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Para ex-ministro da Saúde, é preciso apoiar alternativas à cloroquina

Maria Carolina Trevisan

09/04/2020 14h10

 

O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina vem sendo amplamente estimulado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mesmo sem evidências científicas de que os medicamentos funcionem e sem um protocolo de utilização segura para profissionais da saúde. A própria Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não recomenda o emprego em casos de coronavírus. Nenhum país do mundo atesta sua eficiência.

Caso fosse comprovada a eficácia desses medicamentos, seu uso seria apoiado inclusive por partidos de oposição como o PT. É o que afirma o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), médico infectologista, membro da comissão de enfrentamento do coronavírus na Câmara e ex-ministro da Saúde do governo Dilma Rousseff.

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Padilha afirma que é necessário e urgente que o país participe de estudos com outros medicamentos, que a indústria brasileira se organize e se capacite para produzir equipamentos de proteção e respiradores e que amplie radicalmente a testagem da população como a única possibilidade de desenhar estratégias para enfrentar a crise da pandemia.

Mas essas medidas estão ofuscadas pela tensão dentro do próprio governo federal, o que tem feito com que Congresso, governos estaduais e municipais deem passos independentemente das decisões do Poder Executivo. É uma evidente falta de coordenação que pode custar vidas. "É o ponto mais crítico do Brasil em relação a outros países. Combina uma crise econômica, uma crise sanitária e uma crise político-institucional. Tem no elemento do presidente a intenção de abrir uma guerra contra governadores e prefeitos. Isso é muito grave em uma federação", afirma. Nesta entrevista, Padilha alerta que esse tipo de tensão gera, além de insegurança, paralisia nas ações do Ministério da Saúde.

Como o sr. vê a crise dentro do governo Bolsonaro? Pode escalar para uma demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta?
É uma crise gravíssima. Eu diria que esse talvez seja o ponto mais crítico do Brasil na pandemia do coronavírus em relação a outros países. O Brasil combina uma crise econômica, uma crise sanitária e uma crise político-institucional. Essa crise político-institucional tem no elemento do presidente a intenção de abrir uma guerra contra governadores e prefeitos. Isso é muito grave em uma federação, sobretudo quando se trata de um tema que envolve a saúde, que necessariamente precisa de coordenação entre União, estados e municípios. Abre também uma guerra contra outras instituições e abriu uma guerra interna contra seu próprio Ministério da Saúde como um todo.

Essa situação gera insegurança na população? 
Isso tem sido um dos elementos não só para gerar confusão na população sobre qual é a mensagem que o governo envia, mas, certamente, é um dos elementos para atrasar e até paralisar as ações do Ministério da Saúde. Desde janeiro se sabe da gravidade da epidemia do coronavírus. O ministério já deveria estar contratando leitos de UTI, contratando a produção de testes diagnósticos, mobilizando a indústria para se preparar para a produção de máscaras e para a produção de ventiladores, e nada disso foi feito. Em parte, isso se dá por causa dos obstáculos que a fala do presidente Bolsonaro gera para o Ministério da Saúde dentro do próprio governo. Eu fui ministro da Saúde. Fico imaginando como têm sido as reuniões do Ministério da Saúde com o da Economia, quando o chefe do Estado humilha o ministro, diz que o coronavírus é uma fantasia, é uma gripezinha. Imagina essa discussão sobre liberação de recursos desde janeiro? Teriam que convocar a indústria têxtil para produzir máscaras, convocar a indústria automobilística para produzir peças de respiradores mecânicos. Essa disputa, essa crise político-institucional talvez seja o fator mais crítico para o Brasil no momento.

O Brasil tem características próprias que exigem estratégias específicas no combate ao coronavírus?
O Brasil tem duas características que os demais países do hemisfério norte não enfrentaram até agora: primeiro essa profunda crise político-institucional. Segundo, um alto grau de vulnerabilidade. Ainda não sabemos como vai ser o comportamento da progressão da transmissão do coronavírus nas favelas, nas comunidades onde se tem cinco pessoas por cômodo, como atingirá as crianças desnutridas, se isso vai interferir no grau de letalidade entre crianças, o que nós não observamos no resto do mundo. São características que só reforçam a gravidade do coronavírus no Brasil.

