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Maria Carolina Trevisan

Bolsonaro só mudará discurso quando não tivermos mais onde enterrar mortos?

Maria Carolina Trevisan

28/03/2020 12h30

Conheci o "tio José" quando eu tinha uns 10 anos, na casa da minha melhor amiga. Lembro do seu sorrisão, escondido debaixo de um enorme bigode. Um cara gente boa, divertido, alegre. Ontem, ele sentiu falta de ar. Foi sozinho ao hospital. E morreu. Ele não era velhinho. Também não era atleta. Não sei se tinha outra doença. Mas isso pouco importa agora. Tudo indica que ele foi acometido pelo coronavírus. Nem o hospital, nem o necrotério queriam guardar seu corpo.

A cada dia que passa escutamos mais histórias como essa. A pessoa "sentiu falta de ar e morreu". Esse quadro evidencia duas questões fundamentais: o sistema de saúde já está quase no limite de sua capacidade para demandas de pacientes com insuficiência respiratória; o vírus se expande rápido e a doença avança veloz sobre a população. Nesse ritmo, em pouco tempo, cada um de nós conhecerá alguém (ou mais de uma pessoa) que perdeu a vida por conta do coronavírus. "Nas duas últimas semanas, houve uma explosão [de casos de insuficiência respiratória]. Essa curva aumentou drasticamente, possivelmente por causa do coronavírus", diz o pesquisador Marcelo Ferreira da Costa Gomes, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), vinculada ao Ministério da Saúde. Sem contar os profissionais de saúde contaminados por falta de equipamentos de proteção, o que é cada vez mais comum.

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Contrariando pesquisadores, cientistas e médicos, na contracorrente da experiência de outros países e das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o presidente Jair Bolsonaro resolveu defender a posição menos segura. Gastou R$ 4,8 milhões para executar a campanha #OBrasilNãoPodeParar, a favor do isolamento vertical, sem ter qualquer alternativa para abrigar os idosos mais carentes e sem se basear em pesquisas científicas ou experiência prévia que demostre sucesso nessa decisão.

Em reuniões com secretários estaduais de diversas áreas, autoridades federais admitem que não há um estudo para justificar a medida. Mas há o exemplo da Itália, que fez o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, pedir desculpas por não ter mantido a quarentena e ter pedido que as pessoas voltassem às ruas. 

Secom apaga post com campanha e alega que ela nunca existiu. Foto: reprodução

"A quase totalidade dos óbitos se deu com idosos. Portanto, é preciso proteger essas pessoas e todos os integrantes dos grupos de risco, com todo cuidado, carinho e respeito. Para estes, o isolamento. Para todos os demais, distanciamento, atenção redobrada e muita responsabilidade. Vamos, com cuidado e consciência, voltar à normalidade", diz o texto da campanha.  Não diz, no entanto, o que fazer quando idosos, adultos e crianças vivem na mesma casa.

Em nota, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Comissão Arns, a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência afirmaram que "a campanha de desinformação desenvolvida pelo Presidente da República, conclamando a população a ir para a rua, é uma grave ameaça à saúde de todos os brasileiros. A hora é de enfrentamento desta pandemia com lucidez, responsabilidade e solidariedade. Não deixemos que nos roubem a esperança". A Justiça Federal do Rio de Janeiro barrou a veiculação da campanha neste sábado (28). 

A única referência do presidente Bolsonaro é ele mesmo. Como se fosse invencível e pudesse prever o futuro, considera o coronavírus uma "gripinha"que não pega em atletas, o que não é verdade. A ideia de que a vida de alguns brasileiros é sacrificável em nome da economia, encampada pelo líder máximo da nação, é muito grave.

Seria mais sensato tentar equilibrar o impacto do isolamento, colocar o Estado para girar a economia enquanto dura a fase mais aguda da doença. É o que defende o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), e quase todos os governadores.

Quando expõe determinados brasileiros (em especial os trabalhadores domésticos, ambulantes, pedreiros, os mais pobres de maneira geral) ao abate pela covid-19, o governo federal se responsabiliza parcialmente pela morte de muitos. "O Brasil precisa discutir quem será o fiador dessas mortes", afirmou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), em entrevista coletiva na última sexta (27). São Paulo é o estado com mais mortes por coronavírus notificadas atualmente. 

Até agora, 25 pessoas do entorno de Bolsonaro foram infectadas, entre ministros, o secretário de comunicação e assessores. Um de seus seguranças está internado.

Economia x saúde

Coletiva de imprensa sobre coronavírus com Guedes e Mandetta – Foto: Sergio Lima /AFP

Em muitos países que enfrentam a Covid-19, há interferência do Estado na economia para aliviar o impacto negativo causado pelo isolamento, fechamento de serviços, escolas e comércio. O Observatório de política fiscal da Fundação Getúlio Vargas levantou as ações nos Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Inglaterra, França (que acaba de estender a quarentena por mais duas semanas, assim como a Espanha) e Brasil e considerou as medidas por aqui ainda tímidas. É que estão picotadas, divididas em cada área, sem liderança.

O ponto principal – e Rodrigo Maia vem apontando esse problema – é que o embate do governo federal com governadores e Congresso atrapalha a definição de uma previsibilidade, o que daria segurança a empresários e a trabalhadores formais e informais, permitindo que todo o mundo se planejasse de acordo com o que vai sendo proposto de tempos em tempos. Mas não há centralização. A decisão pela renda básica emergencial é uma das medidas acertadas, que precisa ser complementada por outras ações e garantias.

Não é verdadeiro o discurso de que, ao investir em um plano de contenção de circulação pela lado da saúde, se negligencia a economia. É justamente nesse balanço que uma estratégia robusta deveria se basear, envolvendo representantes de todas as frentes (incluindo empresários, autoridades dos três Poderes e esferas políticas, sindicalistas, cientistas, sociedade civil e outros especialistas). Mas falta o maestro para liderar essa orquestra.

O futuro que se avizinha para nós, no Brasil, é sinistro. Está todo ancorado na proximidade da morte. Talvez, bolsonaristas percebam a gravidade quando morrerem os amigos, os políticos próximos. A morte nunca foi preocupação para esse governo. Será a quantidade de corpos que contaremos e a falta de espaço para os enterros solitários que fará com que o país consiga consenso? Será que só isso (ou nem isso) fará o presidente abrir mão desse discurso negacionista? Isso é muito triste.

Em tempo: olhando as redes sociais do tio José, vi que ele sempre defendeu Bolsonaro.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.