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Maria Carolina Trevisan

Ustra, herói de Bolsonaro, foi torturador; Justiça não pode duvidar disso

Maria Carolina Trevisan

18/10/2018 12h39

Ustra em depoimento à Comissão Nacional da Verdade – Foto: reprodução

Desembargadores da 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram, por unanimidade, extinguir ação de indenização movida pela família do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, torturado e morto pela ditadura, contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), chefe do DOI-Codi, um dos centros de repressão mais severos do país.

No julgamento, os desembargadores se referiram a Brilhante Ustra como "suposto torturador" de uma "suposta ditadura", botando em dúvida o reconhecimento do Estado brasileiro de que o coronel foi responsável por mortes e torturas durante o regime militar. Não era a indenização o que mais importava para a família, era o reconhecimento da Justiça e a responsabilização do agente do Estado.

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade listou 377 agentes públicos em detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres. Concluiu que essas práticas resultaram de uma política estatal e se caracterizam como crimes contra a humanidade. Foram identificados 434 casos de mortes e desaparecimentos de pessoas sob a responsabilidade do Estado brasileiro. No relatório da CNV, Ustra é relatado como um dos principais responsáveis pelas torturas e mortes.

A responsabilização é importante. Garante que a história e a memória das graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil nesse período não sejam deturpadas, apagadas ou esquecidas. Foi assim no Chile e na Argentina. Evitaria também seu uso eleitoreiro, como tem sido o caso do candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL), que tem dito, em coro com seu vice, general Mourão, que o torturador é seu "herói". Bolsonaro também saudou Ustra em seu voto a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e afirmou que seu livro de cabeceira é "A verdade sufocada – a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça", de Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Ao botar em suspeição a condição de torturador do coronel Ustra e se referir à ditadura com ambiguidade, o tribunal questiona o que já foi referendado e reconhecido pelo Estado brasileiro. Não se pode justificar o uso da tortura sob nenhuma hipótese. "O Tribunal de Justiça está errado. Não pode intencionalmente jogar dúvida sobre o que aconteceu nesse período. Não há nada de suposto. Não se pode negar os fatos", afirma Raphael Neves, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador sobre Justiça de transição.

"A responsabilização barra esse tipo de narrativa de Bolsonaro e [seu vice] general Mourão. Coloca as pessoas em seus devidos papéis. A vítima no lugar de vítima. Ustra não é um herói. O que ele fez não pode ser aceito ou justificado."

Nesse enredo, o papel do juiz é justamente o de arbitrar para que a história não seja lida incorretamente. O passado não pode ser revisto, depois de o Estado ter se reconhecido como violador de direitos humanos.

A história de Merlino

Luiz Eduardo Merlino – Foto: reprodução

O jornalista e militante do Partido Operário Comunista (POC), Luiz Eduardo da Rocha Merlino, tinha 23 anos quando foi levado por três homens armados da casa de seus pais, em Santos (SP), para as dependências do DOI-Codi, na capital paulista, um dos centros de tortura da ditadura militar. Era 15 de julho de 1971. Disseram que ele seria interrogado e voltaria logo para a casa.

Quatro dias depois, sua mãe, Iracema Merlino, foi avisada por telefone que o filho estava morto. Segundo as informações oficiais, cometera "suicídio". Teria se jogado de um veículo em movimento na BR-116 para evitar delatar companheiros. O corpo não foi entregue à família. Seu cunhado, Adalberto Dias de Almeida, delegado de polícia, conseguiu localizar Merlino: ele estava em uma gaveta sem identificação. Seria enterrado sem nome. Tinha marcas de tortura.

Passaram-se oito anos até que a família tivesse as primeiras informações sobre o que de fato ocorreu com Merlino. O falecido escultor Guido Rocha, que foi exilado político em Genebra (Suíça), esteve com o jornalista em suas últimas horas de vida. Dividiam a cela x-zero, uma solitária, escura e sem janelas, que ficava ao lado da sala de tortura. Ele contou que Merlino foi torturado durante 24 horas ininterruptas. Podia escutar os gritos e gemidos na parede vizinha. Quando a porta se abriu, Merlino entrou. Seu nome de guerra era "Nicolau". Estava muito machucado e tinha a voz fraca. Apesar disso, conta Guido, mantinha uma calma impressionante.

Com o passar dos anos, outros depoimentos complementaram o relato de Guido: Merlino foi torturado no pau-de-arara. O tempo que passou com as pernas dobradas, dependurado no aparato de tortura, fez com que tivesse problemas graves de circulação, desenvolvesse gangrena nas pernas e paralisação dos rins. Esse quadro foi a causa real de sua morte.

