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Maria Carolina Trevisan

"Ele não vai parar enquanto não matar alguém", diz ex de diplomata demitido

Maria Carolina Trevisan

21/09/2018 15h05

Renato Ávila Viana, ex-diplomata. Foto: reprodução Facebook

"Ele não vai parar enquanto não matar alguém", diz Laura*, uma das mulheres agredidas pelo diplomata Renato de Ávila Viana, 41 anos. Ele foi demitido pelo Itamaraty nesta quinta-feira (20), depois de ser preso em flagrante ao espancar uma mulher em seu apartamento funcional em Brasília, na quarta (19). A decisão foi uma das primeiras demissões por agressão na instituição, cuja grande maioria dos servidores é formada por homens.

Não é a primeira vez que Renato comete violência contra mulheres. Ele tem um longo – e conhecido – histórico de agressões. Laura, 43 anos, conheceu Renato em 1995, quando ambos cursavam a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Era um jovem extremamente inteligente e carismático. Gabava-se de ter entrado em terceiro lugar no vestibular, um dos mais concorridos da USP. Aprendeu sozinho a tocar piano, foi autodidata em inglês, fala diversos idiomas e passou no severo concurso do Itamaraty na primeira vez que prestou. Na adolescência, ganhou bolsa de estudos para o Colégio Bandeirantes, um dos mais tradicionais de São Paulo.

"Era simpático, bem humorado, musical. Tinha muito talento para uma pessoa só. Era impressionante", lembra Laura. Assim ele seduzia as pessoas. Ao mesmo tempo, travava batalhas intelectuais para desqualificá-la, citando autores e frases para demonstrar conhecimento. A humilhação faz parte do comportamento de agressores. Renato costumava também debochar da própria mãe, uma mulher humilde, que admirava o filho profundamente.

Com duas semanas de relacionamento, Laura percebeu que algo estava errado. "Comecei a perceber um comportamento destrambelhado. Ele esmurrou o próprio carro para não me deixar ir embora, ligava obsessivamente para minha casa me procurando e infernizava a minha família."

Numa festa na faculdade, em uma conversa pacífica, Laura terminou o namoro. Ele reagiu dando-lhe um soco na cara. E a culpou imediatamente. Outro traço comum aos homens agressores é justamente distorcer as narrativas para culpar a vítima.

Foi um soco seco. E mudo. "Fiquei com vergonha. Não sabia como eu iria comprovar a agressão", conta. Renato usou sua inteligência para manipular e amedrontar a ex-namorada. Fez ameaças de que o melhor advogado criminal iria defendê-lo e que a versão dela seria desacreditada. "Também me senti constrangida, meio sem entender, nunca tinha me acontecido nada parecido." A ameaça e o uso da autoridade (mais um comportamento característico desses agressores) fizeram com que ela não levasse o caso à polícia. É muito possível que ele tenha usado desses artifícios com as outras mulheres que surrou.

Aos 20 anos, Laura não tinha a noção que tem hoje sobre a seriedade do que viveu. "Eu não tinha consciência da gravidade humana, jurídica e política que eu tenho agora. Um soco não é algo trivial, algo que possa acontecer impunemente."

Depois disso, ele nunca mais falou com ela. Renato agia com frieza. Na semana seguinte já estava com outra pessoa. "É nítido que todo movimento que ele faz é em busca da próxima vítima", avalia Laura. E todo mundo sabia nos corredores da São Francisco que ele agredia mulheres. Na tentativa de lhe causar algum constrangimento, alunas espalharam cartazes com os dizeres: "como reconhecer um psicopata" e uma lista de características apresentadas nas aulas de psicologia forense.

Próxima vítima

Pouco tempo depois, em uma reação de ciúme, Renato bateu em outra colega com quem se relacionava. Ela denunciou o então namorado. Conseguiu reunir estudantes que testemunharam sobre o comportamento violento. Mas Renato se manteve impassível.

Já na carreira de diplomata, ele cometeu outras agressões. Respondeu a três processos administrativos disciplinares na Corregedoria do Serviço Exterior do Ministério das Relações Exteriores por cometer violência contra duas mulheres em outros países e outras duas no Brasil. Em território estrangeiro, como tinha imunidade diplomática, não pode ser investigado. A responsabilidade é do Itamaraty.

