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Maria Carolina Trevisan

Em nome de Deus e da família, Bolsonaro e Witzel desafiam o direito à vida

Maria Carolina Trevisan

25/09/2019 09h00

Ághata Félix, 8 anos, morta em operação policial no Rio. Foto: reprodução Instagram

A rotina de Ághata Vitória Sales Félix, 8 anos, mini mulher maravilha que morreu ao ser alvejada por um tiro durante operação policial no Complexo do Alemão na última sexta-feira (20), era frequentemente interrompida pelo medo. O barulho dos disparos efetuados por helicópteros que, cada vez mais, sobrevoavam sua casa já tinha feito com que a menina tivesse que se esconder no boxe do banheiro. Lá era mais seguro, mas não tanto. Na manhã desta terça-feira (24), sua mãe, Vanessa, contou a Fátima Bernardes, no programa Encontro, que Ághata tinha cada vez mais medo. É que a saraivada de tiros dura cada vez mais. Cada vez mais. "Agora tem muita bala. É uma eternidade", disse a mãe de Ághata.

Na noite em que a bala atravessou suas costas, outra vez, o ruído da violência que mata: "Um barulho muito forte, um barulho muito forte", repetiu Vanessa, ao relatar o momento em que o tiro atingiu a filha. A menina reagiu com medo. "Mãe, mãe, mãe!" E a mãe tentava acalmá-la. Até que Ághata ficou em silêncio. Os segundos que se seguiram foram preenchidos pelos gritos e pelas buzinadas do motorista da Kombi: "Para! Criança baleada! Não, não, criança baleada! Sai da frente, criança baleada!" Nos dois depoimentos que prestou, o condutor do veículo afirmou que não havia conflito, situação confirmada também pelo avô de Ághata. Mas o motorista viu dois policiais militares armados naquele momento.

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Ao chegar à Unidade de Pronto Atendimento (UPA), dois policiais, que nada tinham a ver com a operação, levaram Ághata e Vanessa ao Hospital Getúlio Vargas. Nessa hora, a menina não falava mais. "Tentei ouvir o coração, não sei se estava batendo ou não. Acho que estava fraquinho", lembra a mãe. "Chegando ao hospital, ela deu dois suspiros e eu disse: 'Filha, a mamãe tá aqui'."

Não há como não se solidarizar com essa mãe, com essa família, com essa comunidade, com as favelas, com o Rio de Janeiro e com o Brasil, que vai pelo mesmo caminho. Um drama desse tamanho toca o coração de quem está vivo. Nenhuma justificativa é suficiente para sustentar uma política pública que coloca em risco tanta gente. São cerca de 70 mil moradores no Complexo do Alemão. Nas 763 favelas do Rio vivem mais de um 1,3 milhão de pessoas, de acordo com o Censo 2010. Com o discurso de salvar o Rio da criminalidade, seu governador Wilson Witzel põe em risco a vida de milhões de pessoas, todas pobres, a maioria negra.

Nas horas e nos dias que se seguiram, as autoridades silenciaram sobre Ághata. Em seu Twitter, o governador do Rio, responsável pela atuação da polícia, celebrava (sim, ele usou o verbo celebrar) o aniversário de São Gonçalo e o Dia Mundial Sem Carro. Nada mais importante, certo? Só três dias depois, na segunda (23), Witzel achou por bem responder aos apelos da opinião pública. E declarou: "Tenho filha de 9 anos e não posso dizer aqui que sei o tamanho da dor que os pais da menina Ághata estão sentindo. Tem sido difícil ver a dor das famílias que têm perdido seus entes queridos em razão da inescrupulosa atuação do crime organizado. (…) Eu pessoalmente liguei para o secretário de Polícia Civil e Polícia Militar determinando que dê prioridade na investigação, que tenha rigor na investigação. (…) Reduzimos em 21% os homicídios. Se nós não estivéssemos trabalhando da forma como as polícias estão trabalhando, teríamos hoje quase 800 pessoas mortas."

Mas a polícia do Rio já matou, só em 2019, quase 900 pessoas, segundo o Observatório da Segurança Pública. Entre os mortos estão 5 crianças, das 11 que foram baleadas. Isso não é política de segurança pública. Tem outros nomes. Pode ser interpretado como genocídio ou como extermínio porque mira num determinado grupo populacional: negros e pobres. Os dados do Atlas da Violência 2019 mostram que a taxa de homicídios de indivíduos não negros diminuiu 6,8%; entre as vítimas negras, houve um aumento de 23,1%.

