus direitos, além do fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, que prevê a denúncia e o acolhimento de meninos e meninas vítimas de violência sexual.

Castração química e Justiça

No âmbito do Direito, a medida não poderia ser mais equivocada. “A castração química é inconstitucional. Não vejo como passar essa medida porque, ainda que seja voluntária, ela é uma lesão corporal de natureza grave, prevista no Código Penal”, explica Maíra Zapater, professora de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “É o equivalente a um projeto de lei em que a pessoa teria direito a um determinado benefício prisional se aceitasse amputar uma das mãos, por exemplo. Existe um limite de quanto a pessoa pode dispor do próprio corpo. Portanto, é absolutamente inconstitucional.”

Também é ineficaz no contexto do direito penal. “Qualquer tipo de modificação no cumprimento da pena já foi tentado em outros crimes sem qualquer efeito na prática, como tráfico de entorpecentes, um crime equiparado a hediondo, que não diminuiu o tráfico. Nada leva à conclusão de que o endurecimento seja efetivo na prática do crime. Tanto pior em relação à castração química. Ela incorre em dois erros: primeiro o de achar que a dificuldade de cumprimento da pena impacta no processo decisório de praticar o crime; o segundo erro é vincular os crimes sexuais a uma questão de desejo sexual. Esses crimes têm a ver com uma relação de poder e uma imposição de violência. O estupro acontece não por um desejo sexual desenfreado”, afirma Maíra.

Para ela, o meio mais eficiente de enfrentar esse problema é a educação sexual e de gênero. Em regra, os crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes são silenciosos, praticados por familiares ou conhecidos, no ambiente doméstico. “É preciso dar à criança o espaço de acolhimento dentro da escola, que é o lugar que ela frequenta e socializa, além de seu lar, para que ela tenha o entendimento sobre o que são os direitos sobre seu corpo. Estudos demonstram que quando crianças e adolescentes têm acesso à educação sexual de qualidade, conseguem compreender que não precisam se submeter àquele tipo de conduta praticada por um adulto. Isso pode modificar uma cultura de estupro. A legislação penal não tem poderes para isso.”

Nem a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) acredita no efeito da castração química. Em entrevista de 2019, ela afirmou que a medida não resolve o problema. Na tentativa de amplificar um suposto comportamento “autêntico” e “ousado” para combater a violência sexual, Eduardo e Jair Bolsonaro apenas demonstram que não têm qualquer apreço pelos direitos da infância. A apologia ao trabalho infantil reforça essa conclusão.

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Estado deveria acolher criança grávida, mas ela foi violada novamente http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/17/estado-deveria-acolher-crianca-gravida-mas-ela-foi-violada-novamente/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/17/estado-deveria-acolher-crianca-gravida-mas-ela-foi-violada-novamente/#respond Mon, 17 Aug 2020 20:11:21 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=2064

Mulheres protestam a favor de menina vítima de estupro

A criança de dez anos que foi vítima de abuso sexual constante praticado por um familiar durante, no mínimo, quatro anos, só teve a violência revelada porque engravidou. Não fosse isso, talvez o abuso durasse muito mais tempo. Sempre em silêncio, como costuma se dar a violência sexual contra crianças.

Mas o calvário pelo qual a menina está passando parece não ter fim. Além de lidar com as sequelas físicas e psicológicas dos abusos e da interrupção de uma gravidez fruto de estupro, ela também terá de enfrentar a fúria dos que não concordam com o aborto legal. É violência atrás de violência, numa somatória cruel, que considera qualquer outra coisa, menos os direitos dessa menina. A Constituição Federal brasileira afirma, em seu artigo 227, que crianças e adolescentes são prioridade absoluta e devem ser protegidos pela família, pela sociedade e pelo Estado. Ela tem direito à dignidade.

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A ex-funcionária do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Sara Giromini, conhecida como Sara Winter e investigada no inquérito que apura fake news e atos antidemocráticos, revelou o local onde o procedimento para interrupção da gravidez seria realizado. Também disse o nome da menina, o que é vedado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Diz o artigo 17: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Além disso, Sara Winter também revelou dados de um processo que corre em sigilo na Justiça, por conta da pouca idade da menina.

Na frente do hospital onde a criança está internada, deputados da Assembleia Legislativa de Pernambuco tentaram impedir o procedimento invadindo o local. Foram identificados em imagens coletadas por movimentos de defesa dos direitos humanos e da mulher, que fizeram vigília para tentar conter esse tipo de atitude. São os deputados estaduais Clarissa Tércio (PSC) e Alberto Feitosa (PSC).

A própria ministra Damares Alves levou o caso a público em suas redes sociais, se identificando com a violência, mas esquecendo que ela fala de sua dor como adulta que teve tempo de processar a violação que sofreu.

“Estou chocada. Essa exposição que a menina está vivendo é como se ela estivesse novamente sendo estuprada”, afirma a ginecologista e obstetra Albertina Duarte Takiuti, coordenadora do programa de saúde do adolescente do estado de São Paulo, com mais de 40 anos de experiência. Albertina diz que nunca viu o sigilo acerca de uma criança ser quebrado dessa forma. “Agora, ela vai se sentir como se fosse culpada pela violência que sofreu. Como profissional de saúde, a minha vontade é ir pra lá e abraçar essa menina.”

É de assistência, acolhimento, cuidado, atenção, carinho, amparo que a menina precisa. Ela só tem dez anos. Albertina conta que ofereceu o serviço paulista à menina e que o programa continua a sua disposição.

“A agressão que ela sofreu deixa marcas físicas e psicológicas profundas, que jamais serão apagadas. O que eu percebo em muitas mulheres que são abusadas sexualmente, vítimas de estupro, é a dificuldade de engravidar, dor na relação sexual, problemas no relacionamento amoroso, na aceitação do próprio corpo, mais cólicas na menstruação. É como se o útero chorasse”, explica.

Muitas guardam o abuso como um segredo que machuca para sempre. Passam-se anos e elas sentem o cheiro do agressor impregnado. Ou têm sequelas que as impedem de se relacionar em sociedade novamente, como dificuldade em conter a urina (e, assim, evitar que o outro se aproxime).

Se para uma mulher adulta é tão difícil, para uma criança é infinitamente mais complicado e delicado. Uma dor que não se sabe onde vai dar. Para Albertina, o importante agora é dar apoio para os dias que se seguem ao procedimento de interrupção da gravidez.

“É preciso se solidarizar com essa menina vítima. Agora, ela está grávida de uma tristeza profunda, de uma dor terrível, de uma discriminação imensa. Como vai ser quando ela voltar para a escola, para casa? O Estado tem que proteger a criança, saber se tem irmãos, se também sofreram violência, acolher essa família, dar acesso a psicólogo, a assistente social.”

Direito à dignidade

Deputados tentam invadir hospital no momento em que procedimento acontece

Entre a descoberta da gravidez e a conclusão do aborto legal se passaram infinitos oito dias. Em um atendimento digno, sabendo que cada dia é como um ano para quem carrega uma gestação fruto de violência e que o tempo funciona contra a saúde da menina, ela teria sido perguntada sobre como se sente, sem se insistir em detalhes dos estupros recorrentes, atendida por profissionais treinados para lidar com crianças, além do protocolo de exames e orientação aos pais.

Mas ela teve que esperar dias enquanto negociavam a sua vida. “Se uma mulher que foi estuprada aos 30 anos, depois de 15 ela me diz que ainda sente o cheiro do estuprador no corpo, imagina a criança?”, questiona Albertina.

Há risco de depressão, apatia, anorexia. Ela terá de recuperar o sentido da liberdade porque viveu acuada por quatro anos. Também terá de entender novamente o que é o amor. “Poucos casos foram registrados com tanta violência e tanta violação de direitos”, afirma a socióloga Graça Gadelha, especialista em direitos da infância há 30 anos. “Eu nunca tinha acompanhado uma situação que envolvesse tanto conservadorismo, tamanha ausência de princípios elementares do ponto de vista de violação de direitos humanos. São consagrados internacionalmente pela essência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo primado básico é a integridade.”

A gravidez foi o limite da violência sofrida pela criança. Mas ela segue sendo vítima de violações: do médico que se recusa a fazer o aborto legal, do hospital que não aceita fazer o procedimento, da necessidade de se transferir a criança para outra cidade, com todos os riscos, sem que se observe todo o conjunto de sofrimento e de dor pelo que essa menina passa.

“É desalentador, é triste. Trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente uma situação dessa gravidade e dessa natureza, com  consequências imprevisíveis, sem o devido acompanhamento, certamente terá transtornos muito graves no seu desenvolvimento biopsicossocial. É muito triste a gente ver uma sociedade que não cuida de suas crianças”, conclui Graça. 

