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Maria Carolina Trevisan

Tereza Campello: “Não é difícil o Brasil pagar a Renda Básica Emergencial”

Maria Carolina Trevisan

01/04/2020 19h40

Ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello. Foto: Alan Marques/Folhapress

Um dos grandes desafios do Brasil nesta crise provocada pela pandemia do coronavírus é equilibrar ações nas áreas de saúde, desenvolvimento social e economia. Há saídas. Mas o governo federal tem dado sinais confusos e contraditórios. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se opõe às medidas do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM), que não consegue coordenar ações com o ministro da Economia, Paulo Guedes, preso ao mercado financeiro, e da Cidadania, Onyx Lorenzoni (DEM), que tem pouca experiência na área social. Nessas idas e vindas, a população sofre: os mais vulneráveis se veem à beira da fome enquanto as empresas não enxergam saídas para evitar demissões ou quebrar. Enquanto isso, o coronavírus avança.

O Congresso aprovou na última terça (31), a Renda Básica Emergencial, que pode alcançar cerca de 100 milhões de pessoas e pretende garantir renda para os mais vulneráveis por três meses, pelo menos. É uma medida de proteção social. Uma das pessoas que trabalharam para desenhar a política foi a economista Tereza Campello, que figura entre as maiores especialistas do Brasil e do mundo em políticas públicas sociais. Doutora em Saúde Pública pela Fiocruz, participou da criação e da coordenação do programa Bolsa Família, a mais importante política social do país e o maior programa de transferência de renda condicionada do planeta, que atualmente atende mais de 13,9 milhões de famílias em situação de vulnerabilidade e pobreza. Tereza foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo Dilma Rousseff (PT), entre 2011 e 2016. Conhece a fundo o Cadastro Único (que inclui cerca de 77 milhões de pessoas cuja renda é de até três salários mínimos) e sabe como funciona a máquina pública e as condições para chegar aos 5.570 municípios brasileiros.

Estudando em dois projetos de pós-doutorado sobre segurança alimentar na Universidade de Nottingham, no Reino Unido, Tereza concedeu uma entrevista exclusiva à coluna. Ela aponta caminhos capazes de mitigar o prejuízo social e econômico causado pela crise da covid-19, sem descuidar da saúde. "Nós somos um dos poucos países no mundo que desenvolveram tecnologia de ponta na área social. Não é difícil pagar a Renda Básica Emergencial", afirma. Leia, a seguir, a entrevista completa:

Como a senhora vê a situação do Brasil em relação às medidas que outros países estão tomando?
Há três semanas o governo Bolsonaro dá sinais contrários em relação ao que o mundo todo está fazendo. Há uma única direção: reduzir o número de casos com distanciamento social, fechar serviços não essenciais e o Estado assumir as necessidades econômicas e sociais. Não há escolha entre o vírus e a economia. Em todos os lugares do mundo medidas estão sendo tomadas para salvaguardar as duas frentes, impedir o crescimento da epidemia, garantir que essa curva de crescimento do número de casos graves seja a menor possível e, por outro lado, que as empresas não quebrem e que as pessoas não sejam demitidas. É claro que cada país tem uma situação diferente. Aqui na Inglaterra, por exemplo, o governo está bancando as folhas de pagamento em até 80% dos salários, no máximo até o equivalente a R$ 7.200 reais. Eu tenho trabalhado dia e noite ajudando a construir propostas. Porque, apesar de sermos oposição, já fomos governo e sabemos o que é possível fazer. É o que mais me motiva a construir propostasEntão, semana retrasada desenhamos o seguro-quarentena, que foi acatado pelas oposições, pelo Congresso Nacional e aprovado tanto pela Câmara dos Deputados quanto pelo Senado com o nome de Renda Básica Emergencial, com adaptações.

Quem tem direito à Renda Básica Emergencial?
O governo não consegue sequer explicar isso claramente. Tem direito: todo mundo que é do Bolsa Família, que em geral recebe muito menos que R$ 1.200 reais; todo mundo que está no Cadastro Único (famílias com renda de até 3 salários mínimo, autônomos, por exemplo, eletricistas, encanadores, o pipoqueiro, o sorveteiro, a costureira, a pessoa que vende bolo no ponto de ônibus); todo mundo que está desempregado, e microempreendedores individuais (MEI). Ao todo são cerca de 77 milhões de pessoas, ou 100 milhões de pessoas. Receberão R$ 600 por trabalhador ou R$ 1.200 por família ou para mães chefes de família.

