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Maria Carolina Trevisan

"Delação premiada é o atestado de incompetência do Estado", diz jornalista

Maria Carolina Trevisan

08/12/2018 12h50

Hugo Alconada Mon em oficina sobre jornalismo investigativo e cobertura de novos governos / Foto: FNPI

A corrupção vive nos porões do poder. Alimenta-se de impunidade e hipocrisia. Opera na escuridão. Mas é sensível às campanhas políticas. No período pré-eleitoral a corrupção se intensifica. Compram-se interesses futuros. Promete-se o impossível. Nessa corrida, quem tem mais dinheiro larga na frente.

Atento a esses movimentos, o advogado e jornalista Hugo Alconada Mon, 44 anos, secretário de redação do jornal argentino La Nación e um dos maiores especialistas do mundo na cobertura de corrupção, lavagem de dinheiro e fraudes corporativas, descobriu o valor de uma campanha presidencial na Argentina: são necessários 100 milhões de dólares para chegar à Casa Rosada. Alconada apurou também que o atual presidente argentino, Mauricio Macri, pedia a empresários 1% de seus patrimônios. "Quero 1% do seu patrimônio para financiar minha campanha. Você sabe que se ganho, normalizaremos o país e os 99% restantes do seu patrimônio vão valer muito mais", disse Macri, em 2014, aos 10 empresários mais ricos daquele país.

A cena está descrita em seu livro mais recente. "La raiz de todos los males: cómo el poder montó un sistema para la corrupción y la impunidad en Argentina" (editora Planeta, 2018), que foi lançado em agosto, na Argentina. Desde então, a obra está em primeiro lugar entre os livros de não-ficção mais vendidos, chegou à terceira edição e já vendeu mais de 36 mil exemplares. Resume 20 anos de investigações. Nesse tempo, verificou e checou as informações por meios distintos, com advogados, pesquisadores e editores e reescreveu o livro seis vezes. É autor de outras seis obras sobre corrupção.

O livro conta também como a compra de jornalistas e de meios de comunicação é parte do sistema de corrupção e consome recursos das campanhas eleitorais. "Na prática, muitos jornalistas atuam como agentes de propaganda ou calam quando algo dos porões sai à superfície", escreve. No relato, o autor conta como um jornalista de televisão cobra de um ministro uma mensalidade para não publicar matérias contrárias ao governo. Ou como outro jornalista da TV pediu 42 mil dólares para entrevistar um candidato na campanha de 2015.

Alconada é um jornalista obcecado pela informação precisa. As denúncias que fez em suas reportagens levaram à prisão Amado Boudou, ex-vice-presidente de Cristina Fernández de Kirchner, Cristóbal López, um dos empresários mais ricos da Argentina e pode levar a ex-presidente argentina, Cristina Fernández de Kirchner, a julgamento por lavagem de ativos.

Ele observa de perto a Operação Lava Jato e o uso da delação premiada. Entrevistou o procurador Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sérgio Moro, a quem faz críticas pela decisão de aceitar o Ministério da Justiça do governo Bolsonaro. "A decisão pessoal e egoísta de Moro debilitou a imagem da Lava Jato. Põe em dúvida se sua investigação foi judicial ou política", afirma Alconada.

Atualmente, Hugo Alconada Mon é secretário de redação do jornal argentino La Nación e colunista do New York Times em espanhol. Foi correspondente nos Estados Unidos onde cobriu a Casa Branca, é membro da equipe que difundiu o Wikileaks (2010) e do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ). Ganhou os prêmios ADEPA (2012 y 2016), "Pedro Joaquín Chamorro" (Sociedad Interamericana de Prensa, 2009), Transparência Internacional/IPYS (2014), FOPEA (2015), Santa Clara de Asís (2017) e Konex de Platino (2017). Em 2018 recebeu o prestigioso Moors Cabot, da Universidade de Columbia.

No Brasil para ministrar uma oficina de jornalismo investigativo e cobertura de novos governos – iniciativa da Fundação García Marquez para o Novo Jornalismo com apoio do CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina) – o jornalista falou à coluna. Leia a entrevista completa a seguir.

UOL – Que papel tem o jornalismo investigativo no combate à corrupção?
Hugo Alconada Mon –
 O mesmo de sempre: informar. É tratar de reconstruir o que realmente acontece, escapar das declarações e ir aos fatos. Jornalismo é isso.  