Nenhuma mulher, muito menos uma menina de dez anos, quer tornar público um estupro. Ninguém que sofreu estupro esquece essa violência. É ferida para a vida toda.

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Solidariedade “antirracista” de Bolsonaro é oportunismo eleitoreiro http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/12/solidariedade-antirracista-de-bolsonaro-e-oportunismo/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/12/solidariedade-antirracista-de-bolsonaro-e-oportunismo/#respond Wed, 12 Aug 2020 07:00:06 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=2047

O ministro interino da Saúde, general Pazuello (à esq.), participa da live semanal do presidente Jair Bolsonaro

Quando o racismo explícito contra dois jovens negros foi filmado e compartilhado nas redes sociais na sexta-feira (7), as reações foram de repúdio imediato, como devem ser. No Rio de Janeiro, Matheus Fernandes, 18 anos, foi violentamente abordado por seguranças de um shopping ao tentar trocar o relógio que comprara para o pai. Os agressores são policiais militares. Em São Paulo, Matheus Pires, 19, foi humilhado por um homem branco ao fazer entregas por aplicativo em um condomínio de luxo. Celebridades, autoridades, políticos e futuros candidatos se pronunciaram para condenar as atitudes racistas.

Em pouco tempo, os dois Matheus se tornaram conhecidos no país. Simbolizam o que ocorre diariamente longe das câmeras dos celulares. A gigantesca repercussão, os avanços e as conquistas do movimento negro e o contexto internacional da luta antirracista obrigaram até quem nunca pensou em violência racial a se posicionar. Isso é positivo em um país como o Brasil, que historicamente lança mão do discurso da democracia racial, se abstendo da responsabilização e reparação. Mas vale mais fazer que falar.

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“Que atos como esse não se repitam”, escreveu o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em suas redes sociais, na onda de indignação. Porém não basta um tuíte aparentemente solidário para se dizer antirracista. A questão é muito mais complexa. No caso do presidente –que em palestra no clube A Hebraica expressou com veemência e sem pudor seu pensamento racista acerca dos quilombolas— a suposta comoção não convence. Ao contrário, a atitude presidencial evidencia um uso oportunista dos episódios racistas com interesse eleitoreiro.


Primeiro, ao dizer que a “miscigenação é uma marca do Brasil” e que “ninguém é melhor do que ninguém por conta de sua cor”, o presidente se utiliza de um subterfúgio conhecido. É um argumento que tenta igualar brasileiros sem considerar especificidades importantes que explicitam a profunda desigualdade racial. Esse abismo é demonstrado por indicadores sociais, dificuldade de acesso a direitos, à educação, à saúde, ao trabalho, à renda, ao saneamento básico e, muito importante, pela exposição à violência policial (75% das vítimas são negras) e a violações de direitos humanos.

A pandemia de coronavírus mostra esse quadro de maneira muito objetiva: 59% das pessoas que perderam a vida eram negras (mas não há registro racial em 31% das notificações, por isso, essa porcentagem deve ser ainda maior), segundo o Deltafolha, departamento de jornalismo de dados da Folha. “O atendimento à saúde se encontra com a questão de raça na ausência, na carência, na insuficiência”, afirma Jurema Werneck, médica e diretora da Anistia Internacional no Brasil, em entrevista ao podcast Café da Manhã.

Jurema explica que os jovens Matheus foram acometidos pelo racismo interpessoal, quando uma pessoa trata mal a pessoa negra. O racismo institucional –“quando o funcionamento das coisas tende a prejudicar pessoas negras”, explica– se une ao racismo estrutural e operam na negligência, na omissão, e “não há ninguém na gestão que reconheça e impeça esse ciclo”. Ou seja, qualquer gestor que não tome atitudes, não fortaleça ou estimule políticas públicas de enfrentamento ao racismo estará colaborando para essas mortes, naturalizando a letalidade policial e concorrendo para situações como as vividas pelos jovens negros na última sexta.

Contextos incômodos

Com o posicionamento de repúdio ao racismo, Jair Bolsonaro tentou se voltar aos que hoje compõem a sua base de apoio, viabilizada pelo auxílio emergencial e pelo desespero da pobreza e do desemprego. Sabe-se que a grande maioria dos beneficiados pela transferência de renda emergencial é negra. Mais de 8 milhões de homens e mulheres negros estão fora da pobreza extrema –momentaneamente– por causa do benefício, como mostra reportagem publicada nesta coluna. É um impacto enorme que nem o presidente imaginava.

Ao mesmo tempo, os posts do presidente confrontam uma campanha pelo impeachment liderada pela Coalizão Negra por Direitos, que reúne 150 organizações negras. Em ato simbólico na Esplanada dos Ministérios nesta quarta (12), a entidade protocola o 56º pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro, apontando crimes de responsabilidade na violação dos direitos individuais e sociais por “negligência no combate à pandemia e na insuficiência de medidas que deveriam estar voltadas aos mais pobres, famílias negras, empregadas domésticas, trabalhadores informais, comunidades quilombolas, populações rurais negras, das favelas e das periferias”.

O documento exige que o Congresso Nacional “respeite os pedidos que aguardam sua análise e construa a defesa da democracia pelo Parlamento em conjunto com a sociedade”. “É a primeira vez na história que o movimento negro organizado, de maneira autônoma, propõe um impeachment. O deputado Rodrigo Maia precisa ser coerente e responsável e ouvir a sociedade civil”, afirma Douglas Belchior, professor da Uneafro, uma das entidades que compõem a Coalizão. A abertura de um processo de impeachment depende de Maia.

Por outro lado, a indignação repentinamente antirracista de Bolsonaro buscou eclipsar notícias de uma semana especialmente incômoda: a reportagem da jornalista Monica Gugliano, da revista Piauí, confirmou, na quarta (5), as intenções golpistas de Jair contra o Supremo Tribunal Federal; na sexta (7), a revista Crusoé, em investigação do repórter Fabio Serapião, revelou outros cheques depositados por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro; e, no mesmo dia, o colunista do UOL Rubens Valente apurou que o ministro da Justiça, André Mendonça, se recusa a enviar ao STF o “dossiê antifascistas”, produzido por seu ministério, que listou 579 agentes da segurança pública e quatro acadêmicos, sob argumento de que, caso os dados vazassem, colocariam em risco a “credibilidade nacional”. Seria piada não fosse muito grave.  

Bolsonaro nada comentou acerca dessas denúncias. Em vez de reagir, como fez outras vezes, preferiu abafá-las. Fingiu que não era com ele. Na quinta (6), ao lado do ministro interino (há mais de três meses) da Saúde, Jair e o general Pazuello prometeram vacinar metade da população em janeiro. Seria “uma boa aposta”, disseram.

Na realidade é só uma promessa. Os dois voltaram a saudar a cloroquina como medicamento para combater a covid-19. “Se fosse esperar comprovação científica…”, afirmou Bolsonaro, levantando a bola para que Pazuello completasse com “…ia morrer muita gente”. Aparentemente nenhum dos dois considera que sejam muitas as 100 mil vidas perdidas para o coronavírus, alcançadas no sábado (8), véspera do Dia dos Pais. E daí, né? “Vamos tocar a vida. Tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, afirmou o presidente. 

Como busca se safar o presidente?

No dia seguinte à live, viajou a São Vicente (SP) para inaugurar uma ponte. Aproveitou para cumprimentar caminhoneiros e agentes de segurança pública em um posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF), acenando a seus apoiadores mais ferrenhos. Causou aglomeração e cumprimentou as pessoas sem máscara. E daí 100 mil mortes?

No domingo (9), anunciou o ex-presidente Michel Temer (MDB) como líder da missão oficial que vai ao Líbano tratar da ajuda humanitária do Brasil ao país. Incluiu Paulo Skaf (MDB), presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), na comitiva, cortejando e sinalizando simpatia ao partido. Em efeito secundário, ainda disputa empresários com o governador João Doria (PSDB). Skaf tem sido criticado por não conseguir dialogar com o governo estadual. 

Por esses 19 meses como presidente e mais os 27 anos como deputado federal, Jair Bolsonaro não se identifica como um líder que tem preocupações humanitárias e contra o racismo. Com esses posts ao vento, parece mais uma tentativa de escapar do posicionamento que tirou apoiadores do presidente Donald Trump nos Estados Unidos e agora ameaça sua reeleição. Sua Secretaria de Comunicação entrou com tudo na bandeira “Todas as vidas importam”, um slogan usado por supremacistas brancos. Apenas confirma seu racismo e de seu governo.

