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Maria Carolina Trevisan

2018 foi o ano em que mais se evidenciou a violência contra a mulher

Maria Carolina Trevisan

31/12/2018 15h15

A violência contra a mulher é sabidamente silenciosa. Ocorre em casa, no trabalho, na escola, no consultório, na igreja, no culto. É sempre baseada em relações de poder, em que o homem se sente o mais forte. A sensação de impunidade é o que move essa certeza. No fundo, se trata da expressão mais doentia da covardia.

Mas 2018 foi marcado pelo aumento das denúncia públicas de agressões, assédios e violências de gênero. Mulheres enfrentaram o medo, a vergonha, o preconceito, os obstáculos sociais e puseram seus rostos feridos nas redes sociais. Outras expuseram cicatrizes profundas que, apagadas pelo tempo, se mantém marcadas na alma.

No Brasil, o ano começou no embalo do movimento #MeToo, uma onda de denúncias contra o poderoso da indústria cinematográfica Harvey Weinstein, que motivou mulheres brasileiras a denunciar publicamente seus agressores. Atrizes como Taís Araújo, Camila Pitanga, Monica Iozzi e Alinne de Moraes se juntaram ao coro contra agressores, em solidariedade a outras mulheres. Ao completar um ano em outubro, o movimento #MeToo teve como consequência o aumento de 50% das denúncias e alcançou celebridades como o ator Kevin Spacey. Por aqui, o #MeToo provocou a criação ou o fortalecimento de manifestações como #MulheresContraoAssedio e #MexeuComUmaMexeuComTodas.

Taís Araújo, defensora das mulheres negras na ONU / Foto: divulgação

Em março, a violência calou a vereadora Marielle Franco, uma das maiores defensoras de mulheres e de direitos humanos do Rio de Janeiro. Com sua luta, reconhecida no Brasil todo e no mundo, a execução de Marielle e Anderson Silva, que a guiava, funciona como um recado a quem tem a coragem de denunciar violações. A impunidade reforça a compreensão de que algumas vidas são "matáveis". Inclusive para o Estado, que não garante nem a segurança nem a responsabilização dos assassinos e mandantes. Quase oito meses depois, o caso ainda não teve conclusão e ninguém foi preso.

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Recorde de denúncias

Entre janeiro e agosto de 2018, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, o Ligue 180, administrado pelo Ministério dos Direitos Humanos, registrou quase 73 mil denúncias. Não quer dizer que há mais casos, mas que as pessoas estão mais dispostas a denunciar. 

Apesar do aumento e da visibilização desses crimes, mulheres que denunciam passam por outra violência: o julgamento de que a culpa é da vítimas. A Justiça deve respeitar o direito à defesa dos que são acusados de agressão. No entanto, é preciso considerar fortemente que a falta de responsabilização aumenta as chances de que outras mulheres sofram agressões. A linha é tênue.

A estudante Melissa Gentz, 22 anos, uma brasileira que mora nos Estados Unidos também denunciou as agressões do ex-namorado, Erick Bretz, 25, pelas redes sociais, em setembro. Foi motivada pelo desejo de estimular outras mulheres a saírem do ciclo de violência a que estão submetidas.

Reprodução do Instagram de @melissalgentz

Em situação similar, em outubro, a modelo Jéssica Aronis, 28 anos, revelou em seu Instagram, as agressões e a relação abusiva que sofria do então namorado, supostamente o ator João Gabriel Vasconcellos, de 32 anos. "Ele me mandava rastejar, dava socos e tapas no meu rosto", registrou o jornalista Paulo Sampaio, da Universa.

Reprodução do stories de @jearonis

Espancamento, medo e coragem

A atriz Cristiane Machado gravou imagens do marido, o empresário e ex-diplomata Sérgio Schiller Thompson-Flores, quando a agredia e a ameaçava. Levou as provas à polícia em outubro para acessar medidas protetivas. Como ele descumpriu uma medida protetiva, teve a prisão decretada em 31 de outubro. Em 18 de novembro, as imagens foram divulgadas no Fantástico, da TV Globo, emissora em que atriz trabalhou.

