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Maria Carolina Trevisan

Ao fatiar pacote, Moro minimiza caixa 2 e reforça legítima defesa policial

Maria Carolina Trevisan

21/02/2019 05h00

Ministro Moro cumprimenta presidente Bolsonaro em posse Foto: Eraldo Peres/AP

O presidente Jair Bolsonaro declarou, na manhã desta quarta (20), que "a maior preocupação de um pai, de uma mãe, é que os filhos voltem para casa em paz". O presidente se referia ao pacote anticrime apresentado pelo ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) ao Congresso nesta terça (19). Mas se o pacote for aprovado da maneira como foi proposto, pais e mães de meninas e meninos negros moradores de favelas terão que se preocupar ainda mais.

As medidas tendem a fortalecer a estratégia de operações policiais – que no Rio resultou na morte de 42 pessoas em apenas 10 dias (algumas sob tortura) – e aumentar a impunidade em casos de violência policial. Ao ampliar o conceito de legítima defesa dos policiais e garantir a excludente de ilicitude para que tenham penas suprimidas ou diminuídas à metade, o pacote anticrime expõe quem sempre esteve mais sujeito à violência: das 63 mil vítimas de homicídio no Brasil a cada ano, 70% são jovens negros e pobres. É o mesmo perfil das vítimas de violência policial.

O pacote poderia servir para combater a corrupção, um lema importante da campanha de Bolsonaro. Mas Moro cedeu aos apelos de parlamentares e fatiou a proposta em três partes, deixando o caixa 2 – uma das práticas mais enraizadas nas campanhas políticas – separado do restante. "Houve uma reclamação por parte de alguns agentes políticos que o caixa 2 é um crime grave, mas não tem a mesma gravidade que corrupção", disse o ministro a jornalistas. "Fomos sensíveis", completou.

Há dois anos, em sua época como juiz, Moro pensava diferente e chegou a escrever em sentença que "a destinação da vantagem indevida em acordos de corrupção a partidos políticos e a campanhas eleitorais é tão ou mais reprovável do que a sua destinação ao enriquecimento pessoal, considerando o prejuízo causado à integridade do processo político-eleitoral". O tema enfrentará resistência no Congresso.

"Me chamou muito a atenção, muito mesmo, que o Moro tenha aceitado fatiar o pacote separando o caixa 2. Porque o Moro juiz dizia que caixa 2 é pior que corrupção. E o Moro ministro disse que é um problema menor, claramente sinalizando um acordo com o Congresso e eventuais resistências com a base aliada", diz o sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "O discurso da corrupção foi abduzido pela guerra ideológica e cultural que tanto eles [Moro e Bolsonaro] acusam na esquerda", avalia Renato.

Nesta entrevista Renato analisa os principais pontos do pacote anticrime de Moro e conclui: o que realmente interessa ao núcleo palaciano no projeto anticrime é tudo o que envolve legítima defesa e "violenta emoção" como a excludente de ilicitude para absolvição sumária dos policiais.

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UOL – O senhor esperava que o ministro Sergio Moro fosse rever as questões relacionadas à legítima defesa depois das primeiras críticas? 

Renato Sérgio de Lima – De forma alguma. Essa era promessa de campanha de Bolsonaro. Não existe espaço para reflexão ou diálogo. É uma decisão do grupo palaciano. Bolsonaro deixou claro que, assim como a ampliação do porte de armas, ele não abriria mão [da excludente de ilicitude para policiais]. É esse o ponto central do projeto, que vai ser batalhado no Congresso e que vai se tornar prioridade para a liderança do governo. O restante vai ficar na conta do Moro.

O pacote tem alguma medida efetiva para enfrentar as milícias, um dos temas que mais causa medo na população?

O que está acontecendo é um confronto aberto contra facções de base prisional do tráfico. Não temos confronto dessa natureza com a milícia. Por mais que o pacote anticrime tenha incluído a palavra milícia, não há absolutamente nenhum tipo de iniciativa que visa a sufocar as milícias. Se a gente olhar para o direito internacional, a milícia é um tipo de organização que mais se assemelha a um grupo terrorista no Brasil. Que é aquele que rivaliza poder político com o Estado, domina um território e impõe um regime político próprio. O tráfico é nocivo, extremamente violento, faz a população refém, mas o objetivo é dinheiro. Já a milícia vende serviços ilegais, principalmente proteção, e vai entrando no poder público, por exemplo, na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa, no governo estadual. As milícias seriam, pelo direito internacional, o tipo de organização que mais se parece com terroristas. E nada é feito. 

Incluir a palavra "milícia" como organização criminosa, da maneira que propõe Moro, muda algo? 

Essa é a forma que a legislação italiana segue. Mas toda a arquitetura do sistema jurídico brasileiro vem do modelo ibérico [e a proposta de "plea bargain" é importada dos Estados Unidos]. Você quer que isso funcione? Não tem como. São concepções, tradições, formas de trabalho completamente diferentes. É necessário um sistema coerente, uma gestão que inclua política criminal coerente e que seja eficiente e efetiva.  É um sistema que não vai funcionar, sempre vai bater cabeça. 

Uma boa legislação não pode ser um puxadinho de concepções diferentes.

O que Moro teria que propor para enfrentar as milícias de fato? 