No seu livro mais recente há um capítulo sobre a participação de jornalistas no sistema de corrupção. Como você descobriu o esquema?
Foi sem querer. Descobri ao investigar quanto os candidatos gastam em uma campanha presidencial. Quando perguntei, a primeira resposta foi: – "para a Presidência é preciso 100 milhões de dólares." Então eu disse: – "Mas em que se gasta tudo isso para ser presidente?". E a resposta que me deram foi que com santinhos de campanha "e com vocês, com a compra de jornalistas". Um dos principais gastos da campanha eleitoral é a compra de jornalistas e de meios de comunicação. Como vou escrever sobre outra coisa? Fui perguntar a equipes de outras campanhas se sabiam disso. E todos me olhavam: – "mas você é idiota? Não sabia? Vocês são caríssimos. Temos que comprá-los." Continuo investigando. Há informações que ainda não publiquei porque não terminei mas que falam sobre como a Odebrecht na Argentina comprou jornalistas para se proteger. Tanto para fazer cobertura positiva ou para não tocar na pauta. Estourou a Lava Jato? Vamos falar de futebol. Foi uma confusão na Argentina. 

O que aconteceu?
Muita gente ficou irritada comigo. Como se eu fosse um traidor. O que também aconteceu foi uma enorme hipocrisia. Muitos jornalistas se diziam surpreendidos: "Não. É sério??? Não acredito. Me conta mais, Hugo!". Todos negaram ter participado do esquema.

A corrupção é cultural?
Sim. Na verdade, para esse livro acabei entrevistando o Jose Ugaz, o juiz da investigação peruana contra Fujimori e Montesinos, [Sergio] Moro, ex-juiz da Lava Jato, [Deltan] Dallagnol, procurador da Lava Jato e Antonio di Pietro, da Operação Mãos Limpas, na Itália. Os quatro, separadamente, sem que eu induzisse a resposta com a minha pergunta, disseram o mesmo: apenas quando a sociedade em um determinado momento diz basta isso pode mudar. Na verdade, o que acontece com muitos argentinos é que quando há um escândalo de corrupção dizem: – "e por que se ofendem se todo mundo sabia?". Terminemos com a hipocrisia.

Uma das consequências do combate à corrupção é que o poder judiciário se fortalece muito. Isso é um problema?
Depende. Se existir um verdadeiro controle cruzado, não. O problema é quando algum dos três poderes sai de controle e toma uma preponderância. Se o poder executivo, em um sistema hiperpresidencialista, ou o poder judiciário, assumem faculdades que não lhes correspondem pode acabar tomando, na prática, decisões executivas, por exemplo. Acredito que quando existe um verdadeiro sistema de check and balances, isso não acontece. No caso do Brasil, há um poder judiciário demasiado forte, com uma procuração demasiado forte, como também aconteceu na Colômbia. Na Argentina o que temos é um poder judiciário muito fraco, dependente do poder político, tanto do legislativo quanto do executivo.

Como você avalia a decisão do ex-juiz Sergio Moro de aceitar o ministério da Justiça do governo Bolsonaro?
A atitude de Moro foi muito mal vista de fora. A decisão pessoal e egoísta dele debilitou a imagem da Lava Jato como investigação. O tempo dirá e ele pode até ser um bom ministro. Mas, para mim, é uma opinião pessoal, foi terrível. Acabou por botar em dúvida se sua investigação foi judicial ou política. Reforça o fantasma de perseguição política. Se realmente fosse uma investigação judicial equânime, independente, imparcial, não deveria ter aceitado a proposta de Bolsonaro. Creio que caiu na mesma tentação que tiveram os juizes como Antonio de Pietro na Itália, que depois da Mãos Limpas, entrou para a política. E isso foi um erro.

A Argentina adotou a "figura do arrependido" como estratégia de combate à corrupção. É um tipo de delação premiada. Como vê esse mecanismo?
Como uma ferramenta detestável mas necessária. Como advogado eu diria: tomara que não precisemos utilizar. Porque a delação premiada é a admissão da incompetência do Estado para investigar. Eu, Estado, admito que não sei investigar, não pude investigar, não consigo chegar aos culpados. Por isso tenho que negociar com um culpado que me entregue outro culpado. E isso, na verdade, é uma negociação público-privada que demonstra que eu não sei investigar e que a única forma de chegar aos culpados é desse modo. Então, seria melhor se não tivéssemos. Mas ao mesmo tempo, é necessária. São as regras do jogo.