Os ministérios estão conseguindo desenhar estratégias transversais?
A falta de coordenação dos ministérios tem impactado fortemente na nossa resposta. O país precisa converter de imediato a sua indústria para garantir e abastecer o mercado interno de máscaras, de aventais para os trabalhadores, de álcool em gel, pegar toda a indústria de etanol, a indústria de bebidas e estimular a conversão. Como você estimula isso? Oferecendo crédito. Para isso, precisa do Ministério da Economia oferecendo compra governamental garantida com o Ministério da Saúde. É necessário que o governo federal coordene essa indústria. Mas se não se coordena entre si, não consegue coordenar a indústria. A postura do presidente Bolsonaro, além de ser um desrespeito e uma atitude de humilhação de seu corpo ministerial, gera obstáculos gravíssimos em uma situação como essa. Mostra uma incapacidade do Bolsonaro e do seu governo de conduzir essa crise. 

O ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta chega sob aplausos ao auditório do ministério para uma coletiva, após reunião com o presidente Jair Bolsonaro e a equipe do governo – Pedro Ladeira – 6.abr.2020/Folhapress

Diante dessa crise político-institucional, como o Parlamento pode atuar? Até que limite?
O único limite é o constitucional. O Congresso tem que exercer ao máximo a sua atividade, a sua ação, para ajudar o Brasil a enfrentar essa crise. O Congresso, os governadores e a sociedade. Estamos tendo que tomar algumas medidas que eram quase exclusivas do Executivo. O Parlamento está tendo que assumir a liderança.

O sr. acredita em uma revisão da postura do presidente para apaziguar essa crise ou será que ele continuará agindo de maneira a tensionar?
Eu torço para que Bolsonaro mude a sua postura antes de que milhares de mortes aconteçam no nosso país. Infelizmente, vários líderes de outros países tiveram postura similar a do Bolsonaro no começo e mudaram sua opinião depois que uma tragédia aconteceu em seus países, como na Itália, no Reino Unido. O Trump é o símbolo seguido por Bolsonaro e mudou sua posição. Há uma semana e meia escreveu uma carta aos americanos reconhecendo que é necessário primeiro salvar vidas e depois discutir como salvar a economia. Mudou a partir do crescimento de mortes dos Estados Unidos.

É possível saber com precisão quantos casos existem de pessoas contaminadas e quantas mortes foram causadas pelo coronavírus?
As mortes no Brasil são subnotificadas certamente. Nos movemos no escuro em relação à pandemia porque tanto os casos confirmados quanto os óbitos carecem de maiores detalhes. Até o último domingo (5), o Brasil tinha realizado cerca de 260 testes por 1 milhão de habitantes. Para você ter uma ideia, a Alemanha realizou 10 mil testes por 1 milhão de habitantes, a Espanha mais de 7,5 mil/milhão de habitantes. Os Estados Unidos realizaram mais de 5 mil testes por 1 milhão de habitantes. Aqui, os números são absolutamente subnotificados. O único dado um pouco mais preciso para termos noção da gravidade da pandemia hoje é o número de internações por aquilo que nós chamamos de "síndrome respiratória aguda grave". Quando o paciente interna, o médico é obrigado a colocar um diagnóstico. Esse número é 3 vezes maior, em março, do que a série histórica. É uma informação desde 2009, da pandemia de influenza. Eu torço para que Bolsonaro não aguarde cenas similares ao que aconteceu na Itália e no Equador para mudar a sua posição.

Do ponto de vista médico, com base na sua experiência, o que o sr. pensa da cloroquina?
Você não pode fazer uma defesa de um medicamento a partir de impressões pessoais. Você precisa fazer isso a partir de evidências científicas sólidas. Eu sou um otimista na capacidade da ciência, dos pesquisadores do mundo inteiro em encontrarmos medicamentos que possam reduzir o número de mortes por coronavírus. O Japão identificou e registrou o uso do favipiravir, um medicamento antiviral que age diretamente contra o vírus. Há também medicamentos que podem mexer em alguns fatores das células e dos tecidos que o vírus ataca, o que reduz a sua gravidade. Temos exemplos em relação a isso como ensaios clínicos com uso de anticoagulantes. Temos ensaios clínicos com a própria hidroxicloroquina, com outros medicamentos a serem utilizados no mundo inteiro e que reforçam a capacidade do corpo em responder ao vírus, como é o caso do Interferon Alpha 2B, de tecnologia cubana, que foi testado em mais de 1.500 pacientes na China. Sou otimista no sentido de que nós vamos descobrir medicamentos e terapias que reduzam a gravidade e a mortalidade. Mas a recomendação do uso tem que ser a partir de evidências científicas mais claras. 