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Mais de 4,2 mi de mulheres negras saíram da pobreza extrema com auxílio http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/07/mais-de-42-mi-de-mulheres-negras-sairam-da-pobreza-extrema-com-auxilio/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/08/07/mais-de-42-mi-de-mulheres-negras-sairam-da-pobreza-extrema-com-auxilio/#respond Fri, 07 Aug 2020 07:00:42 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=2028

Manifestação antirracista Foto: Marlene Beregamo/Folhapress

O Brasil nunca tinha vivido uma experiência de transferência de renda como o auxílio emergencial. Sem ele, milhões de brasileiros estariam sem recursos financeiros para as necessidades mais básicas, como pagar contas de água e luz e comprar alimentos. Tudo isso no meio da pandemia de covid-19. O programa atingiu cerca de 66 milhões de beneficiários em agosto. E muita gente saiu da pobreza extrema.

Uma pesquisa publicada nesta quarta-feira (5) pelo economista Daniel Duque, pesquisador da FGV IBRE (Instituto Brasileiro de Economia), mostra que o auxílio emergencial tem grande poder de repor os rendimentos do trabalho e até os rendimentos totais das famílias mais pobres. “É a primeira vez em 30 anos que houve uma redução tão forte da pobreza junto a uma queda igualmente forte da renda média”, explica Duque. A coluna obteve com exclusividade dois recortes importantes para compreender o país neste momento: os estados onde o auxílio tem sido mais relevante e quem são as pessoas que mais precisaram dele. 

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A população que mais depende do auxílio emergencial é a de mulheres negras. Elas estão em situação de maior vulnerabilidade e por isso a renda emergencial se torna muito relevante. Para se ter uma ideia, em junho de 2020, mais de 4,2 milhões de mulheres negras saíram da extrema pobreza com os 600 reais, em relação a 2019, de acordo com a pesquisa. O pesquisador comparou a PNAD Covid (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) com o primeiro trimestre de 2019 da PNAD Contínua. É mais gente do que a população de 15 estados brasileiros como Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Distrito Federal ou de países como Líbano e Uruguai.

Entre os homens negros o impacto também foi enorme: em junho de 2020, 4,1 milhões de pessoas desse grupo populacional saíram da extrema pobreza. O auxílio emergencial impactou com muito menos intensidade os homens e as mulheres brancas: cerca de 630 mil homens brancos e 784 mil mulheres brancas deixaram de ser extremamente pobres com o recurso emergencial, em junho deste ano. Isso mostra que a prevalência da pobreza extrema tem cor e tem gênero. É o retrato do racismo estrutural que acomete o Brasil desde sempre. Por isso, a necessidade de políticas públicas específicas. Em termos regionais, os dois estados que mais diminuíram a pobreza e a pobreza extrema foram Acre e Maranhão. Antes do auxílio, mais de 70% de suas populações viviam abaixo da linha da pobreza. Essa porcentagem teve queda de cerca de 33% em junho.

O governo Bolsonaro agora lida com um dilema complicado: o auxílio emergencial garantiu ao presidente o apoio que ele precisa para terminar o mandato e pleitear a reeleição. Sua base de aprovação migrou da elite que o elegeu em 2018 para os mais pobres. O que mantém a sua base hoje é o pavor de ficar sem nenhuma renda e sem trabalho.

Mas tudo o que é emergencial tem seu fim. O próprio governo considera insustentável manter os 600 reais. Torna-se, então, fundamental implementar uma política que dê conta da transição entre o auxílio emergencial e o Bolsa Família (ou outro programa de transferência de renda e combate à pobreza). Mas o fato é que o ministro Paulo Guedes (Economia) não apresentou alternativas, não disse o que será o Renda Brasil (nome com o qual pretende batizar o Bolsa Família), não sabe como agradar o mercado e ao mesmo tempo seguir com a transferência de renda que garante o apoio à Bolsonaro. Um exemplo de que o governo federal não entende de política social e de desigualdade é o veto integral do presidente ao projeto de lei que estabelecia prioridade para mulher chefe de família no recebimento do auxílio emergencial, ignorando que são elas as mais impactadas.

A única certeza é que se o auxílio for interrompido abruptamente muita gente vai sofrer na miséria. A grande maioria, mulheres negras. Isso não pode ser normalizado. “O programa é, atualmente, a maior experiência de gasto social do Brasil, com um montante de recursos mensal de R$ 50 bilhões, ou seja, pelo menos R$ 200 bilhões em sua totalidade – frente a R$ 30 bilhões por ano para o Bolsa Família, R$ 56 bilhões por ano para o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e R$ 17 bilhões para o Abono Salarial”, diz a pesquisa de Duque. Ao expor pessoas à pobreza extrema, a economia também seria afetada porque o recurso emergencial foi capaz de movimentar a roda econômica no meio da pandemia. Bolsonaro veria sua base se quebrar e Guedes seria, mais uma vez, desacreditado. “Se o país não fizer a transição, haverá um impacto muito negativo sobre a renda. O Brasil, sem dúvida, é um país racista e o racismo estrutural se reflete na pobreza”, afirma Duque.

A filósofa Sueli Carneiro, uma das lideranças do movimento negro mais importantes no Brasil de hoje, em evento que celebrava os seus 70 anos cumpridos recentemente, mostrou o caminho. “O avanço da consciência negra e as evidências inquestionáveis das iniquidades produzidas pelo racismo no Brasil exigem, em tempos de renegociação do pacto democrático, o reconhecimento de que com racismo não haverá democracia no Brasil, como afirma o documento da Coalizão Negra por Direitos [instituição que reúne mais de 150 organizações negras]. Essa assertiva impõe-se como imperativo ético regulador do novo normal a ser perseguido, que seja capaz de engendrar um novo projeto de nação em que uma verdadeira democracia racial, enfim, seja realmente possível.”

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Brasil precisa de equivalência entre política social e política econômica http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/07/31/brasil-precisa-de-equivalencia-entre-politica-social-e-politica-economica/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/07/31/brasil-precisa-de-equivalencia-entre-politica-social-e-politica-economica/#respond Fri, 31 Jul 2020 16:34:36 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=2021

O economista Ricardo Henriques aponta caminhos para um país mais justo pós pandemia Foto: divulgação

A pandemia nos obrigou a um mergulho. Enxergamos, nos últimos meses e cada vez mais, as nossas desigualdades e injustiças sociais. E constatamos como somos parte das dinâmicas que contribuem para esse abismo, individual e coletivamente. Ficamos nus diante do coronavírus e da crise política.

Hoje, a imagem diante do espelho não é bonita. Em sua base está o racismo estrutural, que impede o Brasil de se desenvolver, de ser uma democracia plena. Já não podemos esconder nossas mazelas. Ao nos depararmos com essa figura despida e que nos constitui somos compelidos a agir e a nos comprometer, no âmbito da sociedade civil, das empresas, do judiciário, das políticas públicas e nas práticas cotidianas. Ou, se pegarmos a outra bifurcação, nosso caminho será de profunda dor. Um país que joga na miséria e na pobreza grande parte da sua população e a condena ao sofrimento prolongado. Que Brasil queremos?

O Brasil não é só tristeza. Nesses meses também vimos que existe um arco de atores sociais e políticos capaz de operar transformações. Essas mudanças precisam ser sistêmicas. Para isso, é urgente reconhecer a faceta torpe e cruel que nos organiza como sociedade. A saída passa por promover reformas responsáveis, embasadas, com o uso correto dos recursos públicos, pelo voto com consciência coletiva e por desenhar políticas sociais altivas, em equivalência com as políticas econômicas. Não se pode aceitar que tanta gente esteja vulnerável como temos assistido.

“Diante desse certo compartilhamento da indignação, que é movido pela vivência da crise, pode ser que se reconfigurem forças que gravitam em torno da transformação que a gente precisa”, afirma o economista Ricardo Henriques. Essa esperança não se baseia apenas no desejo. Está fundamentada em experiência e em conhecimento.

Henriques é superintendente executivo do Instituto Unibanco, foi secretário nacional de educação continuada, alfabetização e diversidade (SECAD) do Ministério da Educação e secretário executivo do Ministério de Desenvolvimento Social, quando coordenou o desenho e a implantação do programa Bolsa Família. Também trabalhou nas esferas estadual e municipal com direitos humanos e assistência social. Foi pesquisador e diretor adjunto da área social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), assessor especial do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e, durante 30 anos, professor do departamento de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente ele é conselheiro da Anistia Internacional (Brasil), Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT), Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE-FGV), CIVI-CO, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), Fundação Itaú Educação e Cultura (FIEC), Instituto Natura, Instituto República e Todos pela Educação (TPE).

Nesta entrevista, Ricardo Henriques explica como, ao tomar contato com nosso lado mais triste, podemos sair da crise fortalecidos, com o oxigênio que nos permite respirar e fazer florescer o que temos de melhor.  

