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Maria Carolina Trevisan

Solidariedade "antirracista" de Bolsonaro é oportunismo eleitoreiro

Maria Carolina Trevisan

12/08/2020 04h00

O ministro interino da Saúde, general Pazuello (à esq.), participa da live semanal do presidente Jair Bolsonaro

Quando o racismo explícito contra dois jovens negros foi filmado e compartilhado nas redes sociais na sexta-feira (7), as reações foram de repúdio imediato, como devem ser. No Rio de Janeiro, Matheus Fernandes, 18 anos, foi violentamente abordado por seguranças de um shopping ao tentar trocar o relógio que comprara para o pai. Os agressores são policiais militares. Em São Paulo, Matheus Pires, 19, foi humilhado por um homem branco ao fazer entregas por aplicativo em um condomínio de luxo. Celebridades, autoridades, políticos e futuros candidatos se pronunciaram para condenar as atitudes racistas.

Em pouco tempo, os dois Matheus se tornaram conhecidos no país. Simbolizam o que ocorre diariamente longe das câmeras dos celulares. A gigantesca repercussão, os avanços e as conquistas do movimento negro e o contexto internacional da luta antirracista obrigaram até quem nunca pensou em violência racial a se posicionar. Isso é positivo em um país como o Brasil, que historicamente lança mão do discurso da democracia racial, se abstendo da responsabilização e reparação. Mas vale mais fazer que falar.

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"Que atos como esse não se repitam", escreveu o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em suas redes sociais, na onda de indignação. Porém não basta um tuíte aparentemente solidário para se dizer antirracista. A questão é muito mais complexa. No caso do presidente –que em palestra no clube A Hebraica expressou com veemência e sem pudor seu pensamento racista acerca dos quilombolas— a suposta comoção não convence. Ao contrário, a atitude presidencial evidencia um uso oportunista dos episódios racistas com interesse eleitoreiro.


Primeiro, ao dizer que a "miscigenação é uma marca do Brasil" e que "ninguém é melhor do que ninguém por conta de sua cor", o presidente se utiliza de um subterfúgio conhecido. É um argumento que tenta igualar brasileiros sem considerar especificidades importantes que explicitam a profunda desigualdade racial. Esse abismo é demonstrado por indicadores sociais, dificuldade de acesso a direitos, à educação, à saúde, ao trabalho, à renda, ao saneamento básico e, muito importante, pela exposição à violência policial (75% das vítimas são negras) e a violações de direitos humanos.

A pandemia de coronavírus mostra esse quadro de maneira muito objetiva: 59% das pessoas que perderam a vida eram negras (mas não há registro racial em 31% das notificações, por isso, essa porcentagem deve ser ainda maior), segundo o Deltafolha, departamento de jornalismo de dados da Folha. "O atendimento à saúde se encontra com a questão de raça na ausência, na carência, na insuficiência", afirma Jurema Werneck, médica e diretora da Anistia Internacional no Brasil, em entrevista ao podcast Café da Manhã.

Jurema explica que os jovens Matheus foram acometidos pelo racismo interpessoal, quando uma pessoa trata mal a pessoa negra. O racismo institucional –"quando o funcionamento das coisas tende a prejudicar pessoas negras", explica– se une ao racismo estrutural e operam na negligência, na omissão, e "não há ninguém na gestão que reconheça e impeça esse ciclo". Ou seja, qualquer gestor que não tome atitudes, não fortaleça ou estimule políticas públicas de enfrentamento ao racismo estará colaborando para essas mortes, naturalizando a letalidade policial e concorrendo para situações como as vividas pelos jovens negros na última sexta.

Contextos incômodos

Com o posicionamento de repúdio ao racismo, Jair Bolsonaro tentou se voltar aos que hoje compõem a sua base de apoio, viabilizada pelo auxílio emergencial e pelo desespero da pobreza e do desemprego. Sabe-se que a grande maioria dos beneficiados pela transferência de renda emergencial é negra. Mais de 8 milhões de homens e mulheres negros estão fora da pobreza extrema –momentaneamente– por causa do benefício, como mostra reportagem publicada nesta coluna. É um impacto enorme que nem o presidente imaginava.