Por que o governo ainda não agilizou o acesso a essa renda? É difícil fazer esse pagamento? 
Não é difícil pagar. É fácil. O governo vem falando naqueles R$ 200 desde o começo de março. Se pensava em pagar os R$ 200, deveria ter se preparado. Nós já estamos em 1 de abril, o governo tinha que estar com tudo isso pronto. O mecanismo vai ser o mesmo independentemente do valor. Carol, não é difícil pagar. Talvez seja difícil para alguns países da África, talvez seja até difícil para os Estados Unidos. Mas para o Brasil não é. Porque nós somos um dos poucos países no mundo que desenvolveram tecnologia de ponta na área social. O Cadastro Único é o cadastro mais bem qualificado do ponto de vista de conhecer a população pobre para poder chegar a essa população. Mostra quem são, onde vivem, enfim, tem informações variadas. E tem já pronto um aplicativo do Cadastro Único onde as pessoas podem atualizar suas informações. Então o governo pode permitir que as pessoas insiram informações rapidamente. E quem não está no Cadastro Único ainda pode se cadastrar. Há gente de altíssima qualificação técnica, tanto no antigo Ministério do Desenvolvimento Social quanto em outros ministérios e na Caixa Econômica Federal, que tem muita experiência com população de baixa renda (pagando Minha Casa, Minha Vida e seguro-desemprego). Temos muita qualificação técnica em tecnologia social para dar conta disso. Não há justificativa nenhuma para não pagar rápido essas pessoas. Agora o governo está falando em 16 de abril. Se fosse uma guerra e esperássemos um mês e meio para implementar uma medida simples, imagina, o país já teria explodido.

O governo pode estar forçando um caos social? Qual poderia ser o problema para essa demora?
Fico em dúvida se está forçando um caos social ou se é a velha tática de atrasar um mês porque você ganha um mês sem pagar. A pior coisa que pode acontecer hoje para a economia é que a gente não tenha esse dinheiro, que é um dinheiro para comida, circulando. Tem poucos setores da economia que podem funcionar. Um deles é exatamente o setor de alimentos. Se a gente puser renda na mão dessa população, vai evitar que ela se desespere e vá para a rua, um caos social, que as pessoas tomem medidas desesperadas, e, ao mesmo tempo, a gente faz essa parte da economia funcionar. Então, em todos os sentidos, a medida seria boa para o país. Por que não fazem? Porque são incompetentes e porque são cruéis. O presidente Bolsonaro é irresponsável e cruel, atua de forma criminosa entre o interesse público e a saúde pública. O ministro da Economia, Paulo Guedes, está tentando se aproveitar de uma crise gravíssima, do desespero da população – ou seja, tirar vantagem da crise epidemiológica, sanitária, para aprovar aquilo que lhe interessa, essa PEC [Proposta de Emenda à Constituição] em que se pode fazer tudo e passar dinheiro para os banqueiros, não é para pagar a Renda Básica Emergencial, que ele pode passar sem PEC. O que ele não pode é passar dinheiro a rodo para o sistema financeiro especulador, como está querendo fazer. Isso realmente ele não pode. Ele está tentando se aproveitar. Chantagear o país. Felizmente, o Supremo, nesse caso, já alertou que não precisa mudar a Constituição. Vamos ver quanto tempo vai demorar. É um tempo perdido desnecessário.

Justamente com as pessoas que mais precisam desses valores. 
Quem é pobre não tem poupança, não tem dinheiro guardado para sobreviver um mês. O povo não pode parar se não tiver essa renda que dê o mínimo de condição de subsistência. Estamos falando de comida. São R$ 1.200 para a família inteira. É mais do que necessário, é urgentíssimo e pode ser feito. No governo federal, nos estados, nos municípios, há gente que sabe como operar isso.

Como seria a distribuição mais fácil na prática? Via Caixa Econômica Federal?
Acredito que é a forma mais rápida de fazer. Se eu estivesse no comando, tomaria essa decisão. Tem outras alternativas, o que não pode é ficar discutindo a alternativa ideal, fazendo conferência por meses e meses porque até lá a população já vai estar morta. Pode ir melhorando conforme for avançando. Mas tem que fazer. É uma situação emergencial, não dá para esperar o modelo perfeito. Faz o que é possível. O mais rápido é ampliar o Cadastro Único, recepcionando os novos cadastrados, a maioria por via eletrônica. A regra é facilitar a vida das pessoas e evitar o contágio. A Caixa sabe como fazer isso, porque paga o Bolsa Família nos 5.570 municípios do Brasil. Onde não tem agencia da Caixa, tem o correspondente nos Correios e tem as agencias lotéricas. Tem rede no Brasil todo. O problema não é como fazer esse dinheiro chegar. Não estou dizendo que é simples, mas não é complexo para o Brasil. A gente não pode usar falsos argumentos para adiar salvar a população e salvar o país.

