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Maria Carolina Trevisan

No país do Carandiru, candidatos prometem endurecer polícias por mais votos

Maria Carolina Trevisan

02/10/2018 14h28

Corredor alagado de sangue no pavilhão da Casa de Detenção. (Foto: Niels Andreas/Folhapress)

Vinte e seis anos se passaram desde que a Polícia Militar de São Paulo invadiu a Casa de Detenção e matou 111 pessoas sob custódia do Estado. Desde então, ninguém foi punido. Alguns familiares de presos receberam indenizações em uma tímida tentativa de compensar a perda brutal dessas vidas. Mas é impossível: de lá para cá, os presídios ficaram ainda mais lotados e a violência policial aumentou. A presença das facções criminosas agregou disputas e subiu a tensão no sistema penitenciário.

Todos esses elementos fazem com que as condições para que ocorram novos massacres estejam agravadas. Em 1992, ano do Massacre do Carandiru, o sistema prisional comportava 114.200 pessoas. Hoje, estão encarceradas mais de 726.700 pessoas. É um aumento de 636% em 26 anos. O déficit de vagas atual é de 360 mil, o que corresponde a quase o dobro de pessoas presas para a quantidade de vagas no sistema.

Trata-se de um ambiente de tortura permanente.

O resultado dessa equação é, mais uma vez, a morte de pessoas sob custódia do Estado. Em janeiro de 2017, pelo menos 120 pessoas foram mortas em presídios da Amazônia, Roraima e Rio Grande do Norte. 

Eleições do medo

 

O cenário político de ânimos acirrados, atentados contra candidatos e promessas inviáveis de uso da força nas políticas de segurança pública pioram o que já é muito ruim. O candidato à Presidência da República com mais intenções de votos segundo as últimas pesquisas, Jair Bolsonaro (PSL), é um defensor de armar a população, prega que a polícia tem que atirar para matar e afirmou em entrevista ao Jornal Nacional que "se [o policial] matar dez, 15 ou 20, com dez ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado e não processado".

Bolsonaro defende, inclusive, que os policiais tenham acesso a um dispositivo jurídico chamado "excludente de ilicitude", ou seja, o juiz pode entender que o policial foi culpado mas não deve ser punido pelo crime cometido. No programa de governo de Bolsonaro está definido que "policiais precisam ter certeza que, no exercício de sua atividade profissional, serão protegidos por uma retaguarda jurídica. Garantida pelo Estado, através do excludente de ilicitude".

O mesmo candidato afirmou que a situação dos presídios não é uma responsabilidade do Estado. "Eu acho que a chance de alguém que pratica um furto ficar detido é zero junto com a audiência de custódia. Tem de acabar com isso. E não vem com essa historinha 'ah, os presídios são cheios e não recuperam ninguém'. É problema de quem cometeu o crime".

Geraldo Alckmin – Foto: Bruno Santos/Folhapress

Para o candidato à Presidência pelo PSDB, Geraldo Alckmin, o que aconteceu no Carandiru foi simplesmente uma reação "legítima e necessária" da polícia para conter uma rebelião. Nunca falou em "Massacre" e fez todo o possível para apagar a memória de uma das maiores chacinas de presos no mundo. Uma reportagem do jornalista Luis Adorno, do UOL, de fevereiro, mostrou que a polícia de Alckmin é a que mais matou nos últimos 22 anos. Em sua gestão, entre 2011 e 2017, a letalidade policial aumentou 96%. Já o número de policiais civis e militares mortos no Estado (60), em serviço e em folga, é o menor desde 2001.

Negar o massacre tem sido uma prática comum aos comandantes da PM indicados por Alckmin. O último, coronel Nivaldo Restivo, 53, chegou a ser denunciado por não ter impedido seus comandados de praticar violência contra os presos do Pavilhão 9. Em abril, Restivo foi substituído pelo coronel Marcelo Vieira Salles, 51, amigo do candidato ao governo paulista Márcio França (PSB).

França, por sua vez, escolheu como vice de sua chapa uma policial militar, a coronel Eliane Nikoluk. Na mesma onda, Paulo Skaf, candidato do MDB ao governo de São Paulo, também anunciou uma PM como vice, a tenente-coronel Carla Danielle Basson. "Ela é uma moça de família boa e é uma coronel suave, não tem nada de truculência", disse Skaf à Folha.

João Dória – Foto: Carine Wallauer/UOL

Essas não são escolhas quaisquer. Os candidatos perceberam que o discurso da imposição da "ordem" funciona para angariar votos – ainda que a intervenção federal no Rio de Janeiro tenha se mostrado muito pouco eficiente no combate à violência. Nesta segunda-feira (1), o candidato ao governo paulista pelo PSDB, João Dória, declarou à Rádio Bandeirantes que, se eleito, a polícia vai atirar para matar suspeitos de crimes.