UOL – A pandemia do novo coronavírus expõe, amplia e aprofunda as desigualdades no Brasil. Um estudo da Oxfam publicado na segunda-feira (27) mostra que o patrimônio dos super ricos aumentou durante esse período. Por outro lado, a covid-19 fará a pobreza e a extrema pobreza aumentarem também. No começo da pandemia, em abril, o senhor disse que seria interessante que o governo garantisse o auxílio emergencial por um ano. Continua com essa posição? Quais seriam as políticas emergenciais para mitigar um pouco esse efeito?

Ricardo Henriques – Se por um lado essas desigualdades são históricas e estruturais, talvez dois fenômenos estejam acontecendo. Um é o aumento efetivo da desigualdade. Mas outro, igualmente relevante, é a visibilidade de uma desigualdade que já está instalada. Isso tem um efeito. Permite uma agenda mais positiva, que é um conjunto maior de atores, num amplo leque da sociedade, reconhecendo que nós chegamos a um padrão de desigualdades que não faz sentido. Que não são consistentes com o que a gente pode querer projetar num Brasil de futuro. Talvez uma das melhores ilustrações disso tenha sido a percepção pela mídia, e portanto para uma parte grande da sociedade, sobre as distâncias que existem no acesso dos estudantes aos meios digitais.

Não é nenhuma novidade mas ficou muito mais visível que uma quantidade grande das pessoas não têm acesso a qualquer conectividade. Se você estratificar isso por renda, a parcela mais pobre da população tem baixíssimo acesso e quando tem é compartilhando um pedaço da banda do pré-pago de algum membro da família. Parece que isso foi reconhecido pela sociedade. Ou seja, fora do espaço da escola pública, a grande maioria dos estudantes têm precárias condições de estudo, tanto do ponto de vista do acesso e inclusão digital quanto condições materiais e objetivas, uma sala, um espaço específico isolado, com iluminação, com tempo dedicado. É muito importante reconhecer essa dimensão da desigualdade, com seu caráter estrutural brasileiro porque é um traço que orienta a possibilidade de pensar essa transição, sobre o que a gente tem que fazer para frente.

A outra coisa muito importante é que os mecanismos que o Brasil desenvolveu para absorver crises estruturais, em regra, estavam adequados ao campo de mundo do trabalho informal. Essa crise atravessou a sociedade brasileira, para além das suas dimensões sanitárias, da pandemia strictu sensu, mas para sua dimensão socioeconômica. Essa crise chegou num momento em que a crise anterior ainda não tinha sido superada. As condições do trabalho informal de absorver essa crise praticamente sumiram. O que isso quer dizer? Um contingente novo de pessoas entra na situação de pobreza e um volume de pessoas em extrema pobreza também aumenta. E aumenta numa intensidade quase sem precedentes.

Nesse sentido, uma política de apoio emergencial se faz quase incontornável. É o limite entre o equilíbrio de uma visão humanitária, que devia estar considerando também a crise da saúde, com uma visão sobre como se mantém a economia razoavelmente aquecida. Eu preciso colocar recursos na mão desse contingente enorme da população que está em situação de pobreza e pobreza extrema. O apoio emergencial tem que ter uma duração no tempo muito maior do que era previsível no início da pandemia. Em março ja era possível prever – e acho que o governo federal subestimou isso – que a crise da pandemia teria uma cauda relativamente longa. Podia ter previsto. Mas hoje é totalmente visível para todos os atores que a duração dos efeitos da crise será muito mais longa do que um momento específico contido no tempo. Então, esse apoio que tem um sentido emergencial, passa a ser necessário ter uma duração muito mais longa. Estamos falando de um ano como referência mínima. Mas provavelmente isso seguiria para uma evolução de alguma renda mínima, alguma renda básica que seria fundamental de ser feita. Seguramente o apoio emergencial não pode se conter ao intervalo de três a quatro meses. Ele é necessário nesse contexto de aumento significativo do contingente de pessoas em condição de altíssima vulnerabilidade e de vulnerabilidade.

A situação é tão grave que quase 50% da população precisou do auxílio emergencial. Isso garantiu apoio ao presidente Bolsonaro, mesmo ele negando a gravidade da pandemia. O problema é que sua equipe ministerial não tem visão social. O ministro da Economia, Paulo Guedes, formado pela Escola de Chicago, não tem essa vocação. O programa Renda Brasil ainda é desconhecido. Como avançar na agenda das desigualdades diante desse contexto político?

O enunciado do Renda Brasil é tão vago que é virtualmente impossível de ser comentado. Não tem nenhum elemento tangível como meta, desenho, sistema de incentivos, orçamento. Mas tem dois elementos importantes. O primeiro tem menos a ver com a direção do Ministério da Economia. O primeiro, de forma muito categórica e evidente, é uma falta de visão humanista por parte do governo. A indiferença e a falta de condução da política sanitária a partir da política de saúde, que levou à quantidade gigantesca de mortes, a inexistência de um gabinete de crise para promover coordenação intersetorial na área da saúde, com um sistema de saúde existente e estruturado, entre o governo federal, os governos estaduais e municipais, que ao mesmo tempo não instituiu uma visão intersetorial, uma capacidade de conversar com a área da assistência e da educação, parece uma atitude, no mínimo, de baixa visão humanista.

Este elemento nos dá a perceber que é pouco provável que uma política efetiva de proteção social de médio e longo prazo venha a ser organizadora de uma política pública do governo. É difícil ter tamanha indiferença com as vidas do ponto de vista de organizar de uma estratégia coordenada de enfrentamento à pandemia e depois ter uma visão estruturada, uma política social ativa de redução das vulnerabilidades estruturais do país.

O outro elemento é que a necessidade de criar uma renda emergencial tem as repercussões esperadas. Como a população caiu abruptamente em situação de miséria imediata, é razoável que reconheça a iniciativa como positiva. A questão é como se desenhará uma política sustentável? Tem que ter uma arquitetura institucional cuja  intencionalidade seja uma política social consistente e duradoura.

A desigualdade aumentou e é mais visível para uma quantidade maior da população. Isso coloca na arena política a necessidade da gente construir uma política de outro patamar. Uma política social que seja equivalente à política econômica. Uma outro filosofia da política social.

É uma política social comprometida com um grau de transformação social que diga “não podemos continuar convivendo com uma desigualdade social tão abissal como a que temos, e não podemos ter ninguém com esse grau de desproteção social que passou a existir com a pandemia”. Precisamos garantir além da renda emergencial. Essa renda e elementos equivalentes têm que se manter ao longo do tempo para as pessoas não voltarem abruptamente à condição de extrema pobreza. Isso será, se for bem-feito, fruto de uma visão não só de transferência de renda, mas de uma transferência de renda básica, com uma cobertura de longo prazo e articulada com outros elementos da política social. É isso que permitirá a gente ter uma dinâmica de saída da crise que nos coloque numa posição de almejar um Brasil mais dinâmico lá na frente. Senão, a gente pode transitar a crise simplesmente de forma trôpega e chegar daqui a alguns anos em um Brasil de joelhos. E aí será muito mais difícil de enfrentar.

Em relação ao governo Bolsonaro, o senhor tem alguma expectativa positiva nesse sentido? É possível fazer essa construção com esses atores? 

O momento do país tem demonstrado que nós temos vários atores que são muito relevantes na discussão da política pública. Por um lado, o Congresso assumiu protagonismo em várias direções, criando condições para algumas reformas estruturais. Talvez, mesmo nessa conjuntura, diante do desafios que temos pela frente, o Congresso seja um ator muito relevante para uma consistente reforma tributária e não uma superficial reforma tributária. A ver.

E temos outros atores. Se olharmos com atenção, com uma lupa mais dedicada ao que aconteceu nos territórios de altíssima vulnerabilidade do país, tanto nas áreas de alta densidade urbana como no interior, no mundo rural do Brasil, há uma sociedade civil muito pujante, com uma capacidade fenomenal de adaptação a essa crise. A sociedade civil organizada nas periferias das grandes cidades, com apoio do mundo filantrópico, de vários atores, de doações inclusive, conseguiu uma capilaridade para enfrentar situações extremamente delicadas de pobreza radical, com consistência, com diálogo, com respeito, muito surpreendente. Então, o que eu acho que a gente tem que pensar, Carol, é que existe hoje um efeito mundo, por um lado, e uma configuração da realidade brasileira em que se ampliou o arco de atores em diálogo com o poder público federal. Esses atores provocam uma reflexão sobre o que queremos para a saída da pandemia.

E aí você tem o jogo, óbvio, das forças de poder aonde se envolve o judiciário, o executivo nas suas várias frentes, municipal, estadual e federal, o legislativo, uma eleição municipal daqui a pouco, uma outra eleição depois para estados e governo federal e uma sociedade civil que se reconfigura hoje. Como histórico, temos no imaginário uma referência muito potente que é o Betinho. Com o Betinho como representante, como persona de uma visão moderna da sociedade civil atualizado para os dias de hoje, temos uma potência muito grande.

