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Maria Carolina Trevisan

Onde está a bebê de Janaína, a mulher que sofreu laqueadura compulsória?

Maria Carolina Trevisan

21/06/2018 20h33

Imagem do livro "Mães do Cárcere", da jornalista Natália Martino e do fotógrafo Leo Drumond. Crédito: Leo Drumond

Há quatro meses, Janaína Aparecida Quirino, 36 anos, foi submetida a uma laqueadura compulsória no momento em que dava à luz seu oitavo filho, uma menina, Estefânia Eduarda. A medida determinada pela Segunda Vara Cível da Comarca de Mococa (SP) abriga uma série de violações de direitos humanos noticiadas pela coluna do jurista Oscar Vilhena, na Folha de S. Paulo.

Mas a situação é ainda pior do que se pensava: o mesmo juiz, Djalma Moreira Gomes Júnior, em ação proposta pelo Ministério Público, determinou  – ainda durante a gestação -, que Janaína deveria ter seu poder familiar destituído. Ou seja, ela foi impedida de conhecer a bebê e de amamentá-la. Foi afastada da filha. Teve seu direito à maternidade cerceado. E a criança perdeu o direito de conviver com a mãe. O Estatuto da Criança e do Adolescente garante à criança e ao adolescente a convivência familiar.

Mais uma vez, Janaína foi vítima de uma série de violações de direitos humanos. De acordo com o defensor público de São Paulo, um dos coordenadores do núcleo da infância, Peter Gabriel Molinari Schweikert, a medida "causou bastante espanto, porque não existe nenhum tipo de previsão normativa hoje nem na Constituição Federal, nem na Convenção sobre os Direitos da Criança, nem no Estatuto da Criança e do Adolescente, que admita uma ação de perda do poder familiar quando a pessoa está gestante", afirma. Segundo as leis brasileiras, para que o vínculo familiar seja destituído a mãe ou o pai precisa ter praticado algo que viole o direito da criança. Não basta que ela esteja em alguma situação vulnerável. "Quando a criança ainda está sendo gestada não existe nenhum ato que viole seus direitos. Essa foi a grande estranheza", diz Schweikert.

Ele afirma que existe uma orientação legal das áreas da saúde e assistência social no sentido de que o primeiro contato da criança deve ser com a mãe, mesmo em situações excepcionais de muita vulnerabilidade como viver na rua, usar substâncias entorpecentes, ter algum tipo de transtorno mental, ou estar privada de liberdade. Até o final da gestação, Janaína esteve presa preventivamente por associação ao tráfico. Em sua casa, dentro de uma calça jeans masculina, foram encontradas 48 gramas de cocaína. Ela e outras três pessoas foram presas.

Desde quarta-feira, 21, um habeas corpus impetrado por defensores públicos e aceito pelo desembargador Sergio Mazina Martins do Tribunal de Justiça de São Paulo, garantiu a Janaína responder ao processo em liberdade. Ela não está mais presa e a peça questiona, inclusive, o crime imputado. "Os impetrantes suscitam a gravidade da permanência da custódia cautelar da paciente, visto que há quatro (4) meses deu à luz a Estefania Eduarda Quirino, que foi retirada de seu convívio logo após o parto, não sendo permitida sequer a amamentação da infante, motivo pelo qual, cabível a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, nos moldes do artigo 318, inciso V, do Código de Processo Penal", diz a peça. Para o desembargador, "é certo que, em casos dessa ordem, faz-se sim tecnicamente possível que seja ela colocada em liberdade, ao menos até que este tribunal possa compor um quadro de avaliação mais amplo do quadro processual formado em seu desfavor, de sorte que não se coloque em sério risco o status libertatis de Janaína."A ação se baseou no HC coletivo aprovado pelo Supremo Tribunal Federal que dá às gestantes e mães de crianças pequenas o direito ao regime aberto.

Mas o estrago está feito. Durante todo o processo, Janaína foi tratada com desumanidade. Contou o fato de ser dependente de álcool e drogas e de ser pobre. Como se ela não fosse gente capaz de decidir sobre ser ou não mãe. "Em muitas situações, via Poder Judiciário, acontecem separações prematuras de mães e crianças, que são abrigadas antes que haja uma busca pela família estendida (tios, madrinhas, padrinhos, avós), ou, o que é muito mais grave, quando crianças ou bebês são encaminhadas para uma família adotiva sem terem passado pela oportunidade daquela família ter um suporte estatal das políticas públicas existentes", alerta o defensor.

"O ECA é expresso quando diz que o fato de uma mulher cumprir pena de privação de liberdade não pode determinar a separação da mãe e do bebê. É uma garantia, uma regra expressa, que temos que zelar. Se o contrário acontece, é ilegal."

A regra é clara. As exceções precisam ser muito bem fundamentadas e argumentadas para suplantar a regra geral que é a manutenção da convivência familiar. Em liberdade, Janaína pode, inclusive, reaver o direito de conviver e cuidar da filha. "A partir do momento em que ela é colocada em liberdade, ela surge como uma potencial alternativa de receber a criança de volta. Deve ser a primeira alternativa", explica Schweikert. "A gente se preocupa muito com a desumanização das mulheres que têm uma trajetória de carência material ou de uso de substâncias psicoativas. É uma atuação nitidamente discriminatória, violenta, ilegal e que deve ser combatida."  

Essas mulheres são o retrato do descaso. "Não passa na cabeça de ninguém que ela pode se curar da adição, se estabilizar e querer formar família no futuro?", questiona Estela Aranha, do Movimento da Mulher Advogada. "Ninguém está preocupado com ela. A única preocupação tem características eugenistas de controlar a natalidade, mesmo que mutilando de forma permanente a população mais vulnerável."

O caso de Janaína soma um pacote de situações com mulheres que costuma acontecer no Brasil – e que a sociedade não enxerga. "Filhos são retirados quando elas são moradoras de rua, quando fazem uso problemático de drogas, ou quando estão encarceradas", diz Soraia da Rosa Mendes, coordenadora do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. "São ações estatais direcionadas ao controle dos corpos femininos, como laqueaduras e retiradas de filhos."

"É uma situação muito constrangedora e vexatória. E a família, principalmente os filhos, não poderiam ser criminalizados. Questões sociais e de saúde pública estão sendo tratadas no âmbito policial-repressivo", alerta o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).

Janaína deu à luz e não teve o direito de segurar a filha. Nem a filha teve o direito de conhecer a mãe. Dor maior que essa só a morte. Ou a constatação, simultaneamente, de que o Estado retirou à força qualquer possibilidade de gerar outra vida.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.