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Maria Carolina Trevisan

Brasil precisa de equivalência entre política social e política econômica

Maria Carolina Trevisan

31/07/2020 13h34

O economista Ricardo Henriques aponta caminhos para um país mais justo pós pandemia Foto: divulgação

A pandemia nos obrigou a um mergulho. Enxergamos, nos últimos meses e cada vez mais, as nossas desigualdades e injustiças sociais. E constatamos como somos parte das dinâmicas que contribuem para esse abismo, individual e coletivamente. Ficamos nus diante do coronavírus e da crise política.

Hoje, a imagem diante do espelho não é bonita. Em sua base está o racismo estrutural, que impede o Brasil de se desenvolver, de ser uma democracia plena. Já não podemos esconder nossas mazelas. Ao nos depararmos com essa figura despida e que nos constitui somos compelidos a agir e a nos comprometer, no âmbito da sociedade civil, das empresas, do judiciário, das políticas públicas e nas práticas cotidianas. Ou, se pegarmos a outra bifurcação, nosso caminho será de profunda dor. Um país que joga na miséria e na pobreza grande parte da sua população e a condena ao sofrimento prolongado. Que Brasil queremos?

O Brasil não é só tristeza. Nesses meses também vimos que existe um arco de atores sociais e políticos capaz de operar transformações. Essas mudanças precisam ser sistêmicas. Para isso, é urgente reconhecer a faceta torpe e cruel que nos organiza como sociedade. A saída passa por promover reformas responsáveis, embasadas, com o uso correto dos recursos públicos, pelo voto com consciência coletiva e por desenhar políticas sociais altivas, em equivalência com as políticas econômicas. Não se pode aceitar que tanta gente esteja vulnerável como temos assistido.

"Diante desse certo compartilhamento da indignação, que é movido pela vivência da crise, pode ser que se reconfigurem forças que gravitam em torno da transformação que a gente precisa", afirma o economista Ricardo Henriques. Essa esperança não se baseia apenas no desejo. Está fundamentada em experiência e em conhecimento.

Henriques é superintendente executivo do Instituto Unibanco, foi secretário nacional de educação continuada, alfabetização e diversidade (SECAD) do Ministério da Educação e secretário executivo do Ministério de Desenvolvimento Social, quando coordenou o desenho e a implantação do programa Bolsa Família. Também trabalhou nas esferas estadual e municipal com direitos humanos e assistência social. Foi pesquisador e diretor adjunto da área social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), assessor especial do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e, durante 30 anos, professor do departamento de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente ele é conselheiro da Anistia Internacional (Brasil), Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT), Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE-FGV), CIVI-CO, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), Fundação Itaú Educação e Cultura (FIEC), Instituto Natura, Instituto República e Todos pela Educação (TPE).

Nesta entrevista, Ricardo Henriques explica como, ao tomar contato com nosso lado mais triste, podemos sair da crise fortalecidos, com o oxigênio que nos permite respirar e fazer florescer o que temos de melhor.  

UOL – A pandemia do novo coronavírus expõe, amplia e aprofunda as desigualdades no Brasil. Um estudo da Oxfam publicado na segunda-feira (27) mostra que o patrimônio dos super ricos aumentou durante esse período. Por outro lado, a covid-19 fará a pobreza e a extrema pobreza aumentarem também. No começo da pandemia, em abril, o senhor disse que seria interessante que o governo garantisse o auxílio emergencial por um ano. Continua com essa posição? Quais seriam as políticas emergenciais para mitigar um pouco esse efeito?

Ricardo Henriques – Se por um lado essas desigualdades são históricas e estruturais, talvez dois fenômenos estejam acontecendo. Um é o aumento efetivo da desigualdade. Mas outro, igualmente relevante, é a visibilidade de uma desigualdade que já está instalada. Isso tem um efeito. Permite uma agenda mais positiva, que é um conjunto maior de atores, num amplo leque da sociedade, reconhecendo que nós chegamos a um padrão de desigualdades que não faz sentido. Que não são consistentes com o que a gente pode querer projetar num Brasil de futuro. Talvez uma das melhores ilustrações disso tenha sido a percepção pela mídia, e portanto para uma parte grande da sociedade, sobre as distâncias que existem no acesso dos estudantes aos meios digitais.