Na cena da discussão da política pública está como criar forças, às vezes à revelia do interesse de alguém que está no executivo, mas que tenha vetores de transformação, que podem não acontecer no curto prazo, mas que criam um certo centro de gravidade no médio prazo para acontecer.

Como essa construção se daria? 

Precisamos de um outro arranjo social. Ele bebe dos avanços pós constituinte e precisam ser atualizados para dizer que agora é necessário o Brasil projetar uma nova inserção, nacional e internacional, que diga que essa desigualdade não faz sentido e que a gente não pode ter pessoas abaixo de um determinado nível de razoabilidade do ponto de vista das suas condições socioeconômicas. Quer dizer, não podemos ter essas pessoas em situação de altíssima vulnerabilidade como temos hoje. Não só tirar da extrema pobreza mas também tirar da pobreza. Há esse acordo, se vai acontecer nos próximos meses ou não, não tenho bola de cristal. Mas hoje temos forças se movimentando no país para tornar isso viável. Há inteligência política e institucional suficiente para desenhar boas intervenções nessa direção.

Não é um campo desconhecido ou só do palpite. Ao contrário, é um campo com muita densidade da ciência e da ciência aplicada para desenhar uma política social de altíssima qualidade para enfrentar os desafios do Brasil. Repito: uma política social que tem história, que vem evoluindo. Hoje a questão é: como a gente dá um salto nessa evolução? Pode ser que o ambiente do governo federal hoje não seja o mais acolhedor para isso. Mas a disputa que está na arena política é uma disputa que tem mais consensos no amplo espectro doutrinário deste país sobre coisas positivas a serem feitas do que cair no obscurantismo, no negacionismo, no retrocesso.

É óbvio que isso está em intenção, está em disputa, pode ser que o retrocesso, uma visão não civilizatória, negacionista da pandemia, que recusa uma inserção mais soberana, que recusa uma modernização do Estado, tenha algumas vitórias, está em jogo, mas acho que tendem a ser menores.

Há um amplo arco muito mais consistente hoje do que há pouquíssimo tempo. Esse arco bebe das conquistas pós-constituinte e reposiciona hoje a discussão sobre uma nova política social, uma nova política econômica. Isso com suas configurações necessárias, com a reforma tributária que é necessária, com o ajuste da reforma previdenciária que é necessário, com a reforma do Estado, que é necessária, com uma nova renda básica, com um desenho de uma política social altiva que esteja em relação de equivalência a uma política econômica. Acho que a gente tem um momento propício para construir isso.

Da mesma maneira que a pandemia foi capaz de revelar as desigualdades, por outro lado também mostra quem são os políticos comprometidos com essa saída. Então pode ser que a gente tenha algo de bom no final disso tudo? 

Tem elementos para isso. Não é só um problema de fé. É um problema de construção desse espaço público, que não é só governamental. E isso cria oxigênio nesse processo. Nesse espaço público tem o governo federal, os governos estaduais, os governos municipais, tem a sociedade civil organizada, tem o setor privado, tem o setor filantrópico associado ao setor privado, tem o mundo das igrejas, das organizações sociais, dos movimentos sociais. Nesses espaços públicos é que tem muito mais oxigênio – e oxigênio criativo – do que você tinha há pouquíssimo tempo atrás.

É um efeito da exposição da sociedade brasileira como um todo a essa terrível crise associada à pandemia, sem precedentes. Mas de alguma forma ela reconfigura posições e leituras que dizem: não é possível uma solução não civilizatória para este país, não é possível uma solução obscurantista, racista e preconceituosa, que negue o direito à maioria de ter uma vida digna. Isso não é possível. Diante deste certo compartilhamento de uma indignação, que é movida pela vivência da crise, pode ser que se reconfigurem forças que gravitam em torno da transformação que a gente precisa. A gente já precisava antes, mas agora precisamos de forma estrutural. Agora [essa necessidade] é visível para mais pessoas. Pode ser que essa visibilidade angarie energia e força suficientes para produzir transformações.

Como o racismo se insere nessa discussão neste momento? O Brasil nunca enfrentou o racismo como deveria, nunca praticou a reparação à sua população negra. A conjuntura internacional ajuda a trazer para o debate público essa questão. Temos poucas políticas públicas voltadas ao enfrentamento ao racismo. Uma delas é a política de cotas, que terá de ser revista em 2022. Que políticas seriam necessárias para diminuir a desigualdade e a injustiça racial? 

As políticas de cotas são extremamente positivas. Por um lado, reconhecem o racismo estrutural e por outro mudam as expectativas e as trajetórias de vida das pessoas negras que estavam fora do circuito universitário. Mas elas podem ser cotas no processo eleitoral, não têm que se conter estritamente na política de acesso à universidade. Primeiro precisamos reconhecer que o racismo está no núcleo duro das desigualdades brasileiras.

O racismo organizou um arranjo social de enorme perversão que em última instância inviabiliza a democracia e o desenvolvimento contemporâneo. Um dos fatores que contém o avanço democrático no país é o seu racismo estrutural.

Um dos fatores que contém a possibilidade do Brasil ter um dinamismo de inserção na sociedade do conhecimento contemporâneo é o racismo estrutural. O Brasil é o país do futuro que nunca se realiza, um eterno vir a ser que nunca se transforma no país do futuro. O principal ingrediente que nos coloca nessa situação permanente de um vir a ser que não se adensa, que não se realiza, é a forma como nós naturalizamos a relação com o racismo. Essa é a principal variável. Historicamente isso está ancorado na forma perversa como nós fizemos a transição da escravidão. Os outros países, em alguma medida, fizeram a transição, garantiram ou o acesso a bens, a capital, a instrumentos de trabalho agrícola, ou acesso à educação, à terra. Ou qualquer combinação disso. E o Brasil foi o único país que fez a transição com o ato simbólico da libertação sem garantir ao povo negro escravizado o acesso a nenhum desses fatores. Então, na origem, a forma da nossa transição da escravidão para aquilo que depois viria a configurar o arranjo republicano foi a transição mais perversa que a humanidade produziu. Alijou estruturalmente os negros de alguns mínimos que seriam necessários para poder fazer uma mobilidade social ao longo da nossa história.

Isso foi referendado. Inclusive nos processos modernos à época, como os desenhos das reformas trabalhistas, aonde a questão da alfabetização era uma variável chave e os analfabetos eram os negros filhos de escravos. Então todos os desenhos que nós fizemos ao longo da nossa história ratificaram o traço do nosso racismo estrutural. O que acontece hoje, em pleno século 21, já passadas duas décadas deste século: ainda não enfrentamos com a densidade que é necessária o racismo estrutural. Aí é enfrentar no campo da política, para garantir a democracia, no campo da economia, dos direitos sociais como um todo. De cada 100 crianças brancas que entram no primeiro ano do Ensino Fundamental, 75 terminam o Ensino Médio. Não é nada a se vangloriar, já é ruim. O componente racial é: de cada 100 crianças negras que entram na primeira série do Ensino Fundamental, só 58 terminam o Ensino Médio. É uma expressão dessa distância que tem como traço constitutivo a questão racial.

O que é fundamental é que qualquer que seja o processo de desigualdade acumulado ao longo da história da vida, o que as pessoas não reconhecem em geral, é que todas as dificuldades que um branco tem, para além dessas, o negro tem a dificuldade de ser negro nessa sociedade. Isso aparta enormemente a organização que a gente produz. Não há como a gente projetar uma sociedade brasileira, conectada no conhecimento, com potência de formação ao ponto de estar incluída na quarta revolução industrial, atualizada nas dimensões contemporâneas da democracia, não há como fazermos nenhum desses movimentos de forma sustentável e transformadora se não reconhecermos o racismo e, muito mais importante, desenvolvermos práticas antirracistas.

Práticas antirracistas individuais e no desenho das políticas públicas. Nesse contexto geral, a política de cotas é um componente importante de uma visão transformadora que reconhece que é necessário ter nitidez no enfrentamento do racismo para promover essa nova transformação. O racismo é um elemento organizador desse arranjo perverso que a gente produziu na sociedade brasileira. Se a gente destravar essa agenda e enfrentá-la, a dinâmica sócio, econômica, política e cultural deste país pode ser muito mais transformadora e muito mais rica do que tudo o que a gente gerou até agora. Tem potência. O salto histórico que este país pode dar está totalmente relacionado com a sua coragem de enfrentar o seu racismo estrutural. Por definição isso implica em uma agenda que tem protagonismo dos negros e tem participação dos brancos.

