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Maria Carolina Trevisan

Indulto prometido por Bolsonaro beneficiaria apenas dois policiais

Maria Carolina Trevisan

02/09/2019 12h46

Reprodução da live semanal do presidente Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) declarou na quinta (29) e no sábado (31) que dará indulto a policiais envolvidos nos massacres do Carandiru, de Eldorado do Carajás e na morte de Sandro Barbosa do Nascimento, que sequestrou o ônibus 174. Seriam 234 pessoas a receber o perdão. Seriam. Mas a grande maioria não está presa ou nunca foi condenada por essas mortes.

Passados quase 27 anos do Massacre do Carandiru, em São Paulo, a mais grave violação de direitos humanos no Brasil de pessoas sob custódia do Estado cometida por policiais — que vitimou pelo menos 111 pessoas — nenhum policial foi preso. Depois de 23 anos do massacre de Eldorado de Carajás, no Pará, quando 155 policiais abriram fogo contra um grupo de milhares de sem-terra ligados ao MST matando 19 pessoas, há dois policiais presos. No caso do assassinato de Sandro, que sequestrou o ônibus 174 no Rio, os dois policiais acusados de terem asfixiado o rapaz foram absolvidos pelo tribunal do júri.

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Inclusive o indulto assinado pelo próprio presidente Bolsonaro em fevereiro de 2019 prevê a clemência apenas para casos não relacionados a crimes violentos. O decreto exclui do benefício pessoas que cumprem pena por crimes hediondos (como homicídio), praticados com grave violência contra pessoas, entre outras situações.

A impunidade de policiais que cometeram crimes se esconde em alegações de legítima defesa. São justificadas em "autos de resistência" ou "morte decorrente de intervenção policial". Esses argumentos podem ganhar em breve mais um reforço: se for aprovada a "excludente de ilicitude" para policiais, proposta da campanha de Bolsonaro incluída no pacote anticrime do ministro Sérgio Moro (Justiça), policiais podem ser isentados de investigação e, portanto, de cumprir pena nos casos em que há homicídio, ou ter a pena reduzida à metade.

Há uma impunidade histórica nos crimes cometidos por policiais. Antes do massacre do Carandiru, o desaparecimento forçado de 11 jovens (sete adolescentes, a mais nova tinha 13 anos), em julho de 1990, na favela de Acari (RJ), ficou conhecido como "Chacina de Acari" e marcou a comunidade para sempre. Eles foram levados por um grupo de policiais e seu paradeiro nunca foi descoberto. A investigação foi encerrada sem que ninguém fosse responsabilizado e levado à Justiça. O crime prescreveu em julho de 2010. A vereadora Marielle Franco atuava contra a violência policial em Acari. 

Em 1993, 21 pessoas foram executadas em episódio que ficou conhecido como "Chacina de Vigário Geral". Descobriu-se que os responsáveis pelos assassinatos eram na maioria policiais militares do 9º BPM do Rio. No total, 52 policiais foram denunciados, sete foram condenados mas apenas um segue cumprindo pena. Em março de 2014, agentes desse mesmo batalhão foram flagrados arrastando o corpo da auxiliar de serviços Claudia Ferreira da Silva. Ninguém está preso. O julgamento está marcado para outubro de 2019.

A Anistia Internacional, organização voltada à defesa dos direitos humanos, analisou a violência policial no Rio de Janeiro entre 2010 e 2015. Em 220 casos examinados envolvendo esses homicídios, apenas um policial havia sido indiciado. 

Carandiru, Carajás e ônibus 174

Massacre do Carandiru: detentos monstram pano sujo de sangue da Casa de Detenção de São Paulo, após a intervenção da Polícia Militar. Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

No caso do massacre de Eldorado dos Carajás, a Justiça levou 19 anos para condenar dois dos 155 policiais que participaram dos crimes.

O Massacre do Carandiru teve um dos julgamentos mais longos e complexos do país. Durou dois anos (2013 e 2014). Os 74 PMs foram considerados culpados pelo massacre e tiveram penas que variavam entre 48 e 624 anos de restrição de liberdade. O Tribunal de Justiça de São Paulo anulou o julgamento em 2016. "Se o comandante do [Massacre do] Carandiru (coronel Ubiratan Guimarães) estivesse vivo, eu dava indulto pra ele também", afirmou Bolsonaro. No entanto, se o coronel Ubiratan estivesse vivo, provavelmente não precisaria do indulto oferecido pelo presidente: apesar de condenado a mais de 600 anos de prisão, em 2001 por júri popular, desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) anularam o julgamento.

Em relação ao ônibus 174, o júri decidiu absolver os policiais que assassinaram Sandro na viatura depois do desfecho do sequestro. Na ocasião, a juíza Angélica Guedes, responsável pelo julgamento, lamentou a impunidade. "Incomoda aceitarmos que o Sandro merecia morrer. É a barbárie", disse. 

Para Bolsonaro (PSL), caso esses agentes tivessem sido punidos, teriam sido "presos injustamente" e "por pressão da mídia". "Final do ano, espera aí, tá? Aqueles indultos, vou escolher alguns caras, colegas policiais, que estão presos injustamente pelo Brasil, presos por pressão da mídia. Até o final do ano vai ter policial nesse indulto aí. Tem caso que todo mundo sabe, tem que ter coragem e usar a caneta", declarou em sua live, na quinta (29).

O que o presidente pretende com isso? Dá — mais uma vez — o recado de recrudescer a ação da polícia. Coloca em mais risco tanto a população pobre e negra (que já é alvo das balas perdidas e da letalidade policial) quanto os policiais, que se veem pressionados a matar e adoecem.

Bolsonaro pavimenta assim o piso por onde deve tramitar o pacote anticrime com a excludente de ilicitude para policiais. O texto do ministério de Moro propõe uma mudança que parece sutil mas pode ser drástica: em vez de policiais e agentes de segurança reagirem a situações de violência, a proposta é que eles se antecipem à ação. O problema é definir essas situações, uma vez que o pacote sugere que "o juiz deve reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Quem define o que é "escusável medo, surpresa ou violenta emoção", se essas são condições extremamente subjetivas?

Um relatório técnico do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), ao analisar a proposta da excludente de ilicitude no pacote anticrime, conclui que "o instituto da legítima defesa versa sobre a proteção da liberdade e deve levar, de alguma maneira, à redução da violência e nunca ao seu fomento ou justificativa. As alterações propostas certamente nos levam a crer no contrário". A entidade entende que não há outra sugestão a não ser sua retirada integral do pacote anticrime.

Bolsonaro gera pânico, medo e fomenta o ódio ao desculpar policiais que mataram nesses casos emblemáticos.

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.