"Criei a Secretaria de Vitimização para auxiliar aqueles que sofrem com a violência e para impedir que caixões sejam transformados em palanques políticos. É inadmissível que isso seja feito, ainda mais a partir da morte de uma criança." Mas é justamente sobre essas mortes, representadas pelos caixões, que o governador Witzel vem montando sua campanha. Aliás, Witzel esteve no palanque destruindo a placa de Marielle Franco, vereadora negra executada no Rio. Parece cena de "Bacurau", filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, em que o prefeito Tony Jr envia caixões o tempo todo à cidade para enterrar as vítimas da violência, incluindo um menino do tamanho de Ághata. 

A criação de uma Secretaria de Vitimização, por si só, já é uma aberração, um desvio da política pública. É como se a matança estivesse autorizada em nome da segurança. Mas nada cura essa dor. E não está tudo bem. Ao jornal Voz da Comunidade, que tem feito um importante trabalho ao mostrar essas operações e suas consequências letais, a família disse que não quer ajuda desse governo. É um dinheiro que ninguém quer receber. O enterro da mini mulher maravilha foi pago pela solidariedade de amigos e moradores do Alemão. No trajeto, balões amarelos lembravam que aquele caixãozinho tinha o corpo de uma criança. Ao fundo, ouvia-se o lamento de uma voz feminina em prantos e no fim do cortejo a oração do pai-nosso rezada por outras crianças. Todas devem estar com muito medo.

Para finalizar sua defesa da família, o governador Witzel publicou decreto no Diário Oficial de terça (24) em que retira a redução de mortes cometidas por policiais como um dos indicadores do Sistema Integrado de Metas. Significa que os policiais do Rio não serão mais incentivados a reduzirem a sua letalidade.

Bolsonaro na ONU

O presidente Jair Bolsonaro esteve na abertura da Assembleia Geral da ONU, nesta terça (24). Em nome de Deus e da família, Bolsonaro registrou em todos os seis idiomas oficiais das Nações Unidas (que chegam a quase 40% da população mundial) seu posicionamento contra o que ele chamou de "socialismo". Atribuiu a presidentes socialistas que o antecederam o desvio de "centenas de bilhões de dólares". Celebrou veladamente a ditadura militar. Afirmou que o ministro Sergio Moro é símbolo do país, um grande patriota.

Seguiu com a parte sobre segurança pública falando do número de homicídios. Disse que em 2017 cerca de 700 policiais foram mortos. Esqueceu-se de falar que só a polícia do Rio de Janeiro matou quase mil pessoas nos primeiros seis meses do ano. Seu discurso falou aos mais extremistas, justamente aos inimigos da ONU, em pleno palco da ONU. Não se colocou como país promotor da paz no mundo, apesar de usar a palavra "paz".

Atacou Venezuela, Cuba, França, Alemanha, a imprensa nacional e a internacional, Lula, o líder indígena Raoni, as ONGs, os países preocupados com a Amazônia e a própria ONU. "O Brasil é muito diferente daquele estampado em muitos jornais e televisões", disse o presidente.

Rejeitou a condição da Amazônia como patrimônio da humanidade e defendeu a "soberania brasileira". Apoiou nominalmente Sergio Moro, seu ministro da Justiça, que desenvolveu um pacote anticrime que prevê a "excludente de ilicitude", ou seja, o perdão penal a policiais que aleguem "surpresa, escusável medo ou violenta emoção" ao matar alguém.

Ofereceu "capacitação de tropas" e avisou que pretende visitar países como Japão, China, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Catar, alguns desses, governos absolutistas. Diante de 193 mandatários estrangeiros e seus representantes, afirmou que o Brasil é um país "aberto ao mundo, em busca de parcerias com todos os que tenham interesse de trabalhar pela prosperidade, pela paz e pela liberdade".

A ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, gostou do que disse o presidente. "Palavras firmes e que atenderam aos verdadeiros anseios da população brasileira. Nosso país é soberano, pró-família e pró-vida. Sob sua liderança, trabalhamos incansavelmente pela construção de uma Nação próspera."

Bolsonaro citou Deus quatro vezes, em duas delas para falar sobre a esquerda: "A ideologia invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus e a dignidade com que Ele nos revestiu." Disse que sofreu um atentado de um militante de esquerda e a Ele agradeceu. "Obrigado a Deus pela minha vida."

Mas até hoje se esqueceu de evocar Deus para consolar a família da Ághata.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.