Como o legado de Marielle atua nesse contexto? Veremos mais candidatas como ela nas próximas eleições? Há esse efeito?

As mulheres negras são o elemento mais transformador que nós temos hoje em um projeto de futuro que nós podemos construir. Implica em simultaneamente enfrentar os traços machistas que organizam a sociedade e os traços racistas. Marielle é um ícone disso, uma liderança fantástica. O que ela carrega como capital simbólico é muito importante para essa transformação. Os partidos não podem usar as cotas de gênero como fachada, o que ainda é muito comum. Precisam assumir isso como uma pauta efetivamente da agenda de modernização da política. É uma variável que dará maior potência de transformação, a presença das mulheres negras gerará ainda mais potência. Isso tem que ser uma agenda reconhecida pelos partidos, implica dar apoio econômico, de mídia, faz parte do momento atual da política. No campo dos eleitores, que se movam para elegeram mulheres negras a posições, isso será muito importante para a qualidade política.

Porque o racismo é efetivamente estrutural, ele ocupa o cotidiano, ele ocupa as subjetividades, ele está em práticas não reveladas. Não é só um problema de representatividade. É um problema de práticas. Da branquitude ter práticas concretas associadas às mudanças das regras de privilégios que são atribuídas a pessoas simplesmente porque elas são brancas.

O privilégio que eu desfruto na sociedade simplesmente porque sou um homem branco. Quanto mais óticas diversas sobre o real, sobre o mundo, maior a probabilidade de soluções melhores, mais consistentes, mais atentas para todas as pessoas, mais sutis para mudanças estruturais, quanto mais a arena política for representativa do perfil demográfico do país, mais rico a gente vai ser, mais dinâmico a gente vai ser, mais transformador a gente vai ser. Então, sim, temos condições para criar oportunidades muito maiores para mulheres negras candidatas e temos condições para o voto se expressar em direção a mulheres negras candidatas. Precisamos fazer as duas coisas.

Como será o Brasil pós pandemia em relação ao mundo? 

Vamos viver algumas bifurcações. [O professor e sociólogo português] Boaventura de Sousa Santos trouxe uma ideia muito interessante sobre o que é disruptivo. Hoje seria disruptivo manter ou aumentar a nossa desigualdade. O disruptivo hoje é o retrocesso. Existem forças nessa direção: obscurantismo, negacionismo, o não reconhecimento do que é a agenda da diversidade. Seria a pior solução possível, o maior desarranjo possível que na nossa história. A gente precisa dar conta de não enfrentar esse momento com esses traços. Mas essa força está projetada. É muito importante ter consciência para aumentarmos o nosso arco de alianças contra essa visão obscurantista que pode ser vencedora, mesmo que minoritária. Porque o abismo que está a nossa frente ele é muito profundo.

Por outro lado, de forma quase proporcional, há um momento de arranjos e acordos, de conhecimentos e saberes, sobre a oportunidade de ser responsável em direção a uma transformação que reposicione o Brasil num outro momento da sociedade contemporânea. Precisa ser muito responsável, garantir fundamentos, não podemos abrir mão de sermos eficientes, eficazes, de termos muito boa gestão de recursos públicos. Essa saída nunca será fácil. Implica em muita responsabilidade, profissionalização da política pública, com intenção de acabar com a relação de subordinação entre a política social e a política econômica, que é a nossa história e isso tem que ser rompido.

Precisamos produzir uma relação de equivalência entre a política social e a política econômica. Porque, em última instância, a própria política econômica está a serviço da política social. Nós queremos uma sociedade inclusiva, democrática e dinâmica.

Precisamos romper com essa história, para isso é muito importante que a política social se profissionalize ainda mais, que seja ativa, de construção de uma sociedade moderna, com inclusão digital, com inclusão documental, bancária, produtiva, da população como um todo. Que a gente tenha uma renda básica de cidadania que garanta pisos para esses processos, uma renda básica responsável e financiada, e para isso é preciso uma boa reforma tributária, que seja regressiva no consumo, progressivo na renda e no patrimônio. E de uma boa reforma do Estado que viabilize essa dinâmica, mais consistente e profissional como um todo, e que dentro dessa arquitetura a gente produza aquilo que é fundamental: uma visão intersetorial e articulada da política econômica e da politica social em seus vários componentes, com política urbana, ambiental, de saúde, de educação, de assistência, de transporte, de infraestrutura, ou seja, do conjunto dessas políticas.

Esse desenho programático precisa uma ancoragem do ponto de vista de visão da sociedade. E nessa visão é que precisamos enfrentar o racismo estrutural.

Nelson Rodrigues dizia que o subdesenvolvimento não se improvisa, o subdesenvolvimento é uma obra de séculos. Eu digo que desenvolvimento também não se improvisa. O desenvolvimento precisa de muita ciência, de muito rigor, de compromisso com as práticas, com o diagnóstico sobre as nossas causas. Desenvolvimento não se improvisa, mas não pode ser uma obra de séculos. Democracia e combate à desigualdade caminham juntos.

Eu tenho um otimismo que me parece muito realista, no sentido de que há uma disputa. Pode não acontecer mas a minha utopia pragmática te diria que estão em jogo vetores de uma transformação estrutural para esse Brasil que não estavam há pouco tempo atrás e podem criar um arco de aliança possível para essa visão de um Brasil democrático, inclusivo, diverso, transformador, não racista. É essa disjuntiva que nós temos pela frente: a disrupção retrógrada ou a transformação estrutural.

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Não tem mais volta: o Brasil precisa assumir o antirracismo como prioridade http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/07/15/nao-tem-mais-volta-o-brasil-precisa-assumir-o-antirracismo-como-prioridade/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/07/15/nao-tem-mais-volta-o-brasil-precisa-assumir-o-antirracismo-como-prioridade/#respond Wed, 15 Jul 2020 15:09:22 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=1986

Catharina Odara Zacharias Rocha, 4, na 16ª Marcha da Consciência Negra em SP – Foto: Danilo Verpa/Folhapress

Não é mais possível negar o racismo como motor da engrenagem que move a desigualdade e a violência. Todos os dias vidas negras são perdidas nesses dois contextos. Calar é ser conivente. Passou da hora do enfrentamento ao racismo ser o principal problema endereçado por governantes, pela sociedade, por cada um, brancos e negros, ricos ou pobres. Boa parte de nós é responsável pela perpetuação do racismo, suas consequências e todos precisamos estar comprometidos em tentar freá-lo.

Os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), completados nesta segunda-feira 13, mostram como o preconceito racial é persistente (atravessa séculos), estrutural (se exprime por ações de instituições e do Estado) e elástico (se adapta aos momentos históricos para se perpetuar). Apesar da melhora nos direitos da infância desde a promulgação do ECA, a característica preponderante de vulnerabilidade entre crianças e adolescentes é o fato de serem negros. Isso demonstra que vivemos num ciclo interminável que expõe a criança, o jovem, a mulher, o homem e o idoso negros a uma rotina diária de driblar a morte. Uma realidade inadmissível.

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Diante de todos os fatos, não se pode mais esconder ou evitar tomar contato com o racismo. Ele passa na televisão, nas redes sociais, nas páginas dos jornais, em cenas em que pessoas negras são sufocadas com botinas da lei, alvejadas por tiros em casa, ou em estatísticas que mostram a vulnerabilidade na saúde (mortes naturais sobem três vezes mais entre negros do que entre brancos na pandemia), a exclusão da escola, ou o perigo no deslocamento ao trabalho.

Por isso, neste ponto do contexto político e histórico do Brasil e do mundo, é impreterível assumir essa linha de frente. Importa ser antirracista. Tomar atitudes no dia a dia, nas pequenas e nas grandes ações, exigir, criar e implementar políticas públicas para mitigar a desigualdade racial. A Coalizão Negra por Direitos ingressou com representação contra a Polícia Militar de São Paulo e o governador João Dória exigindo providências ao caso da comerciante negra em Parelheiros agredida covardemente por policiais militares.

“As cenas do policial com a bota no pescoço de uma mulher negra em Parelheiros/SP é performática! Não significa nenhum erro ou despreparo, ao contrário, tem intenção pedagógica de reafirmar a disposição da Polícia Militar do Estado de São Paulo”, escreveu a filósofa Sueli Carneiro, grande liderança do movimento negro. 

O compromisso de cada um se faz cada vez maior –e mais aparente. Quem não assumir esta posição ficará também desnudo e terá que arcar com as consequências e a vergonha de ser racista. Não basta dizer que afastou o policial abusivo, nem afirmar que precisam seguir o protocolo, como tem feito o governador João Doria (PSDB), de São Paulo. É preciso reformar as polícias, mudar a lógica de abordagem, a cultura policial e colocar o racismo como tema central a ser observado, estudado e enfrentado.