Numa pandemia como essa, eu defendo que o Brasil tem que estar aberto, a partir dos seus centros de referência, suas instituições de pesquisa, a desenvolver o maior número possível de ensaios clínicos e avaliações das várias terapias. Eu estou um pouco preocupado nessa insistência do samba de uma nota só que é a hidroxicloroquina, como se ela fosse a única que está sendo avaliada no mundo. Pelo contrário, nós temos que estar abertos a todas. Os institutos de pesquisa do Brasil, os hospitais de referência públicos e privados, precisam participar de todos os testes e avaliações possíveis, inclusive aquilo que está sendo descoberto por pesquisadores brasileiros como a médica [Elnara Marcia Negri, do hospital Sírio Libanês, professora livre docente de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)] que começou um protocolo com uso de anticoagulantes, e com os que nós já conhecemos como a hidroxicloroquina, que tem até produção genérica no Brasil. Ou seja, nós precisamos estar abertos a todos. Esse é um primeiro grande erro: existe por parte do presidente Bolsonaro um samba de uma nota só falando só da hidroxicloroquina.

Nós precisamos acompanhar de perto os estudos que estão sendo feitos. Dados preliminares de um estudo que a Fiocruz faz junto com a Fundação de Medicina Tropical do Amazonas mostram que a hidroxicloroquina não fez diferença na mortalidade dos pacientes em que eles utilizaram. São 80 pacientes, deve incluir mais, e vamos ter um resultado melhor com outros pacientes inclusos. Usaram em casos graves e não houve diferença na mortalidade. O uso da dose superior da cloroquina mostrou eventos adversos gravíssimos como arritmia cardíaca. Então, precisamos acompanhar de perto os estudos, não podemos sair fazendo uma defesa de crença em um medicamento a partir da avaliação individual. Não é assim que se toma decisão sobre o uso em larga escala de medicamentos. E o Brasil precisa estar aberto a participar em estudos e a incluir pacientes, desde que acompanhado dos centros de referência, sem conotação ideológica. Tem que aceitar medicamentos que Cuba desenvolveu, tem que aceitar medicamentos da China, os do Japão, que ofereceu ao Brasil a realização de estudos gratuitos, e tem que acompanhar de perto os estudos do uso de hidroxicloroquina junto com a azitromicina. Essa é a primeira coisa. O Brasil é um país com características próprias e precisa se preparar, por exemplo, para emitir o que chamamos de licenciamento compulsório, que é você autorizar a produção de algum medicamento, kit diagnóstico, vacina ou tecnologia que venha a surgir.

Se os estudos comprovarem que a combinação de hidroxicloriquina com azitromicina é eficaz, o PT apoiaria esse uso? 
O PT se baseia nas evidências científicas. Se tem alguém que já usou muito a cloroquina sou eu. Durante seis anos coordenei o núcleo da USP, no meio da região amazônica, em Santarém, e a gente usava muito a cloroquina. Isso no final dos anos 1990, começo dos anos 2000. Pacientes usam cloroquina para lúpus, artrite reumatoide, outras doenças. Nós vamos nos basear pelas evidências científicas. Defendo que o Brasil esteja aberto a incluir pacientes em estudos que avaliem a eficácia de todos esses medicamentos. Estamos em uma situação de uma pandemia, sem os medicamentos conhecidos e reconhecidos como eficazes contra o coronavírus. Não podemos estar fechados a realizar estudos controlados que avaliem a eficácia e a segurança de todos os medicamentos que estão surgindo em outros países como terapias seguras e eficazes. Defendo que o governo federal convoque os centros de pesquisa, os hospitais e instituições e mobilize as especialidades para que o Brasil participe dos vários estudos de eficácia e segurança de todos os medicamentos que estão surgindo como hipóteses.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.