Ao mesmo tempo, os posts do presidente confrontam uma campanha pelo impeachment liderada pela Coalizão Negra por Direitos, que reúne 150 organizações negras. Em ato simbólico na Esplanada dos Ministérios nesta quarta (12), a entidade protocola o 56º pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro, apontando crimes de responsabilidade na violação dos direitos individuais e sociais por "negligência no combate à pandemia e na insuficiência de medidas que deveriam estar voltadas aos mais pobres, famílias negras, empregadas domésticas, trabalhadores informais, comunidades quilombolas, populações rurais negras, das favelas e das periferias".

O documento exige que o Congresso Nacional "respeite os pedidos que aguardam sua análise e construa a defesa da democracia pelo Parlamento em conjunto com a sociedade". "É a primeira vez na história que o movimento negro organizado, de maneira autônoma, propõe um impeachment. O deputado Rodrigo Maia precisa ser coerente e responsável e ouvir a sociedade civil", afirma Douglas Belchior, professor da Uneafro, uma das entidades que compõem a Coalizão. A abertura de um processo de impeachment depende de Maia.

Por outro lado, a indignação repentinamente antirracista de Bolsonaro buscou eclipsar notícias de uma semana especialmente incômoda: a reportagem da jornalista Monica Gugliano, da revista Piauí, confirmou, na quarta (5), as intenções golpistas de Jair contra o Supremo Tribunal Federal; na sexta (7), a revista Crusoé, em investigação do repórter Fabio Serapião, revelou outros cheques depositados por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro; e, no mesmo dia, o colunista do UOL Rubens Valente apurou que o ministro da Justiça, André Mendonça, se recusa a enviar ao STF o "dossiê antifascistas", produzido por seu ministério, que listou 579 agentes da segurança pública e quatro acadêmicos, sob argumento de que, caso os dados vazassem, colocariam em risco a "credibilidade nacional". Seria piada não fosse muito grave.  

Bolsonaro nada comentou acerca dessas denúncias. Em vez de reagir, como fez outras vezes, preferiu abafá-las. Fingiu que não era com ele. Na quinta (6), ao lado do ministro interino (há mais de três meses) da Saúde, Jair e o general Pazuello prometeram vacinar metade da população em janeiro. Seria "uma boa aposta", disseram.

Na realidade é só uma promessa. Os dois voltaram a saudar a cloroquina como medicamento para combater a covid-19. "Se fosse esperar comprovação científica…", afirmou Bolsonaro, levantando a bola para que Pazuello completasse com "…ia morrer muita gente". Aparentemente nenhum dos dois considera que sejam muitas as 100 mil vidas perdidas para o coronavírus, alcançadas no sábado (8), véspera do Dia dos Pais. E daí, né? "Vamos tocar a vida. Tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema", afirmou o presidente. 

Como busca se safar o presidente?

No dia seguinte à live, viajou a São Vicente (SP) para inaugurar uma ponte. Aproveitou para cumprimentar caminhoneiros e agentes de segurança pública em um posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF), acenando a seus apoiadores mais ferrenhos. Causou aglomeração e cumprimentou as pessoas sem máscara. E daí 100 mil mortes?

No domingo (9), anunciou o ex-presidente Michel Temer (MDB) como líder da missão oficial que vai ao Líbano tratar da ajuda humanitária do Brasil ao país. Incluiu Paulo Skaf (MDB), presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), na comitiva, cortejando e sinalizando simpatia ao partido. Em efeito secundário, ainda disputa empresários com o governador João Doria (PSDB). Skaf tem sido criticado por não conseguir dialogar com o governo estadual. 

Por esses 19 meses como presidente e mais os 27 anos como deputado federal, Jair Bolsonaro não se identifica como um líder que tem preocupações humanitárias e contra o racismo. Com esses posts ao vento, parece mais uma tentativa de escapar do posicionamento que tirou apoiadores do presidente Donald Trump nos Estados Unidos e agora ameaça sua reeleição. Sua Secretaria de Comunicação entrou com tudo na bandeira "Todas as vidas importam", um slogan usado por supremacistas brancos. Apenas confirma seu racismo e de seu governo.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.