A ex-ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres, Eleonora Menicucci, foi torturada com Merlino. Ele no pau-de-arara e ela na "cadeira do dragão", uma cadeira revestida de metal ligada à corrente elétrica com fios desencapados. "Todas as torturas eram coordenadas, dirigidas e orientadas pelo Ustra", contou Eleonora à Comissão Nacional da Verdade, em 2014. "Neste dia, mais de madrugada, eu fui tirada e levada para a cadeira do dragão. E o Nicolau [codinome de Merlino] estava no pau de arara. Ele tinha uma ferida enorme, quadrangular, na perna. Sangrava muito. E mesmo assim ele continuava tomando muito choque, muito chute." Extremamente machucado, ele não teve qualquer cuidado médico enquanto esteve no DOI-Codi – nem conseguia se alimentar.

Eleonora afirmou ter certeza absoluta de que os agentes da repressão Dirceu Gravina, Aparecido Calandra (atualmente delegados aposentados), e Brilhante Ustra, que morreu em 2015, foram responsáveis pelo assassinato de Merlino. As testemunhas contaram à Comissão Nacional da Verdade que o jornalista chegou a ser levado para o Hospital Militar e que os torturadores, ao serem informados de que ele teria de amputar as pernas para sobreviver, fizeram uma votação. Ustra decidiu: vai morrer.

Relatos de extrema crueldade também completam a memória desse período. Choques na vagina, no ânus, no pênis, na boca, nos ouvidos; introdução de ratos vivos nos orifícios dos presos políticos, que eram torturados nus; violência sexual e perversão na presença de crianças pequenas, filhos dos presos.

Naquele tempo, o Brasil era comandado pelo general Emílio Garrastazu Médici e a ditadura atingia seu ápice. O período ficou conhecido como "anos de chumbo". O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra comandou o DOI-Codi do II Exército de 29 de setembro de 1970 até 23 de janeiro de 1974. Em sua conta há 50 mortes sob custódia do Estado.

Democracia

Iracema Merlino entrou pela primeira vez com processo contra o Estado em 1979. Não foi aceito. Mas ela nunca desistiu de buscar responsabilização pelo assassinato de seu filho. Não queria o dinheiro. Queria retratação. Faleceu em 31 de março de 1995, sem ver justiça.

Em 2012, Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino, e Regina Merlino, irmã de Luiz Eduardo, ganharam uma ação por danos morais contra o coronel Brilhante Ustra. Ele foi condenado em primeira instância pela juíza Cláudia Menge, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), a pagar R$ 50 mil a cada uma das autoras do processo.

"Evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de instrumentos utilizados", afirma a juíza na sentença.

"Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade militar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensado aos presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu, segundo consta, por opção do próprio demandado, fatos em razão dos quais, por via reflexa, experimentaram as autoras expressivos danos morais."

A defesa de Ustra recorreu. Na tarde desta quarta-feira (17), os desembargadores do TJ-SP entenderam que o pleito da vítima "prescreveu". Nas argumentações, chegaram a questionar o longo tempo que a família levou para entrar com a ação. A família de Merlino não pretende desistir. Entrará com recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

"Depois de uma sentença em primeira instância que reconhece o sofrimento da família, reverter a decisão é como dar chancela à tortura porque a Justiça não vai punir", afirma Tatiana Merlino, sobrinha de Luiz Eduardo. "É um retrocesso a uma pequena vitória depois de 40 anos de luta. Um desrespeito e violência enormes com a família. Sou a terceira geração que busca justiça. No momento político que estamos vivendo de ameaça à democracia, em que um presidenciável tem como ídolo o torturador do meu tio, essa decisão é mais grave ainda."

Com essa decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo contribui para legitimar a violência ao não conceder a reparação simbólica pelo sofrimento causado à família Merlino e a outros presos políticos, neste momento tão delicado.

Na próxima terça-feira (23), a Justiça terá nova chance. A pedido do Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal Regional Federal (TRF) julgará recurso de uma ação penal pelo assassinato de Luiz Eduardo Merlino contra quatro agentes: coronel Brilhante Ustra (que por causa do falecimento será retirado do caso), Aparecido Calandra, Dirceu Gravina e Abeylard Orsini, o médico legista que fez a certidão de óbito fraudada, no qual os desembargadores do TJ-SP se orientaram para negar ontem indenização à família Merlino.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.