Não é nenhuma novidade mas ficou muito mais visível que uma quantidade grande das pessoas não têm acesso a qualquer conectividade. Se você estratificar isso por renda, a parcela mais pobre da população tem baixíssimo acesso e quando tem é compartilhando um pedaço da banda do pré-pago de algum membro da família. Parece que isso foi reconhecido pela sociedade. Ou seja, fora do espaço da escola pública, a grande maioria dos estudantes têm precárias condições de estudo, tanto do ponto de vista do acesso e inclusão digital quanto condições materiais e objetivas, uma sala, um espaço específico isolado, com iluminação, com tempo dedicado. É muito importante reconhecer essa dimensão da desigualdade, com seu caráter estrutural brasileiro porque é um traço que orienta a possibilidade de pensar essa transição, sobre o que a gente tem que fazer para frente.

A outra coisa muito importante é que os mecanismos que o Brasil desenvolveu para absorver crises estruturais, em regra, estavam adequados ao campo de mundo do trabalho informal. Essa crise atravessou a sociedade brasileira, para além das suas dimensões sanitárias, da pandemia strictu sensu, mas para sua dimensão socioeconômica. Essa crise chegou num momento em que a crise anterior ainda não tinha sido superada. As condições do trabalho informal de absorver essa crise praticamente sumiram. O que isso quer dizer? Um contingente novo de pessoas entra na situação de pobreza e um volume de pessoas em extrema pobreza também aumenta. E aumenta numa intensidade quase sem precedentes.

Nesse sentido, uma política de apoio emergencial se faz quase incontornável. É o limite entre o equilíbrio de uma visão humanitária, que devia estar considerando também a crise da saúde, com uma visão sobre como se mantém a economia razoavelmente aquecida. Eu preciso colocar recursos na mão desse contingente enorme da população que está em situação de pobreza e pobreza extrema. O apoio emergencial tem que ter uma duração no tempo muito maior do que era previsível no início da pandemia. Em março ja era possível prever – e acho que o governo federal subestimou isso – que a crise da pandemia teria uma cauda relativamente longa. Podia ter previsto. Mas hoje é totalmente visível para todos os atores que a duração dos efeitos da crise será muito mais longa do que um momento específico contido no tempo. Então, esse apoio que tem um sentido emergencial, passa a ser necessário ter uma duração muito mais longa. Estamos falando de um ano como referência mínima. Mas provavelmente isso seguiria para uma evolução de alguma renda mínima, alguma renda básica que seria fundamental de ser feita. Seguramente o apoio emergencial não pode se conter ao intervalo de três a quatro meses. Ele é necessário nesse contexto de aumento significativo do contingente de pessoas em condição de altíssima vulnerabilidade e de vulnerabilidade.

A situação é tão grave que quase 50% da população precisou do auxílio emergencial. Isso garantiu apoio ao presidente Bolsonaro, mesmo ele negando a gravidade da pandemia. O problema é que sua equipe ministerial não tem visão social. O ministro da Economia, Paulo Guedes, formado pela Escola de Chicago, não tem essa vocação. O programa Renda Brasil ainda é desconhecido. Como avançar na agenda das desigualdades diante desse contexto político?

O enunciado do Renda Brasil é tão vago que é virtualmente impossível de ser comentado. Não tem nenhum elemento tangível como meta, desenho, sistema de incentivos, orçamento. Mas tem dois elementos importantes. O primeiro tem menos a ver com a direção do Ministério da Economia. O primeiro, de forma muito categórica e evidente, é uma falta de visão humanista por parte do governo. A indiferença e a falta de condução da política sanitária a partir da política de saúde, que levou à quantidade gigantesca de mortes, a inexistência de um gabinete de crise para promover coordenação intersetorial na área da saúde, com um sistema de saúde existente e estruturado, entre o governo federal, os governos estaduais e municipais, que ao mesmo tempo não instituiu uma visão intersetorial, uma capacidade de conversar com a área da assistência e da educação, parece uma atitude, no mínimo, de baixa visão humanista.

Este elemento nos dá a perceber que é pouco provável que uma política efetiva de proteção social de médio e longo prazo venha a ser organizadora de uma política pública do governo. É difícil ter tamanha indiferença com as vidas do ponto de vista de organizar de uma estratégia coordenada de enfrentamento à pandemia e depois ter uma visão estruturada, uma política social ativa de redução das vulnerabilidades estruturais do país.