Os casos aconteceram em 2002, quando atacou uma terceira-secretária do MRE em um suposto ato impulsivo (como entendeu o ministério); em 2003, ao bater em uma namorada no Brasil; em 2006, quando foi expulso do Paraguai como persona non grata por agredir a filha de um senador, o que comprometeu a imagem do Brasil e a obrigação de decoro dos diplomatas (por esse episódio, recebeu uma advertência); em 2015 foi denunciado por uma venezuelana, mas as investigações concluíram que não havia provas contra ele.

Em 2016, Renato de Ávila Viana quebrou o dente da companheira com uma cabeçada ao ser contrariado durante uma conversa. Houve uma mobilização para custear o tratamento odontológico a que a moça de 22 anos teve que se submeter. Antes, ela tinha sofrido agressões de Renato que deixaram hematomas em seus seios. Ele responde judicialmente por essa violência.

Renato nunca parou. A agressão mais recente aconteceu na quarta (19), quando foi preso em flagrante em seu apartamento na Asa Norte, em Brasília. A Polícia Militar foi acionada por vizinhos que ouviram os pedidos de socorro da atual namorada. O diplomata foi levado para a delegacia onde prestou depoimento e foi liberado após pagar cerca de mil reais de fiança. De acordo com a polícia, ela tinha marcas nos braços, mas, com medo, não quis fazer exame de corpo de delito. Há suspeitas de que ele a manteve em cárcere privado. Até esta quinta-feira (20), Renato era primeiro-secretário, cargo de alta responsabilidade, que precisa de promoção para alcançar.

A defesa do ex-diplomata disse que a demissão de Renato de Ávila Viana tem "viés de perseguição por ele ter denunciado irregularidades no órgão", mas ainda não decidiu se vai recorrer da demissão. Sobre a agressão à namorada na manhã de quarta-feira, a advogada de Renato, Dênia Magalhães, afirmou que "Renato não agrediu a então namorada dele". Segundo ela, a moça teve um "surto psicótico". Ele foi enquadrado em dano e desacato e a delegacia fez "anotação de Lei Maria da Penha", o que segundo ela é praxe em casos envolvendo mulheres.

Culpa e tristeza

Ao compreender hoje a dimensão da violência que sofreu, Laura se culpa por ter ficado calada. Hoje, aos 43 anos, casada, com filhos e uma carreira respeitada, ela afirma que sucumbiu às ameaças psicológicas de Renato Viana. "Eu era muito mais inconsciente do poder que a gente tem. Achei que perderíamos qualquer ação contra ele. Foi uma omissão que permitiu que uma pessoa dessa continuasse impune por tanto tempo", afirma.

Não é fácil sustentar uma denúncia de violência contra um homem que representa uma das instituições supostamente mais ilibadas do país, assim como não era simples assumir ser vítima de agressão aos 20 e poucos anos, em um tempo em que não havia Lei Maria da Penha. Mesmo com esses aparatos, nunca é simples assumir e denunciar violência.

O que também continua angustiando Laura é que a punição a Renato possa ser revertida. "Para não correr o risco dele ser reintegrado aos quadros do Itamaraty e volte a receber como servidor público. Ele deveria ser afastado da sociedade." Para ela – e outras diplomatas ouvidas sob anonimato pela coluna – se não for contido, ele pode chegar a matar alguém, dado o grau de violência que vem demonstrando.

Ainda que tenha sido importante a demissão e o reconhecimento do ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, da gravidade da situação, o caso violou tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, que define os deveres dos Estados em condenar todas as formas de violência contra a mulher, e a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, além de ferir a própria Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres.

Para as vítimas, é preciso conviver com o trauma, uma ferida permanentemente aberta. "A gente vai botando um monte de camadas em cima e tem uma vida normal, superando isso. Mas esse episódio faz parte da minha história e de um sofrimento que eu acho injusto", explica Laura. "Há uma culpa que eu trago de ter sido conivente com uma agressão que é descabida para uma sociedade em que a gente quer direitos iguais. O trabalho [com direitos das mulheres] mitiga um pouco essa dor. Porém, o 'pacto de silêncio' fortalece essa situação, que é extremamente grave, de machismo cultural da sociedade. Precisamos da força do coletivo para nos protegermos desses abusos tão recorrentes."

*nome fictício para proteger a identidade da entrevistada. 

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.