Que medidas seriam complementares à Renda Básica Emergencial para socorrer trabalhadores formais e empresas? 
Apresentamos um projeto que chamamos de salário-quarentena. Muitos países estão fazendo ações parecidas. É para o trabalhador que tem carteira assinada. O governo federal tem que pagar, durante esse período de crise, para que o trabalhador fique em casa. Imagine, por exemplo, um pequeno comércio, que está fechado, que vende um serviço, lavanderia, cabeleireiro, uma pequena loja. Fechou, não tem faturamento. Se não tem faturamento, não tem como pagar os trabalhadores, porque paga com esse capital de giro, com o que faturou no mês. Esse é o pior cenário. Porque vai quebrar a empresa, desempregar essas pessoas, que também ficarão completamente sem proteção social. Então, a nossa proposta é: o Estado tem que cobrir essas folhas de pagamento. Ajudar a empresa a não demitir ninguém. A ideia é dar um salário-quarentena pago pelo Estado brasileiro, para cada trabalhador com carteira assinada, com faixas diferentes, voltado para que não se demita ninguém. É garantir recursos para que a empresa não demita. Nós queremos que as pessoas fiquem em casa, exceto as áreas essenciais, e que a economia continue viva. Quando essa crise passar – e vai passar – nós não podemos ter um país com as empresas quebradas, as pessoas desempregadas. Como garantir essa travessia? Existem caminhos. Não passa por "as empresas vão quebrar então trabalhe". Esse não pode ser o recado. Esse recado está errado. É criminoso. Coloca as pessoas em risco.

O governo bancaria uma parte desse salário e a empresa cobriria a outra parte? 
Estamos propondo dois blocos de pessoas (PL 1168/2020): para quem ganha até 3 salários mínimos (no Brasil, mais de 80% dos trabalhadores com carteira assinada ganham até 3 salários mínimos), se trabalhar em uma micro ou pequena empresa (pequena lavandeira, pequeno comércio, cabeleireiro), o governo federal tem que pagar 100% do salário, ou seja, para quem ganha até R$ 3.135. Se a pessoa ganha até 3 salários mínimos e trabalha numa grande empresa, num grande banco, uma loja grande, numa grande indústria, o governo federal vai pagar até 75% do salário mas nunca menos que um salário mínimo. Assim, o mais pobre de uma grande empresa, no mínimo vai receber um salário mínimo. Isso estaria garantido. Se a pessoa recebe mais que 3 salários mínimos, nós também achamos que ela tem direito, o Estado pagaria até 50%. Assim, 100% dos trabalhadores com carteira assinada serão beneficiados. São 30 milhões de trabalhadores.

E a empresa?
Apresentamos um segundo projeto de lei (PL 1169/2020), já protocolado na Câmara dos Deputados e no Senado. É uma linha de crédito de R$ 300 bilhões do Banco Central mais R$ 100 bilhões do BNDES, que vai garantir capital de giro para que essas empresas tenham recursos para bancar a sua parte. Imagina uma pequena empresa, uma microempresa, o trabalhador ganha, por exemplo, R$ 4 mil: o Estado vai pagar até R$ 3 mil e ela vai ter que suprir essa diferença. Mesmo sendo 25%, ela não tem faturamento. Esse dinheiro o governo tem que emprestar, com carência, para quando essa crise passar a empresa ainda não precisar pagar. Só pagará depois da crise e, mesmo assim, com tempo para se recuperar. A missão é a empresa não demitir ninguém e continuar viva, ativa, mesmo com as portas fechadas, para que quando a gente puder se recuperar ela tenha condições de voltar e contribuir para o Brasil retomar o desenvolvimento e o crescimento. As medidas precisam ser tomadas imediatamente.

Como a senhora vê a atuação dos ministros Paulo Guedes (Economia), Onyx Lorenzoni (Cidadania) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde)? 
O ministro Onyx até agora falou muito, mas medida concreta, nada. O Paulo Guedes, em vez de falar para os empresários, para a população pobre, ele foi falar para quem? Para a XP [corretora]. Eu acho uma aberração. O ministro da Economia, em vez de se comunicar de forma clara, tranquilizando a população, foi tranquilizar o grande investidor e o especulador. Isso é um acinte com o povo brasileiro, que é quem está sob risco. As pessoas estão assustadas. Não acalma nada dizer que ou você vai morrer de vírus ou vai morrer desempregado de fome. Só gera mais desespero. Existem medidas que podem ser tomadas e eles têm que dar garantia de que isso vai acontecer. Não deram. Tem muita gente qualificadíssima no Ministério da Saúde, tanto na área de produção científica quanto na área de execução de políticas públicas. Poucos países do mundo têm um sistema integrado como o Brasil, que consegue rapidamente baixar protocolo, baixar orientação, do governo federal, estados e municípios no mesmo dia. O ministro Mandetta, com medo de enfrentar o presidente da República, que tem falado de forma criminosa contra a saúde pública, fica tentando dourar a pílula. Isso não ajuda em nada. A população continua desorganizada. Medidas muito duras do ponto de vista sanitário precisam ser tomadas, ele tem que defender o que vem sendo dito pelas OMS [Organização Mundial de Saúde], que tem dado orientações claras. O ministro Mandetta tem que nos ajudar neste momento de crise. Apesar de ter tomado medidas corretas inicialmente, agora, infelizmente, estamos perdendo tempo na área de saúde também. O Brasil tem um ativo que é o sistema de saúde. Estamos desperdiçando. O mundo está enfrentando essa crise de forma unida. No Brasil, não. Cada um atira para um lado e quem está levando o tiroteio é o povo. É lamentável.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.