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Maria Carolina Trevisan

O que os filmes de George Clooney e Daniela Thomas revelam sobre racismo

Maria Carolina Trevisan

29/12/2017 17h00

É verão de 1957. Uma família negra muda-se para o subúrbio da cidade de Levintton, Pensilvânia. O bairro planejado é totalmente habitado por brancos e tem milhares de casas quase idênticas. Não há crimes, aparentemente. Todos são cordiais. A paz, a felicidade e a harmonia parecem a tônica local. Um paraíso em que seus habitantes seriam poupados da convivência com americanos descendentes de africanos.

A simples presença dos Myers faz com que a comunidade revele sua verdadeira faceta. É importante considerar o momento histórico em que essa situação se dá: é o início do Movimento por Direitos Civis (1954-1968), que garantiu direitos aos negros americanos e que foi liderado por Martim Luther King. Quanto mais forte o avanço do movimento negro, mais repressiva a reação dos racistas.

Cena de Suburbicon. Ao fundo, brancos hostilizam Myers Foto: divulgação

Em pouco tempo, moradores de Levintton começam a fazer comentários de que o bairro se tornaria violento, ou seria desvalorizado diante da presença dos novos moradores. Rapidamente, o que era falado em baixo tom, à boca pequena, vai tomando proporções gigantescas, a ponto de os vizinhos de William e Daisy Myers construírem grandes cercas de madeira para evitar cruzar olhares com o casal e sua filha, Linda.

Em questão de semanas, mulheres e homens brancos passam a, dia e noite, promover uma feroz campanha contra a família, fazendo barulho ensurdecedor incessantemente. O que era um pequeno grupo, torna-se uma multidão a ponto de incendiarem cruzes no quintal dos Myers, a quebrar os vidros e a tacar cigarros dentro da casa numa tentativa de incendiá-la. Essa forma de revolta não deixa nada a dever ao Ku Klux Klan – e nem aos contemporâneos supremacistas brancos de Charlottesville, Virgínia.

Foi essa história real que inspirou George Clooney a criar, com os irmãos Joel e Ethan Coen, o filme Suburbicon, que estreou recentemente no Brasil e é estrelado por Juliane Moore, Matt Damon, Oscar Isaac e Karimah Westbook. A situação fica tão ruim que é a polícia quem defende a família negra dos raivosos e racistas moradores do bairrozinho "perfeito".

Mas o drama dos Myers não é a principal história da obra de Clooney e dos Coen. Tanto que quase não aparece no trailler oficial. Na trama, um crime envolvendo uma família branca vizinha é que ganha protagonismo, carga dramática, humor, sensibilidade e profundidade. A história do racismo se mantém apenas como pano de fundo.

É aí que Suburbicon e Vazante, filme brasileiro de Daniela Thomas, cujo enredo principal trata do sofrimento da sinhá Beatriz, a branca, se assemelham.

Assim como em Suburbicon, quase não se escuta a voz negra em Vazante. Também não se escutam as vozes dos atores negros que brilhantemente interpretaram os escravos de Thomas depois da polêmica provocada pela aparente ingenuidade da diretora, que disse não ter percebido esse desequilíbrio. No silenciamento dessas opiniões e na escolha desavisada da diretora é que o racismo ganha permanência – e se perpetua para sempre.

Nas duas tramas, as mulheres negras, personagens de uma força incrível, são silenciadas. Mas as interpretações são tão impressionantes que a intensidade dramática se nota pelas expressões.

A diferença entre os dois filmes, no entanto, se dá no desfecho: na obra americana, os brancos não são "salvos" por nenhum tipo de compaixão. A atitude repulsiva, abjeta, odiosa e racista daquela comunidade está explícita e nunca é amenizada. Da mesma forma, o racismo está exposto quando se demonstra que o verdadeiro mau é o homem branco – e ninguém presta atenção, mesmo ele andando ensanguentado pelas ruas antes pacatas de Suburbicon. Isso também é racismo.

O filme de Thomas, ao contrário, dá a nós brancos não só o perdão como também a chancela de salvar o filho mestiço da escrava morta por seu senhor. Transforma, assim, a personagem branca em heroína. Acalenta, dessa forma, o nosso branco coração e nos ajuda a dormir em paz com o que foi o capítulo mais nefasto da nossa história. Claro, não significa que na história do Brasil não tenha havido situações como a que viveu a personagem Beatriz, que também precisam ser retratadas.

"Em Vazante, o problema é suspenso no colo de Beatriz, quando colocou, pela segunda vez, na última cena, outro bastardo da senzala, um bebê, para chupar seus seios e aliviar a sua dor", escreveu o sociólogo Matheus Gato de Jesus, pós doutorando na Universidade de Harvard, em belíssima reflexão intitulada "Cativeiro das Brancas". Para ele, Vazante inaugura "um estranho monumento, jamais visto nas ruas e praças do Brasil. O monumento à Mãe Branca."

Não podemos tratar do racismo sem encarar de frente toda a sua crueldade e a nossa responsabilidade por se perpetuar até hoje esse sofrimento.

 

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.