"Não façam enfrentamento com a Polícia Militar nem a Civil. Porque, a partir de 1º de janeiro, ou se rendem ou vão para o chão. Se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para matar."

Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou o sistema prisional como um "Estado de Coisas Inconstitucional", ou seja, incompatível com a vida, com violação permanente de direitos. Esse enquadramento exige que o Estado tome atitudes estruturais para modificar essa situação. Mas o que se tem visto no Brasil para "melhorar" essa condição é a promessa de construção de mais presídios  – e não políticas consistentes de desencarceramento, que desafoguem os 40% de presos provisórios aguardando julgamento dentro do cárcere.

Sistema de Justiça autoritário x Massacre do Carandiru

Muito pouco se tem feito para melhorar a situação dos presídios. A impunidade no caso do Carandiru dá à sociedade o recado de que a letalidade policial é socialmente aceita.

"O judiciário tem criado um clima favorável a graves violações de direitos humanos. O autoritarismo continua e está mantido pelas instituições de segurança", afirma Guilherme de Almeida, professor livre docente Faculdade de Direito da USP.

O processo do Massacre do Carandiru evidenciou a banalização dos homicídios de pessoas privadas de liberdade cometidos por policiais e enfraqueceu a instância, que deveria ser soberana, do veredicto do júri. O Tribunal de Justiça de São Paulo está tentando anular o mais longo julgamento de sua história. É um recado claro que essas vidas perdidas importam muito pouco, ou nada.

"Chegamos hoje aos 26 anos do massacre do Carandiru no pior cenário possível", avaliam as professoras de Direito da FGV, Maíra Rocha Machado e Marta Machado, em texto sobre a condenação anulada dos policiais que cometeram o Massacre e o vai e vem da Justiça. "Enquanto um dos candidatos à Presidência da República defende explicitamente a brutalidade pela polícia e a imunidade de crimes praticados por policiais, o sistema de Justiça apagou as únicas manifestações que condenavam esse tipo de ação", concluem.

"Em mais um lance inacreditável, o TJSP atuou para impedir a responsabilização e blindar as autoridades."

Os presos mortos no IML (Instituto Médico Legal), no dia 4 de outubro. (Foto: Marlene Bergamo/Folhapress)

Ao longo dos anos, o processo do Carandiru anulou a condenação do Coronel Ubiratan Guimarães, – responsável pela ordem de entrada na Casa de Detenção naquele 2 de outubro de 1992 – e sequer julgou a participação de autoridades, como o ex-governador Antônio Fleury Filho, que comandava as polícias naquele ano.

Em 2013, um júri popular decidiu pela condenação dos policiais. "Os 35 cidadãos do povo que naquela situação assumiam o status de julgadores chegaram ao veredicto que, além de condenar os 74 policiais militares, afirmou que um episódio como aquele não seria aceito em nossa democracia, sob nenhuma justificativa", aponta o texto das professoras Marta e Maíra. Ambas são profundas conhecedoras do Massacre.  

Mas as instâncias superiores desautorizaram o júri. Em 2016, o desembargador Ivan Sartori considerou que "não houve massacre" e que os policiais apenas revidaram. Pediu a absolvição dos policiais. A manobra fez com que o processo voltasse à estaca zero.  "Foi uma clara afronta à soberania do júri", diz o texto.

Começava, então, uma nova rodada de recursos. "As decisões proferidas nessa sucessão de idas e vindas estão cada vez mais longe de comunicar a reprovação àquele episódio", alerta o artigo. Entraram os embargos infringentes da defesa dos policiais reafirmando o pedido de absolvição feito por Sartori, o que foi rejeitado pelo tribunal em 2017. Mas as condenações seguiam anuladas.

O Ministério Público passou a buscar os tribunais superiores em Brasília, em uma tentativa de manter a condenação dos policiais. Pleiteou o reconhecimento de "ofensa ao princípio constitucional da soberania dos veredictos do júri".

O MP segue brigando para que os recursos sejam aceitos pelo STJ e pelo STF. É um interminável jogo processual, o que tornou evidente a omissão das cortes superiores. Parece que ninguém quer se responsabilizar por barrar o pedido de anulação do júri pelo TJSP. 

"Entre mal intencionados, equivocados ou omissos, os juízes togados que atuam nesse caso parecem não se importar com o fato de que, 26 anos após a maior matança de pessoas sob custódia do Estado, não conseguimos garantir que um episódio como esse seja reprovado pela Justiça", concluem as pesquisadoras da FGV.  

Enquanto isso, no jogo eleitoral, candidatos usam perigosamente artifícios que só podem resultar em aumento da violência letal.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.