Houve avanços, sim, no que diz respeito aos direitos da infância e juventude desde que o Estatuto da Criança e do Adolescente foi promulgado, em 1990. Seria pior não fosse o ECA. Entre os mais significativos estão o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, a prioridade absoluta que deve ser conferida a esse grupo populacional em todas as instâncias, a queda da mortalidade infantil (contabilizam-se cerca de 870 mil vidas salvas nos últimos 30 anos, principalmente pelo fortalecimento do SUS, do pré-natal e da vacinação), a diminuição da evasão escolar (a taxa foi de 20%, em 1990, e chegou a menos de 5% atualmente; reprovação é maior entre negros) e do trabalho infantil (caiu à metade, mas ainda há cerca de 5 milhões de crianças e adolescentes trabalhando; em 2016, 64,1% eram negros, não por acaso), segundo informações divulgadas pelo Unicef.

A taxa de homicídios no Brasil, uma das mais altas do mundo, é de 28 por 100.000 habitantes. Vai a 200 a cada 100.000 habitantes se fizermos o recorte para homens negros do sexo masculino. Os negros são 75% dos mortos pela polícia, assim como os policiais negros são também os que mais morrem. As mulheres negras são 61% das vítimas de feminicídio (dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública). A violência segue imposta sobre essa população.

As vulnerabilidades ainda recaem sobre a população negra com mais força. Não por acaso. Não por acaso, um policial de São Paulo imobilizou e sufocou por quatro vezes uma mulher negra em São Paulo. Não por acaso, um motoboy negro foi agredido e também sufocado ao ser “confundido” com um suspeito. Não por acaso, as operações policiais mataram meninos negros como João Pedro, 14 anos, João Vitor, 18, Ágatha, 8. Não por acaso, Miguel, 5, foi abandonado no elevador pela patroa da mãe, jogado ao risco de morte. Não por acaso, a mortalidade entre negros na pandemia é maior do que entre brancos. Não por acaso, as mulheres negras estão sempre velando seus filhos, seus companheiros, seu netos, amigos e sobrinhos, na solidão mais profunda do ser humano.

“Enquanto este país não superar o racismo, não teremos uma sociedade justa”, disse Mônica Oliveira, coordenadora da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, no lançamento do relatório de um ano de funcionamento da Rede de Observatórios da Segurança “Racismo, motor da violência”, nesta terça (14). “A gente não quer só resistir, a gente quer existir. A gente quer ter o direito à vida. Queremos ter direito a planejar o futuro sem estar o tempo todo sendo apavoradas pela realidade desse país.” 

O silêncio é cúmplice. A violência racial “se realiza onde silencia. (…) O racismo é o motor do funcionamento pleno das instituições herdadas de um país escravista, de uma elite colonial, ao mesmo tempo que colonizada, e essas instituições agem conferindo, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça”, apontam Dudu Ribeiro e Luciene Santana, do Observatório da Segurança da Bahia. Não é mais possível se omitir. 

Omissão das autoridades é racismo

Apesar das evidências e das cenas diárias, autoridades e governos fecham os olhos para os desafios impostos no enfrentamento ao racismo. Durante o Seminário 30 anos do ECA, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça em parceria com outras organizações, não se escutou de ministros do governo Bolsonaro nenhuma preocupação na proteção da criança e do adolescente negro especificamente.

É como se Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), André Mendonça (Justiça) e Onyx Lorenzoni (Cidadania) vivessem em uma realidade paralela. Não estudaram os números, não leem jornais? Assim, não se comprometem. Os ministros saudaram o estatuto, abriram o evento, mas sequer tocaram na palavra racismo. Como desenhar políticas públicas, então?

“O grande desafio é nós refletirmos sobre o que conseguimos implementar, termos as boas práticas reconhecidas e ao mesmo tempo lançarmos novos desafios para os próximos anos”, disse Mendonça, sem vislumbrar esses caminhos ou garantir empenho. “O governo brasileiro reforça o cuidado com as crianças e esse é um compromisso do governo Bolsonaro. Assistir os vulneráveis e dar a eles oportunidades”, afirmou Lorenzoni, sem compreender sobre quem ele está falando, mas citando a Bíblia.

Por fim, Damares contou a sua própria experiência de violência sexual como exemplo. “A grandiosidade deste painel mostra o quanto nós avançamos. Quem me dera há 50 anos atrás estivéssemos num painel como esse. Com certeza eu seria protegida.” Será? Ademais, são as meninas e as mulheres negras as que sofrem mais violência, de todos os tipos. Damares deveria saber disso. E propor algo, aproveitando os 30 anos do ECA. Afinal, como ela mesma reconheceu, a fome diminuiu, mas não por consequência de sua gestão ou da gestão de seu governo. Fazer festa de princesa negra para a menina que sofreu racismo não é política pública.

No seminário, algumas ações do governo Bolsonaro tornaram evidentes seu olhar sobre a infância e adolescência: por exemplo, o Conanda (Conselho Nacional da Criança e do Adolescente), instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e a adolescência, teve reuniões descontinuadas em absoluto descaso com a sociedade civil que representa interesses de crianças e adolescentes do país e fiscaliza a implementação dessas políticas. Também se ouviram denúncias de redução de recursos para o sistema de garantias e proteção de crianças e adolescentes, para os conselhos tutelares, para prevenir a violência sexual, para os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Todo esse descaso recai de forma ainda mais cruel e preponderante sobre meninos e meninas negras. 

“Juridicamente, o ECA trouxe um avanço, como a prioridade absoluta e a proteção integral de crianças e adolescentes. Mas ainda é preciso investir em políticas que podem prevenir a violência, como as instâncias de assistência social para o fortalecimento de vínculos familiares, para assegurar o acesso à educação de qualidade, à alimentação adequada, a professor presente, ao brincar, ao lazer em uma comunidade que não seja violenta, de maneira a proteger a criança. É responsabilidade da comunidade e do Estado”, afirma Deila Martins, coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), membro do Observatório da Segurança de Pernambuco.

Quem cresce em contato diário com a violência perde a referência do amor e tem a vida marcada para sempre. Por isso, não basta a lei. É necessário o querer político, o compromisso ético, o conhecimento técnico, a conscientização e a sensibilidade nas ações de todos. 

É papel de cada um. Aproveitando que é ano eleitoral, os partidos políticos também têm que colocar a questão racial como pauta fundamental em todo o processo. “Olhe para si. O racismo opera pela ação e pela omissão. É preciso que todo mundo assuma a sua tarefa no processo. Não é um jogo de culpa, estamos falando de responsabilidade”, afirma Mônica Oliveira. Precisamos parar de perder nossos jovens negros, nossas crianças. Precisamos ajudar a curar a profunda ferida do racismo.  

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Veto a uso de máscaras em presídios reforça apreço de Bolsonaro pela morte http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/07/08/veto-a-uso-de-mascaras-em-presidios-reforca-apreco-de-bolsonaro-pela-morte/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/07/08/veto-a-uso-de-mascaras-em-presidios-reforca-apreco-de-bolsonaro-pela-morte/#respond Wed, 08 Jul 2020 07:00:22 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=1971

Presidente Jair Bolsonaro durante entrevista coletiva em Brasília

“Meu marido está preso há quase 13 anos. O dia a dia já é difícil. A unidade está superlotada, péssima alimentação, às vezes a comida vem estragada, às vezes vem pouca comida. É um absurdo o presidente do Brasil, que é responsável por zelar por todos, vetar uma coisa simples como o uso de máscaras, que pode evitar o coronavírus”, afirma Ana*, que concordou em falar com a reportagem sem revelar sua identidade por temer represálias ao companheiro.

“As visitas foram proibidas, a gente fica sem notícias do familiar, as cartas estão demorando para chegar, tanto para mim quanto para ele. O presidente quer o quê? Que os presos morram e se contaminem? Os policiais penais também estão sendo contaminados, imagina sem as máscaras?” 

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A indignação de Ana é a de muitos familiares de pessoas privadas de liberdade no Brasil. São esposas, pais, mães, irmãos, companheiros,  organizações da sociedade civil, parentes de policiais penais e de outros funcionários de presídios que têm vivido os dias de pandemia com uma sobreposição de angústias. É como se o valor da vida se resumisse a uma ampulheta em que o fim do escoamento da areia é a hora da morte. “O veto do Bolsonaro faz parte da política que o governo federal tem adotado desde o começo da pandemia: de negação, impondo dúvidas sobre os dados científicos, tentando minimizar os danos da covid-19”, alerta o advogado criminalista Pedro Martinez, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. “O uso de máscaras poderia ajudar a diminuir a incidência de coronavírus na prisão.”