O outro elemento é que a necessidade de criar uma renda emergencial tem as repercussões esperadas. Como a população caiu abruptamente em situação de miséria imediata, é razoável que reconheça a iniciativa como positiva. A questão é como se desenhará uma política sustentável? Tem que ter uma arquitetura institucional cuja  intencionalidade seja uma política social consistente e duradoura.

A desigualdade aumentou e é mais visível para uma quantidade maior da população. Isso coloca na arena política a necessidade da gente construir uma política de outro patamar. Uma política social que seja equivalente à política econômica. Uma outro filosofia da política social.

É uma política social comprometida com um grau de transformação social que diga "não podemos continuar convivendo com uma desigualdade social tão abissal como a que temos, e não podemos ter ninguém com esse grau de desproteção social que passou a existir com a pandemia". Precisamos garantir além da renda emergencial. Essa renda e elementos equivalentes têm que se manter ao longo do tempo para as pessoas não voltarem abruptamente à condição de extrema pobreza. Isso será, se for bem-feito, fruto de uma visão não só de transferência de renda, mas de uma transferência de renda básica, com uma cobertura de longo prazo e articulada com outros elementos da política social. É isso que permitirá a gente ter uma dinâmica de saída da crise que nos coloque numa posição de almejar um Brasil mais dinâmico lá na frente. Senão, a gente pode transitar a crise simplesmente de forma trôpega e chegar daqui a alguns anos em um Brasil de joelhos. E aí será muito mais difícil de enfrentar.

Em relação ao governo Bolsonaro, o senhor tem alguma expectativa positiva nesse sentido? É possível fazer essa construção com esses atores? 

O momento do país tem demonstrado que nós temos vários atores que são muito relevantes na discussão da política pública. Por um lado, o Congresso assumiu protagonismo em várias direções, criando condições para algumas reformas estruturais. Talvez, mesmo nessa conjuntura, diante do desafios que temos pela frente, o Congresso seja um ator muito relevante para uma consistente reforma tributária e não uma superficial reforma tributária. A ver.

E temos outros atores. Se olharmos com atenção, com uma lupa mais dedicada ao que aconteceu nos territórios de altíssima vulnerabilidade do país, tanto nas áreas de alta densidade urbana como no interior, no mundo rural do Brasil, há uma sociedade civil muito pujante, com uma capacidade fenomenal de adaptação a essa crise. A sociedade civil organizada nas periferias das grandes cidades, com apoio do mundo filantrópico, de vários atores, de doações inclusive, conseguiu uma capilaridade para enfrentar situações extremamente delicadas de pobreza radical, com consistência, com diálogo, com respeito, muito surpreendente. Então, o que eu acho que a gente tem que pensar, Carol, é que existe hoje um efeito mundo, por um lado, e uma configuração da realidade brasileira em que se ampliou o arco de atores em diálogo com o poder público federal. Esses atores provocam uma reflexão sobre o que queremos para a saída da pandemia.

E aí você tem o jogo, óbvio, das forças de poder aonde se envolve o judiciário, o executivo nas suas várias frentes, municipal, estadual e federal, o legislativo, uma eleição municipal daqui a pouco, uma outra eleição depois para estados e governo federal e uma sociedade civil que se reconfigura hoje. Como histórico, temos no imaginário uma referência muito potente que é o Betinho. Com o Betinho como representante, como persona de uma visão moderna da sociedade civil atualizado para os dias de hoje, temos uma potência muito grande.

Na cena da discussão da política pública está como criar forças, às vezes à revelia do interesse de alguém que está no executivo, mas que tenha vetores de transformação, que podem não acontecer no curto prazo, mas que criam um certo centro de gravidade no médio prazo para acontecer.

Como essa construção se daria? 

Precisamos de um outro arranjo social. Ele bebe dos avanços pós constituinte e precisam ser atualizados para dizer que agora é necessário o Brasil projetar uma nova inserção, nacional e internacional, que diga que essa desigualdade não faz sentido e que a gente não pode ter pessoas abaixo de um determinado nível de razoabilidade do ponto de vista das suas condições socioeconômicas. Quer dizer, não podemos ter essas pessoas em situação de altíssima vulnerabilidade como temos hoje. Não só tirar da extrema pobreza mas também tirar da pobreza. Há esse acordo, se vai acontecer nos próximos meses ou não, não tenho bola de cristal. Mas hoje temos forças se movimentando no país para tornar isso viável. Há inteligência política e institucional suficiente para desenhar boas intervenções nessa direção.

