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Maria Carolina Trevisan

O que dizem os silêncios de Bolsonaro

Maria Carolina Trevisan

08/03/2019 10h00

Desfile da Mangueira, campeã do carnaval do Rio em 2019, homenageia Marielle Franco. Sua companheira, Monica Benício, desfilou pela escola – Foto: Bruna Prado/UOL

No dia seguinte à execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL, há quase um ano, o então pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) não quis comentar sua morte brutal. Manteve-se em silêncio. Sua assessoria informou que o candidato, cujo tema principal de campanha era a segurança pública, sofrera uma "intoxicação alimentar" e, além disso, qualquer posicionamento seu seria "polêmico demais". Calou-se.

Ele foi o único pré-candidato a não falar sobre a execução, que também vitimou o motorista Anderson Gomes. "Qualquer coisa que eu viesse a falar, seria potencializado e distorcido contra mim", declarou depois ao jornal O Dia. Um de seus filhos, o então deputado estadual Flavio Bolsonaro (PSL-RJ), prestou condolências à família da vereadora mas apagou o tuíte. Aparentemente, temia atrapalhar a corrida presidencial do pai ao se solidarizar com o duplo homicídio.

Mesma apreensão não houve, por parte da campanha bolsonarista, com o tuíte do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), terceiro filho de Jair. "Se você morrer seus assassinos serão tratados por suspeitos, salvo se você for do PSOL, aí você coloca a culpa em quem você quiser, inclusive na PM. Eis o verdadeiro preconceito, a hipocrisia. 'Para os meus amigos tudo, aos demais a lei'", escreveu em sua conta no Twitter. Eduardo se antecipou em defender policiais.

Desde então, as investigações avançaram mas não chegaram a uma conclusão e ninguém foi responsabilizado. As descobertas apontam para uma intrincada trama que envolve, sim, policiais, milicianos e políticos, como mostra a excelente e precisa reportagem "A metástase", do jornalista Allan de Abreu, na Revista Piauí deste mês. Aliás, a imprensa teve papel central para o andamento das investigações: revelou outros interesses de pessoas muito próximas às apurações e pressionou o governo Temer a envolver a Polícia Federal e o Ministério Público Federal no caso. Raul Jungmann, ministro da Segurança Pública naquele momento, mandou que se investigasse a investigação.    

Não foi sensibilidade que motivou o silêncio do agora presidente Bolsonaro. Com o compromisso central frente a seus eleitores de diminuir a violência no país, o vazio deixado pelo então candidato significa muito. Eleito presidente, continua a não comentar a execução da vereadora. Demonstra, com essa postura, que interessa a seu governo combater a violência que vitima policiais e o que ele considera a família ideal, o que é correto. Mas as outras vidas também têm valor.

Em seu primeiro mês no Palácio do Planalto, Bolsonaro assinou decreto que amplia a posse de armas e quer a todo custo aprovar a lei que flexibiliza a "legítima defesa" para agentes de segurança ou não, segundo ele mesmo. Também quer que o Congresso apoie, no pacote anticrime de Moro, uma mudança que perdoa o assassinato, desde que o homicídio tenha sido cometido sob "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Não leva em consideração as pessoas que estarão mais expostas à violência letal com essas medidas.

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Mas Marielle se tornou um símbolo. Sua execução alcançou o mundo inteiro. Defensora dos direitos humanos, mulher negra, pobre e gay, sua morte impune representa a vulnerabilidade a que está submetida uma enorme parcela da população brasileira. O presidente Bolsonaro também precisa responder a essas pessoas.

É o que se espera de um Presidente da República: defender o direito à vida de todos os brasileiros. Ademais, esse grupo populacional é a maioria do nosso povo, de quem emana o poder nas democracias.

Mas Jair não parece se preocupar. Silenciou novamente ao não reconhecer a homenagem à Marielle que a campeã Mangueira fez desfilar no Sambódromo. Em vez disso, preferiu publicar um vídeo com cenas obscenas de um "golden shower" que aconteceu no carnaval de São Paulo, dando a entender que está preocupado com os valores da "família brasileira". Não se importou com os impactos sobre a indústria do carnaval, que movimentou R$ 6,7 bilhões, nem sobre a imagem do país no exterior, nem com os brasileiros que não se enquadram nessa "família".

Na sexta (3) que antecedeu o carnaval, outro silêncio estrondoso de Bolsonaro alcançou a população – inclusive parte de seus mais ferrenhos defensores. A absoluta frieza e falta de compaixão pela morte precoce de Arthur, neto de sete anos do ex-presidente Lula, fez ecoar um alerta: não é possível não se compadecer com tamanho sofrimento familiar. Qualquer ser humano é capaz de compreender a profundidade devastadora dessa dor. Mais ainda quem tem filhos, como é o caso do presidente.

Aí que entrou novamente seu terceiro rebento, Eduardo, para falar pelo pai.

Pegou mal. Não se pode desdenhar assim do sofrimento do outro. Até o pastor Silas Malafaia, de 60 anos, líder da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo e apoiador de Bolsonaro, criticou a postura do filho de Jair.  

 

Essa atitude – e o silêncio do presidente da República – reverberaram no carnaval. Os protestos contra os Bolsonaros retumbaram pelo Brasil inteiro. Diante disso, deve ter pensado o chefe do país, nada melhor do que a tática de polemizar com outro assunto para manter o silêncio sobre o que precisa ser falado. Assim se abafa também temas como Queiroz e candidatos laranjas.

Com a morte é diferente. Essa dor dilacerante nivela a todos nós, presidente. Ela faz com que as diferenças importem menos e o amor importe mais. É muito simples: se perdermos a capacidade de nos solidarizar com a perda e o intenso sofrimento do outro – seja a família do Lula, da Marielle, do Anderson, do Amarildo, do Boechat (sobre quem o senhor falou), dos policiais assassinados, dos jovens negros que morrem todos os dias no Brasil – não sobra nada. Sobre o nada, não é possível governar.

O discurso de ódio também se exprime nos silêncios – e se fortalece. É preciso também ter cuidado e delicadeza com o povo que você governa. 

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.