Teríamos que criar uma força tarefa com o Ministério Público e a Polícia Federal e debelar as milícias rastreando exatamente quem são, quais as redes de influência, as conexões políticas, aonde está o dinheiro e como vão impondo o medo. Isso é difícil porque envolve muitas vezes a participação de agentes ou ex-agentes do Estado. É mais fácil eu ter clareza que o traficante é um malvado do que entender que eventualmente eu preciso fazer uma depuração das instituições. Muito se falou no Brasil sobre a operação tolerância zero, que reformou a segurança de Nova York há uns 20 anos. Mas houve uma enorme investigação nos serviços internos e demissão sumária dos maus policiais.

Não dá para a gente pensar em enfrentar as milícias sem identificar, processar e punir, mas também demitir os integrantes e todos os envolvidos que de alguma forma protegem milicianos. É assim que a gente vai ter ordem. Isso é cumprir a lei. Porém essa discussão não foi feita. E a tolerância zero com a corrupção que permite que as milícias existam? 

Alguns especialistas disseram que o pacote anticrime não fortalece a inteligência policial e a investigação. O ministro negou. Disse que para isso propõe um banco nacional de balística e de DNA. O que o senhor acha dessas medidas? 

Ele não tocou na essência do problema, que é o engessamento quase que cartorial do processo de investigação. Em nenhum lugar do mundo banco de DNA ou de balística é utilizado em 100% dos casos. Isso é importante, não vamos desmerecer, mas é perícia, um componente da investigação. Tem uma série de questões administrativas e de gestão que o projeto não fala nada. Existe uma série de comparadores balísticos em uso no país. Nem sempre estão habilitados, os profissionais não são treinados, junto com isso tem questões de custeio e manutenção do sistema, o banco de rastreamento de armas até hoje não está integrado entre Exército e Polícia Federal. Não tem avaliação, não tem monitoramento. As nossas instituições têm muito recurso tecnológico mas falta um norte comum.

Não adianta chamar a atenção para o modelinho 'CSI' se a minha parte de logística não foi devidamente remodelada.

O ministro diz que houve diálogo para construir esse plano. O senhor concorda?

Moro chamou secretário de segurança, juízes federais, comandantes de polícia, governadores. Um passo importante para construir legitimidade. Só que todos esses atores estão representados no Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, do Sistema Único de Segurança Pública, que foi criado no ano passado e ele não chamou uma reunião com o conselho. Chamou alguns atores isoladamente, mas não promoveu um debate articulado para poder coordenar o que é mais importante, como vai ser feito, o que cada um pode propor. Ele não deu bola para o conselho. A sociedade civil não foi ouvida. O conselho é formado pelos tomadores de decisão. Sua ideia é poder integrar. Seria o espaço ideal para apresentar, ouvir as demandas e calibrar o projeto. 

O ministro respondeu aos anseios dos eleitores do governo Bolsonaro ao propor o endurecimento de penas, entre outros pontos. Aumentar penas pode ajudar a diminuir a violência? 

Não. Por exemplo, o caso dos homicídios: você tem mais ou menos 25% de taxa de esclarecimento de homicídios no Brasil. Então, 75% desses crimes não são esclarecidos. Eu posso endurecer a pena, dizer que vai ser regime fechado… Mas quem mata, tirando os casos passionais, aqueles que são ligados a organizações criminosas não estão preocupados se vão ficar 10 anos, 20 ou 30. Quem constroi a carreira na delinquência sabe que a prisão faz parte. E sabe que nesses processos uma hora vai ser preso e vai ficar. Não adianta endurecer a lei sem trazer eficiência para a investigação, sem considerar como gerir melhor o sistema prisional para que as facções não sejam as donas dos presídios. O que adianta eu aumentar penas, tirar a audiência de custódia, diminuir a progressão de pena e amontoar o preso no presídio? Como estão superlotados, do portão para dentro quem cuida são os próprios presos. Ou seja, para sobreviverem precisam garantir lealdade às facções.

O próprio Estado estará oferecendo mão de obra gratuita para as facções criminosas. Endurecer não vai resolver nada.

O que pode resolver?

Trabalhar a melhoria na investigação, no esclarecimento, colocar a Polícia Civil para trabalhar com a PM, com o Ministério Público, evitar retrabalhos na produção das provas, no inquérito policial, garantir que a prova testemunhal não seja a única prova de um inquérito. Não basta uma mudança processual ou penal. É preciso envolver legislação especial, direito administrativo, outras esferas que o pacote acaba não abordando.

Por ora, o pacote é uma peça política para mostrar que o governo está tentando cumprir a sua promessa eleitoral. Não vai resolver nada. Como uma peça de política de segurança pública ela é capenga. Só trata de um pedaço.

O que tem de bom no pacote?

O diagnostico é bom, mas a solução é pontual e parcial. Tiro curto. Há um reconhecimento de que você tem que por o nosso sistema em discussão porque somos ineficientes e pouco efetivos. Por isso, precisamos provocar uma reflexão sobre até onde queremos ir. Outro ponto importante é que não dá para tratar criminosos violentos da mesma forma que a gente trata criminosos menos violentos. Por fim, há uma compreensão de que a população está exaurida e quer uma saída. O governo entendeu isso e colocou na mesa uma proposta que tem a ver com endurecimento da lei. O projeto toca em temas caros à população, mas o fato de ser operacionalizado em reforma o torna parcial e a capacidade dele mudar a realidade é muito residual. O pacote acerta no diagnóstico mas erra no prognóstico, trata tudo de forma muito rápida no atacado e não entra na discussão da arquitetura do sistema de justiça e segurança e a governança desse sistema.

 

Leia as três partes da proposta na íntegra: 

Corrupção e crime organizado

Mudanças no código de processo penal

Caixa 2

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.