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Maria Carolina Trevisan

Nem todo funkeiro é traficante. Nem todos na festa eram milicianos

Maria Carolina Trevisan

01/05/2018 10h47

A Polícia Civil do Rio de Janeiro, sob intervenção federal, manteve presas por 20 dias, 137 pessoas sem vínculo comprovado com a milícia – motivo alegado para o encarceramento provisório em massa. Todas estavam na festa com pagode que aconteceu na noite de 7 de abril, em Santa Cruz, zona oeste do Rio, área controlada por milicianos. Outros 21 homens continuam presos. O alvo da operação, o miliciano Wellington da Silva Braga, conhecido como Ecko, escapou. A polícia alega que parte da cúpula do grupo miliciano está detida.

No rastro por onde passou a polícia, quatro corpos. Segundo o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa, os mortos resistiram à operação. "Não tivemos nenhum policial ferido, e quem resistiu à ação da força policial resistiu com fuzis, armas de grosso calibre, e teve resposta necessária e suficiente a essa ação. A Polícia Civil não vai recuar." Nesse caso, a polícia atirou para matar. No Rio, é cada vez mais comum a alegação de "homicídios decorrentes de intervenção policial". Em 2017 foram mortas pela polícia 1124 pessoas, maior patamar dos últimos 10 anos, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública.

Vinte dias depois da festa, na porta do Complexo de Gericinó, em Bangu, familiares esperavam por notícias. A maioria eram mulheres: mães, companheiras, esposas, filhas dos homens levados sem camisa e de cara no chão na noite espetacular da intervenção federal. São elas que incansavelmente denunciam os abusos das operações nas favelas do Rio.

No balanço da ação policial no sítio, foram encontrados: ingressos, pulseiras vips, 12 fuzis e 20 pistolas.

Polícia divulga imagem espetacular de captura em massa em que submete detidos a posição humilhante

Mas nem todo mundo que frequenta festa de pagode em comunidades controladas por milícias é miliciano. Assim como nem todos os funkeiros são traficantes. Cabe à polícia e aos interventores não estimularem esse tipo de associação que criminaliza o morador da favela. "Isso é muito grave, é um passo atrás. O discurso da lei e da ordem, da militarização, pode significar retrocessos em conquistas na área de segurança, uma delas no que diz respeito aos direitos", alerta Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania na Universidade Cândido Mendes e do Observatório da Intervenção.

Chacinas e baile funk

A intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro completa dois meses com um quadro de violência preocupante: 940 homicídios, 209 pessoas mortas pela polícia e 19 policiais assassinados. O Ministério de Direitos Humanos informou também que o Disque 100 registrou 77 violações de direitos humanos ligadas à intervenção só no mês de abril. 

Não houve recuo da violência. Os registros compilados no relatório do Observatório da Intervenção também mostram um aumento importante no número de chacinas (quando três ou mais pessoas são assassinadas na mesma ação). Foram 12 chacinas que vitimaram 52 pessoas. No mesmo período de 2017, aconteceram seis chacinas com 22 vítimas.

No último final de semana de abril, mais um homicídio múltiplo deixou cinco corpos estendidos no chão, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O crime ocorreu por volta das 6h, quando homens encapuzados atiraram em direção a um trailer no local em que acontecia o baile funk da Vila Operária. Ninguém foi identificado como autor da chacina.

Em Angra dos Reis, litoral sul do Rio, moradores bloquearam uma estrada com dois corpos: seriam vítimas de confronto com a polícia, alvejados mais de 14 horas antes. Foram esquecidos pelas autoridades, que deveriam fazer a perícia nas ruas da favela.

Um mês antes, no final de semana de 23 de março, o Batalhão de Choque da PM matou, na saída de um baile funk na Rocinha, oito pessoas. As forças de segurança alegaram confronto, e que todos teriam ligação com o tráfico de drogas. Nessas, levaram também a vida de um menino de 19 anos, integrante de um projeto social que ensina a dançar valsa. Ganhava R$50 por baile de debutante em que dançava. Naquela noite, foi ao baile funk depois do trabalho. Acabou morto.

Foto: Danilo Verpa/Folhapress

Tiroteios

Estar no meio do fogo cruzado é um dos principais temores dos moradores do Rio. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que 92% dos entrevistados têm medo de "ficar no meio de tiroteio entre policiais e bandidos".

A bala não pode escapar da arma da polícia. A polícia não pode atirar no meio da multidão. Não é seu papel matar.

"Evitar confrontos deve ser o objetivo máximo em uma incursão em uma festa, em que centenas de pessoas estavam aglomeradas", diz Silvia Ramos.

Os tiroteios aumentaram no Rio sob intervenção: nesses dois meses aconteceram 1.502 tiroteios. São 203 ocorrências a mais que nos dois meses anteriores à intervenção, de acordo com informações coletadas pela plataforma digital Fogo Cruzado.

"O índice de mortes, a letalidade, a quantidade de tiros, tudo aquilo que mais impõe medo à população aumentou", afirma o advogado Guilherme Pimentel, coordenador do DefeZap, sistema de autodefesa que recebe denúncias de violações e encaminha aos órgãos competentes.

"A aposta na força bruta desencadeia mais violência. Adotar políticas violentas, truculentas e militarizantes, armadas e armamentistas, eclode na sociedade fortalecendo o processo de reprodução desse modelo, o que vai se manifestar em mais crimes violentos", alerta Pimentel.

Os especialistas chamam a atenção para a crescente dinâmica que se utiliza de chacinas também por parte das milícias. Foi o que aconteceu em Maricá, na segunda-feira, 26 de março, quando cinco jovens foram mortos pela milícia. A ação foi uma maneira de impor medo à população que, ao não ter a quem recorrer, fica refém da milícia local.

E assim, segue-se a espiral de violência.

A população do Rio de Janeiro aprova medidas externas para dar conta das demandas de segurança pública. Mas é necessário apresentar um plano que vá muito além do uso da violência, que acaba por vitimar também policiais. A intervenção não tem se preocupado com locais onde os índices são mais preocupantes ainda, como na Baixada Fluminense, invisibilizada. Até hoje, 48 dias depois da execução, as investigações não encontraram os assassinos da Marielle.

Com o passar dos meses, se os índices de violência no Rio seguirem aumentando, o que ficará evidente é que algumas vidas importam menos que outras para o Estado brasileiro. E isso também não ganha eleição.  

Fonte: Observatório da Intervenção

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.