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Maria Carolina Trevisan

Veto a uso de máscaras em presídios reforça apreço de Bolsonaro pela morte

Maria Carolina Trevisan

08/07/2020 04h00

Presidente Jair Bolsonaro durante entrevista coletiva em Brasília

"Meu marido está preso há quase 13 anos. O dia a dia já é difícil. A unidade está superlotada, péssima alimentação, às vezes a comida vem estragada, às vezes vem pouca comida. É um absurdo o presidente do Brasil, que é responsável por zelar por todos, vetar uma coisa simples como o uso de máscaras, que pode evitar o coronavírus", afirma Ana*, que concordou em falar com a reportagem sem revelar sua identidade por temer represálias ao companheiro.

"As visitas foram proibidas, a gente fica sem notícias do familiar, as cartas estão demorando para chegar, tanto para mim quanto para ele. O presidente quer o quê? Que os presos morram e se contaminem? Os policiais penais também estão sendo contaminados, imagina sem as máscaras?" 

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A indignação de Ana é a de muitos familiares de pessoas privadas de liberdade no Brasil. São esposas, pais, mães, irmãos, companheiros,  organizações da sociedade civil, parentes de policiais penais e de outros funcionários de presídios que têm vivido os dias de pandemia com uma sobreposição de angústias. É como se o valor da vida se resumisse a uma ampulheta em que o fim do escoamento da areia é a hora da morte. "O veto do Bolsonaro faz parte da política que o governo federal tem adotado desde o começo da pandemia: de negação, impondo dúvidas sobre os dados científicos, tentando minimizar os danos da covid-19", alerta o advogado criminalista Pedro Martinez, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. "O uso de máscaras poderia ajudar a diminuir a incidência de coronavírus na prisão."

Como costuma afirmar o próprio presidente Bolsonaro, em algum momento esse fim chegará. Não é papel do Estado, porém, negligenciar vidas sob sua custódia. O dado mais recente do Departamento Penitenciário Nacional mostra que são 758.676 pessoas privadas de liberdade no país, a terceira maior população carcerária do mundo. 

Mesmo que alguns estados mantenham a obrigatoriedade do uso de máscaras dentro do sistema prisional, como aconteceu em São Paulo, de acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), a medida de Bolsonaro demonstra o desejo de que políticas públicas para o âmbito prisional tenham esse caráter, em que a vida vale nada. Mas são pessoas.

"A medida da SAP é salutar, mas há muitos outros problemas, como racionamento de água, falta de material de limpeza, superlotação. É urgente maior investimento nas testagens. Além disso, o Estado deve cumprir a sentença dada na Ação Civil Pública que obriga a contratação de equipes mínimas de saúde em todos os presídios paulistas", afirma o defensor público do estado de São Paulo Mateus Moro, do Núcleo Especializado de Situação Carcerária. O mesmo deve ser feito em todo o país. É o mínimo.

Em uma inspeção recente da Defensoria de São Paulo a Penitenciária Masculina Sorocaba II mostrou uma série de violações de direitos humanos, uma das mais graves é a falta de separação entre pessoas presas contaminadas por coronavírus de outras saudáveis. Numa dessas alas, a taxa de ocupação é de 191,57% e mais de 41% das pessoas presas está contaminada. Inaceitável.

Assim que o primeiro caso de coronavírus foi notificado no Brasil, em março, as visitas aos presídios foram suspensas. A justificativa seria preservar a saúde dos presos e das presas. O então ministro da Justiça, Sergio Moro, dizia não haver motivos para temor. "Há um ambiente de relativa segurança para o sistema prisional em relação ao coronavírus pela própria condição do preso de estar isolado da sociedade", afirmou Moro. Seria o maior isolamento do país, não fossem a superlotação e as condições de insalubridade, que o ministro ignorou, sabendo que é impossível isolar um preso com covid-19 onde não há espaço nem para dormir.

