Topo

Maria Carolina Trevisan

Prisão ilegal na Vila Kennedy demonstra atuação abusiva das Forças Armadas

Maria Carolina Trevisan

16/03/2018 05h00

Moradores da Vila Kennedy tentam chegar em casa. São abordados por soldados do Exército. Revistados. O carro é vasculhado. Os documentos são checados. Os dois jovens não têm passagem nem maus antecedentes, não são procurados e não portam drogas ou armas.

São liberados.

Antes que consigam seguir viagem, outro homem supostamente se recusa a se submeter à revista. O carro é tomado por spray de pimenta ("sem intenção", segundo o Exército). Os moradores são obrigados a sair do veículo. E reclamam. Com medo, um deles corre. O outro, Carlos Alberto Dória Jr, de 26 anos, é detido e fica sob custódia do Estado por 36 horas.

O relojoeiro Carlos vive na Vila Kennedy há 15 anos. Divide a casa com a mãe, como revelou reportagem de Lucas Vettorazzo e Luiza Franco na Folha desta terça-feira (14). Trabalha em uma banca de conserto de relógios com o irmão mais velho.

A ação, confirmada pelo Exército, revela um conjunto importante de violações e abusos cometidos pelas Forças Armadas na favela "laboratório" do interventor general Walter Braga Netto.

Em primeiro lugar, houve prisão ilegal. Carlos foi acusado de "crime de desobediência", o que não se configura simplesmente ao reagir ao gás de pimenta (ele nega que tenha dito algo), aplicado sem justificativa. O artigo 330 do Código Penal tipifica o crime de desobediência, que consiste em "desobedecer a ordem legal de funcionário público". No caso, a única ordem legal em questão era a revista. Carlos se submeteu a ela sem questionar. Portanto, não desobedeceu nada.

Segundo, o uso do spray de pimenta dentro do carro de Carlos não pode ser definido como uma ordem legal. "Não existe ordem legal de suportar spray de pimenta", diz Maíra Zapater, professora de Direito Penal da Direito GV.

Por fim, ainda que Carlos tivesse cometido o crime de desobediência, ele não poderia ser preso em flagrante. Desobediência é uma infração de menor potencial ofensivo e, portanto, não admite a prisão em flagrante. O delito teria que seguir para juizados especiais criminais. "Ainda que fosse admitido o flagrante, a prisão deveria ser comunicada ao juiz em 24 horas. O rapaz ficou detido por 36 horas", afirma Maíra.

"Essa detenção sob essa alegação está ilegal tanto em relação ao aspecto do crime como na formalidade do flagrante."

Obrigado a deitar com o peito e a cabeça no chão, com as mãos para trás, Carlos foi algemado e passou 36 horas de suplício nas mãos de militares.

23.fev.2018 – Mulher e criança passam ao lado de militares em patrulha na favela da Vila Kennedy, no Rio de Janeiro | Foto: Carl de Souza/AFP Photo

Spray de pimenta

O próprio uso do spray de pimenta nessas abordagens a moradores é preocupante. "O spray é um instrumento de defesa não letal, que machuca. E sendo um instrumento de defesa, somente poderia ser acionado em caso de ataque", avalia Maíra.

"Não houve intenção por parte dos militares de atingir com spray de pimenta outros cidadãos, somente o indivíduo que demonstrava contrariedade com a ação de revista da tropa", justificou o Exército, em nota. Mas de acordo com a reportagem da Folha, o homem que "demonstrou contrariedade com a ação de revista da tropa" estaria embriagado. Justifica o uso da força?

"É um abuso do uso da força, que configura crime de abuso de autoridade", afirma Maíra. A lei 4898 de 1965, em seu artigo terceiro define que constitui abuso de autoridade qualquer atentado à incolumidade física do individuo. "Nesse caso, o uso do spray de pimenta configuraria, no mínimo, abuso de autoridade e poderia configurar também lesão corporal não autorizada pelo direito de defesa", ressalta a professora de Direito Penal.

Já a situação de Carlos é ainda pior. A nota divulgada pelo Exército faz uma espécie de ressalva, que pode ser entendido como uma ameaça velada a quem reclame e denuncie abusos e violência: o fato de Carlos ter sido atingido pelo gás de pimenta "não justificaria uma atitude hostil contra a tropa".

Hostil? O cidadão voltava para casa, se submeteu à revista sem questionar, levou um jato de spray de pimenta dentro do carro e quem tem atitude hostil é o cidadão?

É grave que ações assim aconteçam.

Na zona sul do Rio de Janeiro ainda não teve boqueio de militares para revistar moradores. Para que alguém seja revistado é necessário que exista "fundada suspeita". Diz o artigo 244 do Código de Processo Penal:

A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

O direito à igualdade é uma das bases da democracia. Não se trata de implementar abusos também nos bairros nobres. Trata-se de garantir que o fato de morar na favela-laboratório da intervenção federal militar no Rio de Janeiro não faz de Carlos um suspeito.

Mas, no Brasil, a lei e a Constituição não autorizam o Estado a usar esse tipo de tratamento contra seus cidadãos.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.