Não é um campo desconhecido ou só do palpite. Ao contrário, é um campo com muita densidade da ciência e da ciência aplicada para desenhar uma política social de altíssima qualidade para enfrentar os desafios do Brasil. Repito: uma política social que tem história, que vem evoluindo. Hoje a questão é: como a gente dá um salto nessa evolução? Pode ser que o ambiente do governo federal hoje não seja o mais acolhedor para isso. Mas a disputa que está na arena política é uma disputa que tem mais consensos no amplo espectro doutrinário deste país sobre coisas positivas a serem feitas do que cair no obscurantismo, no negacionismo, no retrocesso.

É óbvio que isso está em intenção, está em disputa, pode ser que o retrocesso, uma visão não civilizatória, negacionista da pandemia, que recusa uma inserção mais soberana, que recusa uma modernização do Estado, tenha algumas vitórias, está em jogo, mas acho que tendem a ser menores.

Há um amplo arco muito mais consistente hoje do que há pouquíssimo tempo. Esse arco bebe das conquistas pós-constituinte e reposiciona hoje a discussão sobre uma nova política social, uma nova política econômica. Isso com suas configurações necessárias, com a reforma tributária que é necessária, com o ajuste da reforma previdenciária que é necessário, com a reforma do Estado, que é necessária, com uma nova renda básica, com um desenho de uma política social altiva que esteja em relação de equivalência a uma política econômica. Acho que a gente tem um momento propício para construir isso.

Da mesma maneira que a pandemia foi capaz de revelar as desigualdades, por outro lado também mostra quem são os políticos comprometidos com essa saída. Então pode ser que a gente tenha algo de bom no final disso tudo? 

Tem elementos para isso. Não é só um problema de fé. É um problema de construção desse espaço público, que não é só governamental. E isso cria oxigênio nesse processo. Nesse espaço público tem o governo federal, os governos estaduais, os governos municipais, tem a sociedade civil organizada, tem o setor privado, tem o setor filantrópico associado ao setor privado, tem o mundo das igrejas, das organizações sociais, dos movimentos sociais. Nesses espaços públicos é que tem muito mais oxigênio – e oxigênio criativo – do que você tinha há pouquíssimo tempo atrás.

É um efeito da exposição da sociedade brasileira como um todo a essa terrível crise associada à pandemia, sem precedentes. Mas de alguma forma ela reconfigura posições e leituras que dizem: não é possível uma solução não civilizatória para este país, não é possível uma solução obscurantista, racista e preconceituosa, que negue o direito à maioria de ter uma vida digna. Isso não é possível. Diante deste certo compartilhamento de uma indignação, que é movida pela vivência da crise, pode ser que se reconfigurem forças que gravitam em torno da transformação que a gente precisa. A gente já precisava antes, mas agora precisamos de forma estrutural. Agora [essa necessidade] é visível para mais pessoas. Pode ser que essa visibilidade angarie energia e força suficientes para produzir transformações.

Como o racismo se insere nessa discussão neste momento? O Brasil nunca enfrentou o racismo como deveria, nunca praticou a reparação à sua população negra. A conjuntura internacional ajuda a trazer para o debate público essa questão. Temos poucas políticas públicas voltadas ao enfrentamento ao racismo. Uma delas é a política de cotas, que terá de ser revista em 2022. Que políticas seriam necessárias para diminuir a desigualdade e a injustiça racial? 

As políticas de cotas são extremamente positivas. Por um lado, reconhecem o racismo estrutural e por outro mudam as expectativas e as trajetórias de vida das pessoas negras que estavam fora do circuito universitário. Mas elas podem ser cotas no processo eleitoral, não têm que se conter estritamente na política de acesso à universidade. Primeiro precisamos reconhecer que o racismo está no núcleo duro das desigualdades brasileiras.

O racismo organizou um arranjo social de enorme perversão que em última instância inviabiliza a democracia e o desenvolvimento contemporâneo. Um dos fatores que contém o avanço democrático no país é o seu racismo estrutural.

