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Maria Carolina Trevisan

A estratégia de Bolsonaro na opção por um ministro negro e moderado no MEC

Maria Carolina Trevisan

30/06/2020 11h00

Bolsonaro e Decotelli. Imagem: reprodução redes sociais

A escolha de Carlos Alberto Decotelli como ministro da Educação faz parte da estratégia de recuo de Jair Bolsonaro (sem partido). Acuado pelas recentes pressões contra seus filhos no caso Queiroz e na apuração das fake news, desacreditado pela péssima gestão da pandemia e pelo desprezo acerca das vidas perdidas, exposto por ações criminosas de apoiadores, o presidente Bolsonaro optou por um ministro de perfil simpático, discreto, educado e técnico (embora em outra área). Trata-se de um homem conservador (mas não extremista), ligado à Marinha, o que agradaria os militares no governo.

Decotelli é gentil. Tem hábitos simples como almoçar nas barraquinhas de comida de rua diante do prédio que abriga o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) nos tempos de presidente de um dos maiores orçamentos da pasta (R$ 54 bilhões, agora, sob comando do centrão). Conquistava a atenção e o suporte da equipe que comandava não tanto pela competência específica em educação, que não tem, mas pela empatia, pelo entusiasmo, pela maneira cortês. A veia neoliberal que o aproxima do ministro Paulo Guedes (Economia) e da ideia de que empresas privadas seriam solução para gestão da área educacional também pesou na hora de nomeá-lo como ministro.

Não por acaso, Decotelli é também um homem negro. Essa é a característica mais contrastante do novo ministro em relação à equipe ministerial do governo Bolsonaro. Não há negros no primeiro escalão. As pautas e políticas que envolvem a questão racial –como, por exemplo, as políticas afirmativas, o ensino de história e cultura afrobrasileira e indígena, o combate à violência contra jovens negros, entre muitas outras– não fazem parte do horizonte das bandeiras bolsonaristas. Nunca fizeram.

Ao contrário: seu antecessor, Abraham Weintraub, revogou uma portaria que incentiva a adoção de cotas raciais, sociais e étnicas na pós-graduação como último ato de sua liderança no MEC. Foi simbólico de alguém que menospreza meios para diminuir a desigualdade racial no país.

Ademais, o ex-ministro também expressou seu racismo em piadinha contra chineses, ao dizer "povos indígenas, odeio esse termo. Odeio. O povo cigano. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré", na fatídica reunião de 22 de abril, negando a existência do preconceito racial, que marca as diferenças sociais no Brasil. Esse estilo raivoso, verborrágico, em que cabem palavrões e desejos de ver ministros do Supremo Tribunal Federal presos (o "bando de vagabundos"), não cabe no perfil de Decotelli.

As imprecisões em seu currículo acadêmico são graves, ainda mais para alguém que quer ocupar a cadeira de ministro da Educação. Mas não se trata de novidade entre os ministros (todos brancos) de Bolsonaro.

Ricardo Salles (Meio Ambiente) dizia ter feito mestrado em Yale. Uma mentira revelada pelo Intercept. Ninguém considerou que Salles deveria deixar o cargo. Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) se apresentava como mestre em educação, direito constitucional e direito da família no começo de sua gestão. Ao ser questionada sobre onde teria cursado a pós-graduação, em nota, disse que seu mestrado é "bíblico". Não se cogitou que o correto seria ela não mais gerir a pasta.

O mesmo ocorreu em governos anteriores, levando, por exemplo, a ex-presidente Dilma Rousseff a admitir que errou em seu currículo acadêmico, pois não teria apresentado a dissertação e a tese para mestrado e doutorado, como revelou a revista Piauí, quando ela era ministra da Casa Civil, em 2009. 

Um homem negro de direita que não nega conquistas de seus ancestrais

A régua com que a sociedade mede os erros de brancos é diferente da régua com que mede os erros dos negros. No segundo caso, o sarrafo é mais alto. Desde que nascem, as crianças negras precisam aprender a se comportar, como Miguel, que não soube corresponder ao seu lugar na pedagogia do racismo. Ele era muito pequeno, tinha cinco anos. Ou como João Pedro, 14 anos, que não teve chance de lidar com a polícia, alvejado pelas costas dentro de casa, num lugar predominantemente negro. Já tinha idade para entender que quem é negro, ainda mais estando na favela, é quase sempre um suspeito aos olhos da polícia e da sociedade. É o preço cobrado por um país estruturado sobre o racismo. Aqui, quem é negro é mais cobrado. Questão de sobrevivência.

Por isso, o deboche, a humilhação pública de Decotelli, não teve lado. Veio da esquerda e da direita. Ninguém o defendeu, bem ao contrário do ex-ministro investigado por racismo. Esse processo deveria nos envergonhar. Decotelli é um homem negro de direita que não nega a história de resistência e de conquista de seus ancestrais.

