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Maria Carolina Trevisan

É constrangedor não defender aborto legal e seguro em audiência no STF

Maria Carolina Trevisan

03/08/2018 12h11

Foto: Marlene Bergamo – Folhapress

O aborto legal e seguro é uma necessidade de saúde pública. Um país que se importe com suas cidadãs não pode se abster de descriminalizar uma prática que, como é clandestina e insegura, mata pelos menos 261 mulheres a cada ano no Brasil. São vidas que poderiam ter sido salvas.

Na manhã desta sexta-feira (3), o Supremo iniciou a audiência pública para discutir os artigos 124, que criminaliza a mulher (detenção de 1 a 3 anos), e 126 do Código Penal, que criminaliza quem provocar o aborto (pena de 1 a 4 anos de reclusão), incluindo profissionais de saúde.

Uma das sustentações contra a descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação se mostrou particularmente  constrangedora, rendeu vergonha alheia e vaias. Seu defensor, o médico Raphael Câmara Medeiros Parente, ginecologista da UFRJ, fez manobras para desqualificar estudos relacionados às mortes e complicações de mulheres em decorrência do aborto. Tentou dizer que são as mulheres brancas que mais sofrem as consequências do aborto clandestino. "Não são as pretas", bradou o médico, que aproveitou para criticar também a vinda de profissionais cubanos ao Brasil. Sim, são as mulheres negras (pretas e pardas) que mais morrem. Mas Parente tentou fazer um jogo de palavras para confundir ministros.

"A audiência está amplamente favorável à descriminalização do aborto", avalia Priscila Akemi Beltrame, coordenadora do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) no Brasil, convidado como Amicus Curiae da audiência. "A descriminalização foi subsidiada por argumentos científicos da embriologia médica, dos juramentos éticos médicos, dos dados de saúde pública e do ponto de vista jurídico."

A criminalização do aborto submete mulheres a graves riscos de saúde. "O aborto é um procedimento medicamente seguro, mais seguro do que um parto quando realizado em condições adequadas. Se o Brasil decidir continuar criminalizando as cidadãs brasileiras, não poderá usar a ciência sobre o início da vida humana como um pretexto", argumentou Helena Bonciani Nader, biomédica e ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Foi amplamente aplaudida.

De acordo com o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), são as mulheres mais vulneráveis que perdem a vida com abortos inseguros. É óbvio. A maioria é negra, pobre, solteira, jovem e com estudo até o ensino fundamental. Esse quadro faz com que seja ainda mais imprescindível  o apoio do Estado. 

É o próprio Ministério da Saúde que demonstrou na audiência que os procedimentos inseguros causaram mais de 250 mil internações, com mais de 15 mil complicações, sendo 5 mil muito graves, entre 2008 e 2017.

O aborto é a terceira principal causa de morte materna no Brasil. Aqui, morre uma mulher a cada dois dias por essa causa. Perdas evitáveis. Há, portanto, uma grave violação dos direitos das mulheres brasileiras cometida pelo Estado.

Não legalizar o aborto sai também mais caro ao país. "Complicações do abortamento consomem parte significativa de recursos do SUS (leitos hospitalares, bolsas de sangue, medicações, centros cirúrgicos, anestesia e especialistas)", esclarece o Ministério da Saúde.

Ao proibir o aborto – e criminalizar médicos e mulheres que o fazem clandestinamente, – o Estado não vai cessar a prática. "O que está em discussão é se o aborto será legal ou clandestino", afirmou o ex-ministro da Saúde do governo Lula, José Gomes Temporão. "Não é a criminalização que vai definir a opção de uma mulher. Descriminalizar o aborto é uma prática em defesa da vida."

Deixar morrer

Ninguém faz aborto sem dor física e psíquica. "O aborto significa uma dor profunda, que se confunde com a culpa, com a criminalização e com a desigualdade, que se ampara na ausência do Estado", afirmou a deputada argentina Silvia Gabriela Lospennato, quando a Câmara aprovou o aborto legal e seguro.

"Confessamos o nosso pecado e a nossa culpa, o nosso desespero e a nossa aflição. Esperamos ser escutados como saúde pública para que a gente consiga mudar esse quadro no nosso país", disse a  médica e doutora em saúde pública Monica de Almeida Neri, que defendeu a legalização do aborto seguro.

A audiência pública, com participação de 26 expositores nesta sexta e outros 26 na segunda-feira (6), servirá para ajudar os 11 ministros da corte a formar convicção para analisar a ADPF 442 (Arguição de Preceito Fundamental) ajuizada pelo PSOL.

Os argumentadores concordam que o aborto é uma questão de saúde pública. Portanto, não pode ser caso de polícia. É inadmissível que as mulheres brasileiras sejam presas ou mortas por praticar a interrupção da gravidez.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.