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Maria Carolina Trevisan

Quem gerou constrangimento aos ministros militares foi Bolsonaro, não o STF

Maria Carolina Trevisan

08/05/2020 11h55

O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, com o presidente Jair Bolsonaro em evento – Imagem: MATEUS BONOMI/AGIF/ESTADÃO CONTEÚDO

Tensionar, expor, ofender, afirmar e depois desmentir. O presidente Jair Bolsonaro usa o constrangimento como estratégia para obter o que quer. O presidente não escuta, não dialoga e não negocia, como ele mesmo afirmou. Ou se está com ele ou se está contra ele. Nessa lógica, qualquer um pode se tornar alvo ao desagradá-lo.

Ofensa a ofensa, os ministros começam a se dar conta de que qualquer um é também descartável. A cada nova atitude constrangedora, isso fica mais evidente. Nesta quinta (7), ao visitar de surpresa o Supremo Tribunal Federal (STF) munido de seu ministro da Economia, Paulo Guedes, e de empresários, na tentativa de forçar a abertura da economia no dia em que mais de 610 pessoas morreram vítimas de Covid-19 em 24 horas, Bolsonaro promoveu mais constrangimentos. Expôs o presidente do Supremo, Dias Toffoli, a críticas entre colegas, que avaliaram o gesto do presidente como interferência indevida justo no momento em que ele é investigado pelo STF. O tom conciliatório de Toffoli contrasta com os ataques que outro membro da Corte, o ministro Alexandre de Moraes, vem sofrendo por ter barrado a nomeação de Alexandre Ramagem à direção da Polícia Federal.

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"Economia também é vida", disse o presidente. Mas o passeio pegou mal. Evidenciou, mais uma vez, esse modo de operar bolsonarista, em que cabem até mesmo ameaças veladas. "O Supremo está fazendo o que tem que fazer. Vão se acumulando instâncias de questionamento das posições do presidente com respeito a sua legitimidade e à legalidade dessas posições. No acúmulo de acusações que vão sendo feitas em relação ao presidente ou de demandas para que ele se explique acerca do que ele fala, o presidente se sente encurralado", explica Lucio Rennó, cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB). "Ele estirou tanto essa corda, provocou tanto as diferentes instituições, seguidamente, que com esse movimento de idas e vindas ele se enfraquece, se torna pouco confiável."

Pode parecer que não, mas a população também enxerga tudo isso, apesar dos bolsonaristas extremistas que acampam na Praça do Três Poderes e pedem o fechamento do Supremo, alheios à pandemia. A confiança no governo Bolsonaro está desmoronando. A queda tem sido em ladeira íngrime, apontam as pesquisas. A mais recente, da Ideia Big Data, mostra a perda de 8 pontos de popularidade em uma semana, impacto impulsionado pela saída do ex-ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública). Também é cada vez maior a quantidade de pessoas que avaliam o governo como ruim e péssimo: chegou a 41% dos entrevistados.

Militares constrangidos

Com a denúncia de Moro, a investigação sobre as manifestações antidemocráticas, a obrigação de apresentar os exames de coronavírus e as provas de fraudes nas eleições, a Justiça está demonstrando que há um limite até para o presidente da República. Ele precisa comprovar o que fala. Para chegar até aqui, no entanto, foi necessário muito desgaste acumulado.

A estratégia de esticar a corda ao máximo e depois retroceder conforme se observa a rejeição da opinião pública já não funciona. "Se, em um certo momento, isso era um fator que confundia e portanto enfraquecia a oposição e o mantinha como controlador da agenda pública – e isso para ele era positivo –, hoje, aparentemente, o desgaste causado é muito grande. Vai se acumulando cada vez mais a partir desses posicionamentos desencontrados do presidente", afirma Rennó. "É uma estratégia que neste momento começa a dar sinais de falência e enfraquecimento, resultando em efeitos negativos, ou perversos ou contrários para o próprio presidente."

O presidente não mede esforços para ter razão. Mas ninguém aposta a reputação para ser facilmente descartado, como foram Moro e Mandetta. O apoio do presidente a atos antidemocráticos gerou novamente incômodo nas Forças Armadas. Tanto que o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, reafirmou em nota (pela segunda vez no intervalo de duas semanas) que a missão constitucional do Exército, da Marinha e da Força Aérea é a defesa da lei, da ordem, da democracia e da liberdade, além de zelar pela "independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do País"

Enquanto os ministros militares digeriam a provocação do longínquo domingo (3), o ministro decano do Supremo, Celso de Mello, atendeu, na terça (5), pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para investigar a interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal. Em um dos pontos mais importantes da sua denúncia à Polícia Federal, o ex-juiz Moro implica os ministros generais Augusto Heleno (GSI), Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). O ministro Celso de Mello, então, decidiu convocar os três como testemunhas do provável ato ilícito de Bolsonaro.

Pela Constituição, quem investiga a condução do presidente é o Supremo. Mas os ministros generais se sentiram ofendidos pela decisão porque continha a menção à condução coercitiva e "debaixo de vara" caso eles não se apresentassem para testemunhar. São termos cujo uso é praxe, porém seu uso não é comum do ponto de vista do STF. Mas desagradaram os ministros generais. "Não havia necessidade", disse o ministro Luiz Eduardo Ramos na entrevista concedida ao programa "Poder em Foco", ancorado pelo jornalista Fernando Rodrigues no SBT.

"Primeiramente, nós, no caso militares, apesar de eu estar no governo, desde nossa formação, nós somos assim, vamos dizer, formatados, doutrinados e enfatizados pelo respeito da lei e da ordem. Até no pátio da Academia está 'cadetes, ide comandar, aprendei a obedecer'. Então são valores muito sagrados para nós. Eu tenho o maior respeito pelo Supremo Tribunal Federal. O eminente ministro Celso de Mello é o decano, mas o que eu falei para alguns amigos — e alguns até da área judiciária —, respeito. Agora, se é de praxe, se é como se fosse um carimbo, acho que não havia necessidade", afirmou Ramos. "Primeiro que nós vamos cumprir o que for determinado. Os militares cumprem ordens, respeitam a lei, a hierarquia. Ou seja, não havia necessidade de condução coercitiva. Não existe essa possibilidade de ser determinado dia e hora e um de nós não comparecer. Olha a história dos três generais. Sinceramente, eu acho que não havia necessidade."

Acontece que quem expôs os generais ministros a essa situação constrangedora foi primeiro (e mais de uma vez) o presidente Bolsonaro. O Supremo foi provocado a mostrar sua independência. Proteger essa independência é obrigação das Forças Armadas, como reiterou o ministro da Defesa. Quando há tantos militares compondo com um governo que flerta o tempo todo com o autoritarismo, essa sinuca se torna permanente.

Fato é que o governo Bolsonaro vem se indispondo com todos os Poderes e está cada vez mais isolado. "Um dado importante de conflito do Legislativo com o Executivo é o número de vetos e depois o número de vetos derrubados. Bolsonaro tem um recorde do número de vetos no primeiro ano e tem um recorde do número de vetos derrubados no primeiro ano. Mostra uma relação conflituosa, um desentendimento sobre o conteúdo das propostas com o Congresso e que ele perde para o Congresso em número de vetos derrubados", explica Rennó. "É um presidente muito frágil dentro do Congresso."

Resta saber como os ministros militares sairão da crise provocada por Bolsonaro, no meio da pandemia de coronavírus, sem abalar a reputação das Forças Armadas, em especial, do Exército, que tem mostrado desconforto com o presidente. Vivemos um pesadelo chamado Brasil.

 

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.