"A maioria da população negra está alijada do poder. Por isso, o que Decotelli fizer nesse ministerio é muito significativo. Sua identidade racial é central na escolha do presidente. Mas o fato de ser um negro de direita não vai impedir que ele sofra racismo. Os erros e os acertos dele estarão relacionados a isso. É um preço muito grande ser negro em um governo que nega direitos e desqualifica o sujeito de direitos", explica a professora de sociologia Flavia Rios, da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Decotelli se posiciona de maneira muito distinta à do presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo, para quem o movimento negro é uma "escória maldita". Ou como o deputado federal Helio Lopes (PSL-RJ), que ao se eleger na onda da campanha de Bolsonaro afirmou: "Vamos acabar com essa divisão de classe! Somos todos iguais! Minha cor é o Brasil! A força do Brasil é a união do seu povo!", voltando ao discurso da democracia racial, um mito derrubado pelas estatísticas e por décadas de trabalho do movimento negro.

A opção por um ministro negro faz parte da estratégia de abafar a crise política. "É uma tentativa de apresentar quadros mais moderados, menos polêmicos", analisa Flavia. Ela explica que a nomeação de Decotelli é também uma tentativa de Bolsonaro de minimizar suas posturas racistas explicitadas na campanha de 2018, quando mencionou os quilombolas, e também de neutralizar as declarações e atitudes de Weintraub. Além disso, um ministro da Educação negro compõe positivamente com o cenário político internacional.

Seu ídolo, o presidente Donald Trump, tem sofrido queda de popularidade pelos posicionamentos na pandemia de covid-19 e acerca dos protestos antirracistas que tomaram os Estados Unidos. "São muitas evidências sistemáticas de um governo alinhado a uma posição racista ou que não tem nenhuma preocupação com a população negra e que ataca seus direitos. Foi um cálculo muito bem elaborado." 

MEC e o enfrentamento ao racismo   

O Ministério da Educação é central para combater o racismo presente no Brasil desde a sua formação e persistente até hoje. Uma condição que, ao fim e ao cabo, naturaliza a morte negra pela violência ou pela negligência. O MEC é capaz de operar em uma mudança cultural que dirija o país para ações antirracistas e atue no compromisso de diminuir essas diferenças. O desafio, nesse sentido, de quem assumir a pasta é dar continuidade a essas políticas, comprovadamente eficazes.

Nos últimos anos, as universidades passaram a conviver com a diversidade racial, o que enriquece todos os ambientes. A sala de aula mudou de cor. Mas ainda há muito o que caminhar: é necessário garantir a permanência e a estrutura dos alunos cotistas. O acesso a internet e a computadores é um dos gargalos que dificultam a formação de pesquisadores negros. Outra dimensão que precisa de atenção é a política que define equilíbrio racial entre os docentes. Há ainda muitos obstáculos.

Na educação básica, falta a implementação efetiva das leis 10.639 e 11.645, que estabelecem as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e cultura afrobrasileira e indígena". Isso impõe a necessidade de abordar a questão no ensino de todas as disciplinas do currículo da educação básica, que inclui o ensino fundamental e médio, além da adoção do tema nos livros didáticos. Isso muda um país e é muito mais eficaz que fazer uma festa de princesa negra para uma menina negra que sofreu racismo e tinha o sonho de conhecer a Disney, como fez a ministra Damares, em uma mera encenação.   

Não basta escolher um ministro negro para garantir a implementação de políticas de enfrentamento ao racismo. "Não se trata só de uma representação estética ou física, do fenótipo. É preciso ter um engajamento, uma perspectiva, um olhar que entenda que existem desigualdades raciais e que as pessoas morrem por conta da cor da pele, têm acesso diferenciado às escolas, por conta da origem social e racial, que interfere na trajetória dos estudantes e afeta o mercado de trabalho", afirma a socióloga Flavia Rios.

Para ela, o próximo ministro da Educação precisa partir do pressuposto de que não existe igualdade racial e que os últimos anos propiciaram um capital social e humano qualificado técnica e profissionalmente, com ações práticas que já têm bons resultados, mas precisam ser ajustadas.

A experiência de diálogo de Decotelli é bem-vinda. As pesquisas na área de manejo de soja são menos relevantes do que sua capacidade de gerir, que parece ser infinitamente maior do que a dos ministros brancos que o antecederam. Os próximos passos em relação ao ministro mostrarão a quantidade de verniz impregnada na escolha de Decotelli para lustrar um governo pouco afeito à justiça e à busca de igualdade.

Leia também: Saída de Decotelli abre espaço para uso político ou ideológico do MEC

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.