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Maria Carolina Trevisan

Desembargador diz que magistrados não podem afrontar memória de Marielle

Maria Carolina Trevisan

18/03/2018 13h31

A tentativa de matar a memória do seu filho assassinado é cruel e desumana. Foi isso que a desembargadora Marília Castro Neves (e deputados) tentou fazer com a história de Marielle Franco, a vereadora negra, da favela da Maré, executada com quatro tiros precisos na cabeça no centro do Rio de Janeiro. Os que defendem a magistrada se encaixam nesse mesmo grupo.

A tentativa de criminalizar pessoas negras e pobres que são assassinadas é comum no Brasil: ligar a morte ao tráfico de drogas é a saída mais fácil para a impunidade. Sabem disso as Mães de Acari, as Mães de Maio, as Mães do Cabula, as Mães Mogianas, as Mães de Osasco e de Barueri, entre tantas mulheres que buscam preservar a honra de seus filhos.

No país em que as taxas de homicídio são epidêmicas e onde as vítimas (71% das quase 60 mil) são jovens negros e pobres, parece que essas vidas são "matáveis", como aponta o Mapa da Violência. Mães, quase todas negras, quase todas moradoras das favelas, passam a vida inteira tentando dar dignidade à memória de seus filhos.

O caso da Marielle expõe mais uma faceta da sociedade brasileira: matar defensores de direitos humanos tornou-se algo aceito e naturalizado. O Brasil é o quarto no ranking mundial de assassinatos de defensores. E seguimos em curva ascendente.

Para entender a gravidade das declarações que tentam criminalizar Marielle, a coluna entrevistou o presidente da Academia Paulista de Direito, Alfredo Attié, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e doutor em filosofia. Para ele, magistrados não podem se posicionar contra os direitos humanos, nem na esfera profissional, nem no campo pessoal. Crítico à intervenção federal no Rio, ele defende que a investigação do assassinato de Marielle seja federalizada para garantir sua credibilidade.

População acompanha velório de Marielle Franco | Foto: Ricardo Borges/Folha

UOL – Que papel têm os magistrados diante de uma situação extrema como a execução da vereadora Marielle Franco, defensora dos direitos humanos?
O compromisso que todo o magistrado e toda a magistrada tem ao ingressar na carreira é não apenas profissional mas também pessoal, com a ordem legal estabelecida no Brasil. Essa ordem tem na Constituição um rol de direitos importante, além de vários tratados de direitos humanos que fazem parte da nossa legislação. Então, nenhum magistrado ou magistrada pode se manifestar contra os direitos humanos, seja no processo, pessoalmente ou em qualquer ordem de atividade e redes sociais.

O que significa, simbolicamente, desqualificar um fato como esse?
É revoltante. A gente está diante do assassinato de uma pessoa que era militante de direitos humanos, de altíssima credibilidade, que se alçou a uma função pública com votação expressiva, que representava, portanto, uma parcela pobre e mostrava para essa população pobre que é possível vencer dentro do sistema e exercer uma função combativa em nome dessa população. Isso considerando que a violência no Brasil tem altos índices, e acontece direcionada às periferias.

Todos nós temos que nos alinhar, seja como profissionais do Direito, seja como cidadãos e cidadãs, na defesa dessa pessoa e no símbolo que ela representa. Para que isso não mais aconteça. A atitude da população deve ser o oposto de propagar fake news ou preconceito, seja em que meio for.

Esse tipo de atitude fragiliza inclusive a defesa dos direitos humanos?
Totalmente. O que nós mais necessitamos em países como o Brasil, aqui na América Latina e no Caribe, é a defesa dos direitos humanos. A segurança pública significa obedecer os direitos humanos. Não o contrário. Essas pessoas que estão falando contra os direitos humanos na verdade estão falando contra si mesmas.

Um dos pontos que mais caracteriza esses crimes contra defensores de direitos humanos é a impunidade. No caso da Marielle, há suspeita de que tenha sido uma retaliação à denúncia que ela tinha feito sobre práticas abusivas da Polícia Militar do Rio, na Favela de Acari. Se o Rio de Janeiro está sob intervenção federal e as forças policiais do estado podem estar envolvidas no crime, não caberia à Polícia Federal essa investigação? Não seria necessário um deslocamento de competência, ou seja, federalizar a investigação desse crime?
Eu considero que casos de direitos humanos devem ser investigados por uma instância que seja o mais distante possível do local e dos fatos. Por isso, acredito que há necessidade de uma investigação federal a respeito disso.

O remédio mais eficaz seria federalizar essa investigação. Daria mais credibilidade, inclusive, a tudo o que está acontecendo.

É uma situação muito grave, os índices de violência no Rio são altos mas são altos também em várias outras cidades do Brasil inteiro. No caso do Rio é evidente que há uma escalada de corrupção no sentido mais amplo do termo, inclusive com o envolvimento de questões que necessitam efetivamente de uma atuação mais incisiva. O que chama a atenção é o fato de que essa jovem, Marielle Franco, que é uma heroína brasileira, fez denúncias sérias com relação a atuação de milícias, encrustradas ou não no Estado. Fez denúncias sérias e em seguida foi assassinada de uma forma torpe.

Isso evidencia que estamos diante de uma situação que necessita de uma atuação séria na investigação, com fiscalização da sociedade. Nada pode ser feito contra o Estado Democrático de Direito. Então, tenho me manifestado de forma crítica sobre a intervenção: não pode acontecer a qualquer custo. Tem que estar dentro dos parâmetros da Lei e não com essa aura de terrorismo, de terror, de guerra, de todos contra todos como estão vendendo isso, principalmente, em ano eleitoral. 

Depois desse crime, os defensores de direitos humanos estão mais vulneráveis? 
Com toda certeza. E esse fato, esse crime, é um modo de justamente intimidar. Então, a participação na investigação da esfera federal e de organizações brasileiras situadas no Rio de Janeiro é fundamental.

Alfredo Attié é presidente da Academia Paulista de Direito. Doutor em Filosofia pela USP, Mestre em Direito e Direito Comparado, Membro do Fórum Global de Justiça e Desenvolvimento, exerce a função de Desembargador do TJSP.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.