Os advogados de Thompson-Flores consideraram ilegal o mandado de prisão, afirmando que em setembro e outubro o casal conviveu em harmonia (!). Acusaram Cristiane de ter interesse financeiro com a denúncia. Ela afirma que, após as imagens se tornarem públicas, outras mulheres relataram terem sido vítimas da agressividade do ex-diplomata. Em 25 de novembro, Sergio Schiller Thompson-Flores se entregou à polícia.

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Denunciar e acessar a Lei Maria da Penha tem sido a principal forma de preservar a vida de mulheres. Mais recentemente, em 15 de dezembro, a advogada Luciana Sinzimbra, 26 anos, foi agredida pelo ex-namorado Victor Junqueira, 24 anos. Ela gravou os socos e agressões e denunciou Victor à delegacia da Mulher de Goiânia. "Você vai me matar desse jeito", dizia, com medo. As imagens viralizaram nas redes sociais. Luciana, que não estava preparada para a exposição, preferiu se fortalecer para poder ajudar outras mulheres. Reconheceu e agradeceu o carinho recebido. Ela está protegida por medidas cautelares.

Fé, desespero e crimes sexuais

João de Deus na Casa Dom Inácio, em Abadiânia (GO) / Foto: Alan Marques/Folhapress

O Brasil fecha o ano com um dos maiores escândalos sexuais do mundo. As denúncias de crimes sexuais envolvendo o médium João de Deus juntam graus impensáveis de perversão. Ele usava o desespero de quem está à beira da morte ou tem parentes nessa condição, em situação de extrema vulnerabilidade, por meio da fé, para abusar de mulheres e crianças.

Os crimes de João de Deus só vieram à tona depois que mulheres estrangeiras toparam denunciá-lo na televisão, durante o programa de Pedro Bial na TV Globo. Datam de décadas. São centenas. Chegam a tamanho grau de desumanidade que é possível questionar se os netos do médium são seus netos ou seus filhos, já que Dalva Teixeira, 49 anos, uma de suas filhas, o acusa de abuso sexual entre os 10 e 14 anos. João Teixeira de Faria, seu nome verdadeiro, é oficialmente pai de 11.

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Há 44 anos João de Deus realiza atendimentos espirituais a milhares de pessoas do mundo todo. Mais de 300 mulheres o denunciaram ao Ministério Público em cerca de um mês. O MP-GO criou uma força-tarefa para dar conta de tantas denúncias. Em 16 de dezembro, ele se entregou à polícia. O médium foi indiciado por violação sexual e estupro de vulnerável.

Casos de abuso sexual têm sido cada vez mais revelados e ocorrem também na igreja católica, o que fez com que o Papa Francisco declarasse que "a igreja nunca mais vai ignorar os abusos sexuais" antes de terminar o ano.

Ministra de Bolsonaro revela abusos que sofreu na infância. Foto: Rafael Carvalho/Governo de transição

Outro caso que mistura crença religiosa com agressões sexuais e denúncia pública é da própria ministra de Mulheres, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Damares Alves. Ela contou à repórter Camila Brandalise, da Universa, detalhes sobre os anos em que sofreu abuso sexual de dois pastores quando era criança.

Damares é também pastora evangélica e em seus cultos costuma recontar a história de estupros que sofreu na infância. Em um deles, admitiu que sentava nos bancos da frente do templo para tentar mostrar a alguém sua calcinha manchada de sangue. É um relato de cortar o coração. Ela tinha seis anos. "Eu estava dormindo no meu quarto, que era ao lado do de meus pais. Estava sonhando que segurava uma coisa quente e, quando, abri os olhos, estava segurando o pênis desse homem", relatou na entrevista. 

Sentindo-se culpada, a ministra contou que teve vontade de se matar aos 10. A mesma fé que fez com que confiasse nos religiosos, fez também com que Damares desistisse de tirar a própria vida ao ter uma visão de Jesus. Ela aponta a escola como um dos locais que poderia a ter protegido. Por isso, a educação sexual nas escolas será tão importante em sua gestão para evitar que meninas e meninos passem por tamanho sofrimento, junto com um sistema de Justiça preparado para receber denúncias como essa. E responsabilizar agressores.

Aprendemos muito em 2018.

    Sobre a autora

    Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

    Sobre o blog

    Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.