Como costuma afirmar o próprio presidente Bolsonaro, em algum momento esse fim chegará. Não é papel do Estado, porém, negligenciar vidas sob sua custódia. O dado mais recente do Departamento Penitenciário Nacional mostra que são 758.676 pessoas privadas de liberdade no país, a terceira maior população carcerária do mundo. 

Mesmo que alguns estados mantenham a obrigatoriedade do uso de máscaras dentro do sistema prisional, como aconteceu em São Paulo, de acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), a medida de Bolsonaro demonstra o desejo de que políticas públicas para o âmbito prisional tenham esse caráter, em que a vida vale nada. Mas são pessoas.

“A medida da SAP é salutar, mas há muitos outros problemas, como racionamento de água, falta de material de limpeza, superlotação. É urgente maior investimento nas testagens. Além disso, o Estado deve cumprir a sentença dada na Ação Civil Pública que obriga a contratação de equipes mínimas de saúde em todos os presídios paulistas”, afirma o defensor público do estado de São Paulo Mateus Moro, do Núcleo Especializado de Situação Carcerária. O mesmo deve ser feito em todo o país. É o mínimo.

Em uma inspeção recente da Defensoria de São Paulo a Penitenciária Masculina Sorocaba II mostrou uma série de violações de direitos humanos, uma das mais graves é a falta de separação entre pessoas presas contaminadas por coronavírus de outras saudáveis. Numa dessas alas, a taxa de ocupação é de 191,57% e mais de 41% das pessoas presas está contaminada. Inaceitável.

Assim que o primeiro caso de coronavírus foi notificado no Brasil, em março, as visitas aos presídios foram suspensas. A justificativa seria preservar a saúde dos presos e das presas. O então ministro da Justiça, Sergio Moro, dizia não haver motivos para temor. “Há um ambiente de relativa segurança para o sistema prisional em relação ao coronavírus pela própria condição do preso de estar isolado da sociedade”, afirmou Moro. Seria o maior isolamento do país, não fossem a superlotação e as condições de insalubridade, que o ministro ignorou, sabendo que é impossível isolar um preso com covid-19 onde não há espaço nem para dormir.

O problema é mais complexo. Em teoria, outras medidas deveriam substituir a ausência das famílias, que garantem alimentação, fornecimento de medicamentos e materiais de higiene. Foram suspensas também as saídas temporárias daqueles que têm direito ao regime semiaberto, o que resultou em maior aglomeração. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou o desencarceramento de pessoas que fossem de grupos de risco e não tivessem cometido crimes violentos ou graves ameaças. O mundo inteiro adotou essa iniciativa.

Os presídios do Brasil são superlotados, sem condições mínimas de dignidade e de vida –fato reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A presença da covid-19 em um ambiente com péssima ventilação, onde as pessoas estão amontoadas em cubículos, com raras oportunidades de banho de sol, em que falta acesso a sabão, a médicos e a remédios e a água é racionada, transforma um lugar insalubre em uma máquina de moer gente. Não usar máscaras é determinar sentença de morte, por negligência e omissão. Deixar morrer. Ou, na melhor das opções, sofrer muito.

De acordo com relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), de 24 de junho, apenas 4,78% da população prisional foi retirada das unidades prisionais, em concordância com a Recomendação 62 do CNJ, em 19 unidades da federação. “Não houve um incremento significativo já que algumas [pessoas] saíram por cumprimento de suas penas“. Significa que essa é média comum sem pandemia. Portanto, a medida proposta pelo CNJ não teve eco no sistema de justiça penal. 

Fato é que as taxas de contaminação nos presídios aumentaram 800% em três meses, diz o CNJ. Por isso, a adoção do regime domiciliar para quem pode acessar esse direito deve ser apreciada com urgência. O painel de monitoramento do Depen afirma que há (em 7/7) 63 óbitos, 5.022 infectados e 1.208 casos suspeitos de covid-19 nos presídios do país. Mas as organizações da sociedade civil que acompanham o sistema prisional afirmam que os números estão subnotificados.

“Há ausência de informações, fragilidade ou ausência de políticas públicas, falta de política de gestão e transparência das informações e subnotificação de informações. Denotamos a insuficiência de medidas de prevenção, mitigação e de desencarceramento frente a epidemia, no conjunto dos estados e do Distrito Federal”, conclui o relatório do MNCT. O mecanismo aponta para a necessidade de fortalecimento do Sistema Nacional e Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura, para que haja “articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas.”

O que se pode concluir de tudo isso é que os Tribunais de Justiça estaduais têm dado preferência por manter as pessoas encarceradas, mesmo aquelas que poderiam acessar o benefício determinado pela recomendação do CNJ. Tampouco as instâncias superiores têm aprovado habeas corpus de proteção a pessoas sob custódia do Estado.  Em centros de atendimento socioeducativo a adolescentes, como a Fundação Casa de São Paulo, a situação não é melhor que nos presídios. A própria entidade diz não ter condições de tratar os adolescentes contaminados. Não há isolamento adequado, faltam atividades socioeducativas, máscaras nos alojamentos e os jovens estão privados de se comunicar com familiares, como registrou o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Em Santa Catarina, um jovem de 17 anos, cumprindo internação provisória, réu primário, teve a liberdade negada pela ministra do Rosa Weber. É um quadro que se repete pelo país. “Pelo que tenho visto, em vários lugares, a recomendação do CNJ tem sido descumprida, mesmo em favor de pessoas que não praticaram crimes violentos e estão no grupo de risco”, afirma o defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro. “Os habeas corpus coletivos, que poderiam melhorar a situação mais rapidamente, têm enfrentado resistência nos tribunais.”

O Brasil somou nesta terça (7) 1.312 mortes causadas por coronavírus, conforme revelou o consórcio de veículos de imprensa do qual o UOL faz parte. O total de óbitos pela doença 66.868. Até o presente momento, o novo ministro da Justiça, André Mendonça, não fez qualquer menção à situação dos presídios em meio à pandemia do novo coronavírus.

Enquanto isso, a areia da ampulheta vai escoando.

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Saída de Decotelli abre espaço para uso político ou ideológico do MEC http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/06/30/perfil-tecnico-perde-espaco-para-uso-politico-ou-ideologico-do-mec/ http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2020/06/30/perfil-tecnico-perde-espaco-para-uso-politico-ou-ideologico-do-mec/#respond Tue, 30 Jun 2020 20:45:08 +0000 http://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/?p=1963

Decotelli teve que deixar governo após mentiras em currículo. Foto: reprodução redes sociais

O Brasil buscará seu quarto ministro da Educação em um ano e meio de governo Bolsonaro. As informações equivocadas, infladas e falsas sobre o currículo acadêmico do agora ex-ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, inviabilizaram a possibilidade de que ele comande a pasta. Decotelli anunciou o pedido de demissão do MEC nesta terça-feira (30), cinco dias depois de ser nomeado para o cargo.

Os panos quentes de Jair Bolsonaro na tarde da segunda-feira (29) e a postura mais contida do presidente não foram suficientes para baixar a pressão sobre Decotelli. Nem o presidente, nem seu governo ou ministros militares inspiram confiança neste momento político corroído pelo péssimo comando do país na pandemia, entre outras complicações.

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Nessa confusão entre nomeação, incêndio e explicação, o escolhido de Jair não teve nenhuma menção de apoio da área acadêmica. Isso porque fraudar as informações do currículo é considerado muito grave na academia, além de ofensivo e desrespeitoso. Ficou ainda mais evidente que, para o governo Bolsonaro, o conhecimento científico e técnico de sua equipe ministerial pouco importa.

As mentiras do ex-ministro acabaram com qualquer credibilidade, o que impossibilitou o trabalho conjunto. Agora, a disputa pela vaga na cadeira de chefe da Educação deve ser travada por candidatos da ala ideológica ou que contemplem interesses políticos. O perfil técnico e conciliador perde espaço. É um dilema no qual pesa a vontade do “centrão”, em que a mercadoria é a troca de cargos por apoio ao presidente. Nesse caso, haveria alinhamento com os ministros militares. E pode resultar em influência nas eleições municipais.

Se quem ocupar o cargo for da ala ideológica, a consequência pode ser o aumento da desaprovação do governo e da impopularidade do presidente Bolsonaro. Também pode aprofundar a paralisia no MEC, por incompetência. Os três ministros olavistas que restam ao governo (Damares, Ernesto Araújo e Ricardo Salles) enfrentam acúmulo de problemas e flagrante ineficiência. O presidente foi aconselhado a trocar os dois últimos.

Quanto da estratégia de aparente recuo do presidente Bolsonaro previa usar um homem negro e moderado como escudo para se proteger e, ao mesmo tempo, provocar uma desculpa adequada para escolher mais um olavista ou para se render ao toma lá dá cá?

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