Um dos fatores que contém a possibilidade do Brasil ter um dinamismo de inserção na sociedade do conhecimento contemporâneo é o racismo estrutural. O Brasil é o país do futuro que nunca se realiza, um eterno vir a ser que nunca se transforma no país do futuro. O principal ingrediente que nos coloca nessa situação permanente de um vir a ser que não se adensa, que não se realiza, é a forma como nós naturalizamos a relação com o racismo. Essa é a principal variável. Historicamente isso está ancorado na forma perversa como nós fizemos a transição da escravidão. Os outros países, em alguma medida, fizeram a transição, garantiram ou o acesso a bens, a capital, a instrumentos de trabalho agrícola, ou acesso à educação, à terra. Ou qualquer combinação disso. E o Brasil foi o único país que fez a transição com o ato simbólico da libertação sem garantir ao povo negro escravizado o acesso a nenhum desses fatores. Então, na origem, a forma da nossa transição da escravidão para aquilo que depois viria a configurar o arranjo republicano foi a transição mais perversa que a humanidade produziu. Alijou estruturalmente os negros de alguns mínimos que seriam necessários para poder fazer uma mobilidade social ao longo da nossa história.

Isso foi referendado. Inclusive nos processos modernos à época, como os desenhos das reformas trabalhistas, aonde a questão da alfabetização era uma variável chave e os analfabetos eram os negros filhos de escravos. Então todos os desenhos que nós fizemos ao longo da nossa história ratificaram o traço do nosso racismo estrutural. O que acontece hoje, em pleno século 21, já passadas duas décadas deste século: ainda não enfrentamos com a densidade que é necessária o racismo estrutural. Aí é enfrentar no campo da política, para garantir a democracia, no campo da economia, dos direitos sociais como um todo. De cada 100 crianças brancas que entram no primeiro ano do Ensino Fundamental, 75 terminam o Ensino Médio. Não é nada a se vangloriar, já é ruim. O componente racial é: de cada 100 crianças negras que entram na primeira série do Ensino Fundamental, só 58 terminam o Ensino Médio. É uma expressão dessa distância que tem como traço constitutivo a questão racial.

O que é fundamental é que qualquer que seja o processo de desigualdade acumulado ao longo da história da vida, o que as pessoas não reconhecem em geral, é que todas as dificuldades que um branco tem, para além dessas, o negro tem a dificuldade de ser negro nessa sociedade. Isso aparta enormemente a organização que a gente produz. Não há como a gente projetar uma sociedade brasileira, conectada no conhecimento, com potência de formação ao ponto de estar incluída na quarta revolução industrial, atualizada nas dimensões contemporâneas da democracia, não há como fazermos nenhum desses movimentos de forma sustentável e transformadora se não reconhecermos o racismo e, muito mais importante, desenvolvermos práticas antirracistas.

Práticas antirracistas individuais e no desenho das políticas públicas. Nesse contexto geral, a política de cotas é um componente importante de uma visão transformadora que reconhece que é necessário ter nitidez no enfrentamento do racismo para promover essa nova transformação. O racismo é um elemento organizador desse arranjo perverso que a gente produziu na sociedade brasileira. Se a gente destravar essa agenda e enfrentá-la, a dinâmica sócio, econômica, política e cultural deste país pode ser muito mais transformadora e muito mais rica do que tudo o que a gente gerou até agora. Tem potência. O salto histórico que este país pode dar está totalmente relacionado com a sua coragem de enfrentar o seu racismo estrutural. Por definição isso implica em uma agenda que tem protagonismo dos negros e tem participação dos brancos.

Como o legado de Marielle atua nesse contexto? Veremos mais candidatas como ela nas próximas eleições? Há esse efeito?

As mulheres negras são o elemento mais transformador que nós temos hoje em um projeto de futuro que nós podemos construir. Implica em simultaneamente enfrentar os traços machistas que organizam a sociedade e os traços racistas. Marielle é um ícone disso, uma liderança fantástica. O que ela carrega como capital simbólico é muito importante para essa transformação. Os partidos não podem usar as cotas de gênero como fachada, o que ainda é muito comum. Precisam assumir isso como uma pauta efetivamente da agenda de modernização da política. É uma variável que dará maior potência de transformação, a presença das mulheres negras gerará ainda mais potência. Isso tem que ser uma agenda reconhecida pelos partidos, implica dar apoio econômico, de mídia, faz parte do momento atual da política. No campo dos eleitores, que se movam para elegeram mulheres negras a posições, isso será muito importante para a qualidade política.

Porque o racismo é efetivamente estrutural, ele ocupa o cotidiano, ele ocupa as subjetividades, ele está em práticas não reveladas. Não é só um problema de representatividade. É um problema de práticas. Da branquitude ter práticas concretas associadas às mudanças das regras de privilégios que são atribuídas a pessoas simplesmente porque elas são brancas.

