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Maria Carolina Trevisan

Moro diz que sistema prisional está sob controle, mas não testa presos

Maria Carolina Trevisan

15/04/2020 04h00

Coletiva de imprensa com a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e o ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública. Foto: Reproduçã0 (13/04)

Se descontarmos o incentivo ao distanciamento social, o governo federal vem tomando medidas sempre um passo (ou mais) atrás das necessidades do país em relação ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Esse atraso tem mais impacto em áreas sensíveis, como o sistema prisional. De acordo com o painel de monitoramento de casos suspeitos e confirmados de covid-19 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), havia nesta terça-feira (14), 145 casos suspeitos de coronavírus no sistema carcerário e 26 casos confirmados entre essa população. Estima-se que apenas um preso no Distrito Federal tenha infectado outros 20, conforme relatou o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, em coletiva de imprensa na segunda-feira (13). Minas Gerais concentra 33% do total de casos suspeitos em seus estabelecimentos penais, seguido por São Paulo (16,5%) e DF (15,8%).

O ministro Moro afirmou também que não há previsão para testagem de presos, que os equipamentos de proteção serão encaminhados primeiro aos policiais penais e que presos com sintomas devem ser isolados ou mantidos em regime domiciliar. "A situação se encontra, ainda, absolutamente sob controle", afirmou Moro. Difícil entender de que maneira está tudo "sob controle" quando se sabe que as condições sanitárias, de higiene e de saúde nos presídios são, na verdade, absolutamente desumanas. Basta olhar para o exemplo dado pelo próprio ministro: o sistema prisional do Distrito Federal tem cerca de 7.395 vagas para 16.377 presos (entre presos provisórios e os que cumprem pena em regime semiaberto e fechado), segundo dados de 2018 do governo do DF. Significa que há um déficit de vagas de 42%. Como, nessas condições, é possível isolar as pessoas privadas de liberdade que estão com sintomas de covid-19? Não há nem forma de se confirmar a presença da doença. O que se sabe é que é uma questão de tempo até que o coronavírus ceife a vida de milhares de pessoas que vivem no sistema prisional brasileiro, sob custódia do Estado.

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Os presídios do Brasil inteiro estão superlotados – exceto os federais, cujas medidas são tão restritivas que podem violar direitos humanos. Por isso recebem presos com características muito particulares e por tempo determinado, como chefes de facções, por exemplo. Diante desse contexto, não há outra opção senão estimular as ações de desencarceramento sugeridas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que também recomenda restringir visitas, fornecer água limpa e material de proteção, cuidar da limpeza das celas, melhorar o atendimento médico, o acesso à saúde e à alimentação adequada. Moro frisou que o benefício de regime domiciliar deve ser aplicado pelos Tribunais de Justiça dos estados, caso a caso, evitando libertar pessoas que tenham cometido crimes violentos ou com grave ameaça.

O cuidado aqui é acompanhar as decisões dos tribunais para ter certeza de que o benefício é acessado de maneira igualitária e não privilegie quem tem melhor condição financeira de arcar com advogados. Assim como o ex-médico Roger Abdelmassih tem o direito de cumprir pena em casa, uma senhora de 75 anos, condenada por tráfico de drogas, com doenças coexistentes, pobre, também deveria poder. Mas o benefício tem sido negado. Assim como outros casos. "A gente tem conseguido o benefício em vários pedidos. Varia de lugar para lugar. Mas em regra as decisões têm sido razoáveis e favoráveis, porém ainda há risco de resistência", explica o defensor público da União, Gustavo Ribeiro. É preciso observar. Historicamente, juízes estaduais não priorizam o desencarceramento, como mostra, por exemplo, uma pesquisa da professora Maíra Machado, da Direito GV, sobre tráfico privilegiado. 

Fato é que o ministro Moro tenta se equilibrar no lugar incômodo de quem precisa apoiar as recomendações do CNJ por falta de alternativa. Ele, no fundo, defende o encarceramento em massa. É por isso que, por exemplo, seu pacote anticrime aumentou de 30 para 40 anos a pena máxima de prisão. Mas em tempos de coronavírus, a lógica é outra. O perigo, ao não apoiar de maneira incisiva o desencarceramento, é ajudar a tornar realidade um desejo de boa parte das autoridades e da sociedade – especialmente aqueles mais fervorosos defensores do presidente Jair Bolsonaro – de que presos merecem morrer.

"Quando se trata da atuação do sistema de justiça criminal, vê-se a firme participação do Judiciário para a garantia da realização de um sonho nutrido no imaginário nacional: o do extermínio de criminosos dentro dos muros das prisões, recebendo o que, afinal, merecem como sentença", alerta Ana Flauzina, professora de direito penal na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Direito pela American University.

Antes do coronavírus, o Supremo Tribunal Federal considerou a permanência no sistema prisional como um "Estado de Coisas Inconstitucional", ou seja, incompatível com a vida. São ambientes sem higiene, com mofo e mal ventilados, em que a comida é frequentemente servida azeda, onde não há água limpa ou sabão disponíveis. Faltam espaço e distância, pessoas ficam expostas a todo tipo de contaminação, incluindo os policiais penais. É, portanto, uma tortura sem fim. "A tortura não é só física, é psicológica também. É tortura para todo o lado, para os presos e para os familiares. A prisão deveria ser exceção. A regra deveria ser a liberdade", diz o advogado Belisário dos Santos Jr., ex-secretário de Administração Penitenciária (1995) e atual integrante da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, da Comissão Internacional de Juristas e da Comissão Arns de Direitos Humanos. "É do Estado a responsabilidade de cuidar das condições prisionais."

Importante lembrar que o presidente Bolsonaro, em junho de 2019, assinou um decreto que esvazia o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, definindo que os 11 peritos que fiscalizam a condição dos presos deixem de ser remunerados. É nessa lógica que se movem os filhos do presidente. O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP)  se indignaram pelo fato de o ministro Moro ter anunciado a aquisição de 600 tablets para que os detentos possam falar com suas famílias no período em que as visitas estão suspensas. Questão de informação, de consideração humanitária, de vida e de morte. "Ministério da Justiça comprou 600 tablets para os presidiários. É isso mesmo que vocês leram. Excelente prioridade, hein? Valeu!", escreveu Carlos, insuflando seus seguidores fervorosos que tripudiam da dor de quem perdeu conhecidos e parentes para o coronavírus, número que se multiplica todos os dias.  

"Lembremos que os muros das prisões não são concretos, mas extremante porosos. A contaminação dos encarcerados expõe de forma irresponsável os policiais penais e consequentemente aumenta as chances da disseminação do vírus para a comunidade", diz a professora Ana Flauzina. "Foram as práticas de tortura e de descaso que criaram as condições para o surgimento de facções criminosas que hoje aterrorizam a população. É o descaso com as polícias, em especial no âmbito prisional, que as fazem presas fáceis para o aliciamento por grupos milicianos em todo o território nacional. Ou seja, o desprezo pela vida de pessoas encarceradas redunda em piora na segurança coletiva. A história já nos ensinou que a fatura das políticas de extermínio dentro das grades é, portanto, quitada por todos." Todas as vidas importam. Inclusive a das pessoas presas. Sobre essas, o Estado é responsável em dobro.  

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.