É uma ferramenta que pode ser usada de maneira injusta?
Há uma contradição. Por exemplo, outro dia havia uma nota na Folha de S.Paulo, na primeira página, sobre uma mulher negra, pobre, condenada a oito anos de prisão – oito anos prisioneira! – porque tinha roubado fraldas de um supermercado. Na mesma semana, o doleiro Alberto Youssef, delinquente que roubou mais de 100 milhões de dólares, foi condenado a três anos de prisão porque acessou o regime de delação premiada e conseguiu prisão domiciliar, no seu domicílio, que era uma cobertura com piscina olímpica. Ao mesmo tempo, se você não tivesse negociado com Youssef, teríamos chegado a Marcelo Odebrecht? Nunca. Jamais. Eu já vi Marcelo Odebrecht em fóruns hemisféricos, sentado em um sofá, conversando com uma pessoa, veio um presidente, um dos cinco grandes da América Latina, e Odebrecht nem sequer se levantou por respeito à investidura presidencial. Então, a única forma de chegar a um homem mais poderoso que um presidente é se tem alguém dentro que diz como foram feitas as coisas. Não vejo graça que pessoas que ameaçaram a minha família fiquem impunes. Mas tenho claro que só se esses foragidos falarem chegaremos aos maiores.

Você acredita que a privação de liberdade pode diminuir a criminalidade?
Em determinadas situações, não. Como diz um economista norte-americano, que ganhou o prêmio Nobel de Economia Gary S. Becker, quando se trata de crimes do colarinho branco, os delinquentes fazem um cálculo racional sobre as probabilidades que têm de ficarem presos e serem condenados. Quais são as probabilidades que me procurem? O que afirma Becker é que quanto maior a complexidade do delito, maior o cálculo racional. Ou seja, há um cálculo para os crimes de colarinho branco: vou ficar impune ou não? Nesse tipo de crime, a figura do arrependido ajuda. Se você fosse dona de uma empreiteira hoje, faria suborno neste momento no Brasil? Não. Porque hoje tem mais chance de ser presa que há quatro anos. Mas se, ao contrário, seus filhos passam fome, nada importa, você vai roubar esta noite porque precisa que comam. Mudou a situação. É paradoxo, mas necessário.

Há alguma relação entre o combate à corrupção e a eleição de governos conservadores?
Na verdade, não sei. Não sei se é fruto das investigações judiciais ou se é o desgaste do próprio governo, que já mostrava um esgotamento – e esses escândalos de corrupção podem ter sido decisivos ou apenas um fator a mais no cansaço dos eleitores. O kirchnerismo caiu mais por desgaste deles mesmos do que pelos escândalos de corrupção.

Nessa lógica, que tipo de governo pode vir depois de políticos mais à direita?
Pode-se correr o risco de um aprofundamento e seguir com alguém pior que Trump, ou o pêndulo vai se equiparar ao outro lado, com a consciência de que se chegou muito longe e é necessário centralizar isso. No Brasil creio que vai acontecer o mesmo: depois de Bolsonaro, que nem começou, ou se volta para a paz ou se vai mais adiante. No caso da Argentina estamos vendo isso. Kirchner se foi, Macri cometeu muitos erros e isso faz com que Cristina possa voltar ao poder.

Em seu livro, você diz que o financiamento eleitoral é o pecado original da política. É nesse momento que a corrupção se revela?
É como o ovo da serpente: se eu, no caso da Argentina, necessito 100 milhões de dólares para ser presidente, e se jogo limpo e cumpro todas as leis, nem louco, nem nos sonhos mais loucos, nem vendendo um rim, chego a 100 milhões de dólares. Tenho que passar o chapéu pelos empresários que me darão dinheiro não contabilizado. Vão me dar porque estão encantados com minhas ideias ou porque querem ter depois o número do meu telefone para ligar e conseguir um negócio? Então, talvez o financiamento eleitoral e o caixa 2 não sejam um delito em si. Mas é o ovo da serpente e te leva a isso. Por exemplo, o Marcelo Odebrecht dava dinheiro de caixa 2. E depois telefonava. Para quê? Para tomar um uísque?

Você comentou que está exausto de trabalhar com esse tema da corrupção. O que gostaria de fazer? 
Não sei. Esse é só um dos problemas. Estou cansado de fazer investigações porque estou todos os dias lidando com o pior do ser humano, com as baixezas, com os piores delinquentes. Uma coisa é quando você rouba por necessidade e outra coisa é roubar por ganância. Eu gostaria de oxigenar a cabeça, lidar com o melhor, com exemplos de dignidade humana, de superação, de esforço.  

Mas não é boa a sensação de mudar a vida das pessoas? 
Sim, mas são poucas as que saem bem. No meio tempo tem o dia a dia. É o mesmo que deve sentir o policial que recebe as vítimas diariamente, ou o médico de hospital público. Acabei de publicar esse livro, que me tomou 20 anos de trabalho e foi como reconstruir toda a porcaria desse período. Mas, depois das férias em janeiro, talvez limpe a cabeça e comece de novo.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.