O privilégio que eu desfruto na sociedade simplesmente porque sou um homem branco. Quanto mais óticas diversas sobre o real, sobre o mundo, maior a probabilidade de soluções melhores, mais consistentes, mais atentas para todas as pessoas, mais sutis para mudanças estruturais, quanto mais a arena política for representativa do perfil demográfico do país, mais rico a gente vai ser, mais dinâmico a gente vai ser, mais transformador a gente vai ser. Então, sim, temos condições para criar oportunidades muito maiores para mulheres negras candidatas e temos condições para o voto se expressar em direção a mulheres negras candidatas. Precisamos fazer as duas coisas.

Como será o Brasil pós pandemia em relação ao mundo? 

Vamos viver algumas bifurcações. [O professor e sociólogo português] Boaventura de Sousa Santos trouxe uma ideia muito interessante sobre o que é disruptivo. Hoje seria disruptivo manter ou aumentar a nossa desigualdade. O disruptivo hoje é o retrocesso. Existem forças nessa direção: obscurantismo, negacionismo, o não reconhecimento do que é a agenda da diversidade. Seria a pior solução possível, o maior desarranjo possível que na nossa história. A gente precisa dar conta de não enfrentar esse momento com esses traços. Mas essa força está projetada. É muito importante ter consciência para aumentarmos o nosso arco de alianças contra essa visão obscurantista que pode ser vencedora, mesmo que minoritária. Porque o abismo que está a nossa frente ele é muito profundo.

Por outro lado, de forma quase proporcional, há um momento de arranjos e acordos, de conhecimentos e saberes, sobre a oportunidade de ser responsável em direção a uma transformação que reposicione o Brasil num outro momento da sociedade contemporânea. Precisa ser muito responsável, garantir fundamentos, não podemos abrir mão de sermos eficientes, eficazes, de termos muito boa gestão de recursos públicos. Essa saída nunca será fácil. Implica em muita responsabilidade, profissionalização da política pública, com intenção de acabar com a relação de subordinação entre a política social e a política econômica, que é a nossa história e isso tem que ser rompido.

Precisamos produzir uma relação de equivalência entre a política social e a política econômica. Porque, em última instância, a própria política econômica está a serviço da política social. Nós queremos uma sociedade inclusiva, democrática e dinâmica.

Precisamos romper com essa história, para isso é muito importante que a política social se profissionalize ainda mais, que seja ativa, de construção de uma sociedade moderna, com inclusão digital, com inclusão documental, bancária, produtiva, da população como um todo. Que a gente tenha uma renda básica de cidadania que garanta pisos para esses processos, uma renda básica responsável e financiada, e para isso é preciso uma boa reforma tributária, que seja regressiva no consumo, progressivo na renda e no patrimônio. E de uma boa reforma do Estado que viabilize essa dinâmica, mais consistente e profissional como um todo, e que dentro dessa arquitetura a gente produza aquilo que é fundamental: uma visão intersetorial e articulada da política econômica e da politica social em seus vários componentes, com política urbana, ambiental, de saúde, de educação, de assistência, de transporte, de infraestrutura, ou seja, do conjunto dessas políticas.

Esse desenho programático precisa uma ancoragem do ponto de vista de visão da sociedade. E nessa visão é que precisamos enfrentar o racismo estrutural.

Nelson Rodrigues dizia que o subdesenvolvimento não se improvisa, o subdesenvolvimento é uma obra de séculos. Eu digo que desenvolvimento também não se improvisa. O desenvolvimento precisa de muita ciência, de muito rigor, de compromisso com as práticas, com o diagnóstico sobre as nossas causas. Desenvolvimento não se improvisa, mas não pode ser uma obra de séculos. Democracia e combate à desigualdade caminham juntos.

Eu tenho um otimismo que me parece muito realista, no sentido de que há uma disputa. Pode não acontecer mas a minha utopia pragmática te diria que estão em jogo vetores de uma transformação estrutural para esse Brasil que não estavam há pouco tempo atrás e podem criar um arco de aliança possível para essa visão de um Brasil democrático, inclusivo, diverso, transformador, não racista. É essa disjuntiva que nós temos pela frente: a disrupção retrógrada ou a transformação estrutural.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.