O problema é mais complexo. Em teoria, outras medidas deveriam substituir a ausência das famílias, que garantem alimentação, fornecimento de medicamentos e materiais de higiene. Foram suspensas também as saídas temporárias daqueles que têm direito ao regime semiaberto, o que resultou em maior aglomeração. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou o desencarceramento de pessoas que fossem de grupos de risco e não tivessem cometido crimes violentos ou graves ameaças. O mundo inteiro adotou essa iniciativa.

Os presídios do Brasil são superlotados, sem condições mínimas de dignidade e de vida –fato reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A presença da covid-19 em um ambiente com péssima ventilação, onde as pessoas estão amontoadas em cubículos, com raras oportunidades de banho de sol, em que falta acesso a sabão, a médicos e a remédios e a água é racionada, transforma um lugar insalubre em uma máquina de moer gente. Não usar máscaras é determinar sentença de morte, por negligência e omissão. Deixar morrer. Ou, na melhor das opções, sofrer muito.

De acordo com relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), de 24 de junho, apenas 4,78% da população prisional foi retirada das unidades prisionais, em concordância com a Recomendação 62 do CNJ, em 19 unidades da federação. "Não houve um incremento significativo já que algumas [pessoas] saíram por cumprimento de suas penas". Significa que essa é média comum sem pandemia. Portanto, a medida proposta pelo CNJ não teve eco no sistema de justiça penal. 

Fato é que as taxas de contaminação nos presídios aumentaram 800% em três meses, diz o CNJ. Por isso, a adoção do regime domiciliar para quem pode acessar esse direito deve ser apreciada com urgência. O painel de monitoramento do Depen afirma que há (em 7/7) 63 óbitos, 5.022 infectados e 1.208 casos suspeitos de covid-19 nos presídios do país. Mas as organizações da sociedade civil que acompanham o sistema prisional afirmam que os números estão subnotificados.

"Há ausência de informações, fragilidade ou ausência de políticas públicas, falta de política de gestão e transparência das informações e subnotificação de informações. Denotamos a insuficiência de medidas de prevenção, mitigação e de desencarceramento frente a epidemia, no conjunto dos estados e do Distrito Federal", conclui o relatório do MNCT. O mecanismo aponta para a necessidade de fortalecimento do Sistema Nacional e Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura, para que haja "articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas."

O que se pode concluir de tudo isso é que os Tribunais de Justiça estaduais têm dado preferência por manter as pessoas encarceradas, mesmo aquelas que poderiam acessar o benefício determinado pela recomendação do CNJ. Tampouco as instâncias superiores têm aprovado habeas corpus de proteção a pessoas sob custódia do Estado.  Em centros de atendimento socioeducativo a adolescentes, como a Fundação Casa de São Paulo, a situação não é melhor que nos presídios. A própria entidade diz não ter condições de tratar os adolescentes contaminados. Não há isolamento adequado, faltam atividades socioeducativas, máscaras nos alojamentos e os jovens estão privados de se comunicar com familiares, como registrou o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Em Santa Catarina, um jovem de 17 anos, cumprindo internação provisória, réu primário, teve a liberdade negada pela ministra do Rosa Weber. É um quadro que se repete pelo país. "Pelo que tenho visto, em vários lugares, a recomendação do CNJ tem sido descumprida, mesmo em favor de pessoas que não praticaram crimes violentos e estão no grupo de risco", afirma o defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro. "Os habeas corpus coletivos, que poderiam melhorar a situação mais rapidamente, têm enfrentado resistência nos tribunais."

O Brasil somou nesta terça (7) 1.312 mortes causadas por coronavírus, conforme revelou o consórcio de veículos de imprensa do qual o UOL faz parte. O total de óbitos pela doença 66.868. Até o presente momento, o novo ministro da Justiça, André Mendonça, não fez qualquer menção à situação dos presídios em meio à pandemia do novo coronavírus.

Enquanto isso, a areia da ampulheta vai escoando.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.