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Maria Carolina Trevisan

Campanha suspensa de pacote de Moro revela preferência pela vida de brancos

Maria Carolina Trevisan

09/10/2019 04h00

Bolsonaro e Moro em lançamento da campanha pelo pacote anticrime Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

A dor gerada pela perda de um ente querido é sempre infinita. Quando a morte é causada pela violência, a dor se torna ainda mais dilacerante, ultrapassa gerações. Nessa contabilidade do sofrimento, não importa se a vítima era branca, negra ou amarela, não interessa sua ocupação ou lugar onde vive. A morte nos iguala. Chora a mãe da favela, chora a mãe do asfalto.

A campanha publicitária do pacote anticrime apresentada pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, no último dia 3 –e suspensa pelo TCU (Tribunal de Contas da União) nesta terça-feira (8)— aparentemente se esqueceu de metade dos brasileiros: os negros. A população omitida na campanha do governo é justamente aquela mais sujeita à violência letal, a que mais morre de homicídio no Brasil: 75,5% das vítimas são negras, de acordo com o Atlas da Violência 2019. O estudo analisou os dados de 10 anos (2007 a 2017) e concluiu que enquanto os homicídios de não negros cresceram 3,3%, as mortes violentas de negros aumentaram 33%. É nítido o foco que uma política pública nessa área deveria tomar. As vidas não negras precisam ser protegidas, assim como as vidas negras. Mas essas estão no mapa do ministro Moro.

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Uma das peças da campanha suspensa

No que diz respeito à violência policial, 75,4% dos mortos em decorrência de intervenção policial eram negros, como mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Em vez de estimular mecanismos e estratégias que possam diminuir os riscos dos brasileiros sujeitos à letalidade policial, em lugar de proteger as vidas dos próprios policiais (a maioria dos agentes que morreram em 2018 também era negra), a campanha publicitária volta a pautar a excludente de ilicitude, que havia sido rejeitada pelos deputados do grupo de trabalho que analisa o pacote anticrime.

Ao comentar a campanha na quinta (3), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) reclamou do que chamou de "ativismo" em órgãos da Justiça, no Ministério Público ou na política para transformar mortes cometidas por policiais em execução. E defendeu a letalidade policial como política de segurança pública. "Muitas vezes a gente vê que um policial militar, que é mais conhecido, né, ser alçado para uma função e vem a imprensa dizer que ele tem 20 autos de resistência. Tinha que ter 50! É sinal que ele trabalha, que ele faz sua parte e que ele não morreu. Ou queria que nós providenciássemos empregos para a viúva?", afirmou Bolsonaro. "Auto de resistência" era a justificativa que se usava para argumentar legítima defesa em situação de morte em decorrência de intervenção policial. 

Apelo às emoções

A campanha de Moro joga com o apelo. Cria no receptor da mensagem a irrefutável sensação de que ninguém merece ser assassinado e que isso justificaria penas mais severas, a justiça a qualquer custo. O nome dessa prática é "sensacionalismo", palavra tantas vezes repetida pelo próprio Moro ao se referir às mensagens reveladas pelo The Intercept Brasil. A campanha do pacote anticrime tenta manipular emoções. Serve para atrair a audiência. Mas não serve para informar. "[A campanha] não atende aos requisitos de caráter educativo, informativo e de orientação social", argumenta o ministro do TCU Vital Rêgo, que suspendeu a peça publicitária.

O apelo tem o objetivo de causar comoção. Funcionou, por exemplo, com o procurador Vladimir, primo do novo procurador-geral da República, Augusto Aras. Ele apoiou o pacote anticrime em seu Twitter e contou a história pessoal do assassinato de seu pai. Ou com a autora de novelas Gloria Perez, que teve a filha Daniella assassinada aos 22 anos. Ela apoiou publicamente o pacote. O ministro republicou o tuíte.

"Em 9/out/1996, um auditor fiscal baiano foi vítima de crime de mando. Assassinado a tiros na frente de sua esposa, o sociólogo José Raimundo Aras tinha 54 anos. Era meu pai… Meus irmãos, os irmãos dele, seus amigos, colegas e eu esperamos justiça há 23 anos. Ela ainda não veio. https://t.co/QZdYFfvQuj"

Qualquer um que tenha coração dentro do peito lamenta por tragédias como essas e pela impunidade. O problema é que os vídeos não retratam a realidade mais recorrente no país. Nenhuma das peças retrata uma mulher como a mãe da Ághata, menina de oito anos que morreu com tiro de fuzil no Rio de Janeiro, durante operação policial. "Eu não sou publicitário, evidentemente. Mas a ideia é lembrar que essa necessidade de enfrentar a criminalidade é para proteger as pessoas", disse Moro no lançamento da campanha, que custou R$ 10 milhões.

Que pessoas o governo quer proteger? Sua campanha –e seu pacote anticrime– não aponta para soluções que protejam as vidas negras. Ao contrário, declara abertamente, na TV, na internet, em redes sociais, em outdoors, quem é o brasileiro que o Estado quer vivo. E votando.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.