Coronavírus requer adoção de medidas humanitárias para presos, não o oposto
Imagine que seu filho – ou o filho de alguém que você conhece – está confinado em um local onde as condições são: aglomeração permanente, falta de acesso à saúde, risco de contrair tuberculose 28 vezes maior do que na população em geral. Pense se seu filho estivesse submetido a alimentação precária, falta de água potável, ambiente sujo e pouco ventilado, e agora fosse obrigado a conviver com os riscos de uma pandemia, muitas vezes letal para quem vive nas condições citadas, como é o o novo coronavírus.
O coração estaria aflito e em alerta pela possibilidade de aproximação real da morte, que visita tantas vezes os presídios brasileiros. Qualquer mãe faria o que estivesse ao seu alcance para confortar seu filho, para que se sentisse seguro e tranquilo, apesar da crise.
É nesse ambiente que vivem 812.564 pessoas presas em regime fechado, semiaberto ou cumprindo pena em abrigos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Há também cerca 20 mil adolescentes e jovens internados por medidas socioeducativas. Estão todos sob custódia do Estado, portanto, os familiares não podem protegê-los. É o governo dos estados e o sistema de Justiça que têm a obrigação de garantir que, diante do coronavírus, essas pessoas tenham acesso à dignidade.
É urgente informar os detentos sobre a pandemia e suas consequências e sobre as formas de prevenção, fornecer meios de higiene e acesso a tratamento, medicamento, consultas médicas, garantir meios de se comunicarem com as famílias.
"Imagina um preso com coronavírus, o caos que vai ser?", preocupa-se uma familiar de detento. "É preciso informar os presos antes de tomar qualquer atitude. Em alguns casos, o ideal seria que pudessem cumprir pena em casa. O presídio é um lugar insalubre. As mães estão muito aflitas; as esposas, desesperadas."
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Na segunda (16) e na terça-feira (17), diferentes esferas de governo adotaram medidas restritivas para presídios. Em São Paulo, a suspensão de visitas e de saídas temporárias fez com que quase 1.400 detentos fugissem, além de provocar rebeliões simultâneas. "Quando você suspende a saída, você está tomando uma decisão cujo ônus é integralmente dos presos e das pessoas que trabalham nos presídios", afirma a professora Camila Nunes Dias, da UFABC, e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Se por um lado o CNJ recomendou o desencarceramento de presos em risco, a redução do fluxo de ingresso no sistema prisional e socioeducativo, a realização de audiências por videoconferência, a elaboração conjunta de planos de contingência e o suporte para planos de visitas (sem suspensão delas, mas diminuindo o contato e aumentando a prevenção), por outro lado o ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) segue endurecendo as políticas nos presídios federais. Também na terça, pediu a suspensão das visitas. Diz que é para proteger detentos e famílias. Mas não é bem assim. Isolar os presos pode, justamente, matá-los.
A proposta assinada pelo presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, leva em conta a questão humanitária e o contexto insalubre dos presídios. Uma vez que o sistema prisional é reconhecidamente um "estado de coisas inconstitucional", determinado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, com altos índices de tuberculose, sífilis, HIV, problemas respiratórios e doenças de pele, impor o isolamento total aos presos é o mesmo que propor uma sentença de morte. Nas condições atuais, seria mínima a chance de sobrevivência.
Por isso, as cadeias reagiram. E continuarão reagindo se os governos não considerarem a dimensão humanitária e a constante violação de direitos a que essa população está submetida. "A crise gerada pelo novo coronavírus exige medidas fortes, criativas e de amplo alcance. O Estado é responsável pelas vidas dos que estão sob a sua custódia, e precisa agir com firmeza para evitar que a epidemia leve as mortes por doenças nas prisões a novos e vergonhosos recordes", diz informe da Rede de Observatórios da Segurança desta terça (17).
O problema é o governo usar o coronavírus como justificativa para negligenciar e cometer excessos nos presídios. "São necessárias medidas de reestruturação da área de saúde no sistema prisional, agilidade no atendimento médico, além de mutirões para rever prisões desnecessárias e vencidas", afirma o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos humanos e conhecedor do funcionamento dos presídios.
Ele sugere formas alternativas de comunicação, se as visitas forem proibidas. "As visitas são o único alicerce dos presos, o principal apoio material e psicológico. A suspensão generalizada, com falta de diálogo e informações entre autoridades, presos e familiares pode gerar instabilidade e rebeliões."
Em São Paulo, a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de sua Comissão de Direitos Humanos, se dispôs a fazer a mediação entre diretores de presídios, presos e familiares, para tentar evitar a violência contra os detentos e também contra os agentes penitenciários.
"É importante tomar cuidado nas visitas, que é o que o preso mais quer. Mas impedi-las é uma crueldade. A visita dá ao presidiário a sensação de que ele não está abandonado. Esse acolhimento acalma", afirma Ana Amélia Mascarenhas Camargo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.
O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) entrou com uma liminar para o Supremo Tribunal Federal, pedindo para reduzir a população carcerária em razão da pandemia. "Seriam beneficiadas pessoas com mais de 60 anos, soropositivos para HIV, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras, diabéticos e portadores de outras doenças cuja preexistência indique suscetibilidade maior de agravamento do estado de saúde a partir do contágio pelo Covid-19. Inclui, ainda, gestantes, lactantes e acusados de crimes não violentos", diz o pedido, com base na ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 347/2015, que considera o sistema prisional um "estado de coisas inconstitucional". No fim da noite desta terça, o ministro Marco Aurélio, do STF, reforçou as mesmas recomendações, especialmente medidas de desencarceramento.
"Trata-se de uma questão de saúde pública. O impacto no sistema prisional será muito maior do que na sociedade em geral, o que pode sobrecarregar o sistema de saúde. Além disso, é importante levar em consideração o número grande de pessoas que têm contato com a população carcerária, são mais de 100 mil trabalhadores", alerta Marina Dias, diretora-executiva do IDDD. "É preciso considerar essa questão na tentativa de mitigar os efeitos da pandemia na sociedade como um todo." O governo do Irã, por exemplo, desencarcerou 85 mil presos por conta da pandemia.
Nunca, na história do Brasil, foi tão importante o pensamento coletivo. Se você não consegue pensar na situação já horrível de quem vive nos presídios, pense nessas mães.
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