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Maria Carolina Trevisan

Morte de mestre Moa não é "caso isolado"; é assassinato simbólico de muitos

Maria Carolina Trevisan

13/10/2018 11h54

Mestre Moa do Katendê – Foto: Reprodução Facebook

O assassinato de mestre Moa do Katendê, 63, não foi um "crime comum". Foi baseado na disputa política e motivado pelo ódio fomentado pelo candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL). Tem as mãos sujas de sangue quem corroborou com esse discurso, quem relativizou a violência incitada nessas falas e nesses gestos e quem se omitiu de barrar a intolerância.

"Quando morre um capoeira, morto assim à traição, fica íngreme a ladeira e mais pesado o caixão, mesmo que a gente não queira, trinca o dente e o coração, Moa, nem de brincadeira vamos te esquecer, irmão. Queremos paz para o povo negro. Queremos paz para os guerreiros da liberdade, viva Moa, viva mestre Moa", cantou Chico Cesar, em uma dolorida homenagem.

Como as instâncias democráticas não barraram a violência? O Supremo Tribunal Federal (STF) teve chance de classificar como racismo a atribuição que Bolsonaro deu aos quilombolas, quando disse, "eu fui num quilombola (sic) em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas. Afrodescendentes de quilombos não servem nem pra procriar", no Clube A Hebraica, em abril, arrancando risos da plateia. Em vez disso, em setembro, o Supremo entendeu que o capitão reformado estava exercendo "liberdade de expressão".

"Apesar do erro das declarações, não me parece que a conduta teria extrapolado os limites para um discurso de ódio, de incitação ao racismo, de xenofobismo", afirmou o ministro Alexandre de Moraes. Ficou por isso mesmo. A decisão – depois da execução da vereadora negra Marielle Franco – serviu para naturalizar ainda mais a violência racial. O Supremo enviou um recado.

"Como é que a nossa Justiça deixa que um candidato a presidência formule um conceito racista e isso seja validado? Isso é mais do que afirmar a sentença de escravidão e de genocídio do povo preto", afirma a mestra de capoeira angola Dandara Baldez, mestre em Dança pela UFBA.

Também em setembro, no Acre, diante de seus eleitores, Jair Bolsonaro fingiu segurar uma arma de grande porte e levou seus seguidores ao delírio ao declarar: "Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre. Vamos botar esses picaretas para correr do Acre. Já que gostam tanto da Venezuela, essa turma tem que ir para lá. Só que lá não tem nem mortadela. Vão ter que comer capim mesmo", afirmou o candidato.

Reforçou o uso da agressividade, desumanizou eleitores contrários a ele. Nesse episódio as instituições tiveram a oportunidade de delimitar o que é liberdade de expressão e o que é incitação ao ódio. O que é aceitável e o que não pode acontecer. O ministro Ricardo Lewandowisk pediu opinião à procurado geral da República, Raquel Dodge, que não viu injúria eleitoral no caso. "Não há referência a pessoas. Personificar 'petralhada', expressão usada pelo noticiado, configura elastecimento da responsabilidade penal por analogia ou por extensão, o que é absolutamente incompatível com o direito penal", afirmou a procuradora. Pediu esclarecimentos ao candidato do PSL, que afirmou ter sido uma "brincadeira".

As sinalizações ambíguas do STF e da PGR, que deveriam atuar na defesa da Constituição – e portanto, a favor da vida -, abriram espaço para todo tipo de manifestação violenta de eleitores.

Poucos dias depois, Bolsonaro foi esfaqueado em Juiz de Fora (MG). Ficou 23 dias internado. Desde então usa sua condição médica para evitar os debates. Nesta quinta-feira (11), concedeu entrevista à rádio CBN. Ao ser questionado sobre sua responsabilidade acerca das atitudes violentas de seus eleitores, como as 12 facadas em mestre Moa pelas costas, o candidato do PSL se posicionou como vítima. "Quem levou a facada fui eu. Estou vivo por milagre." Porém, cometeu um ato falho e disse: "Eu sou vítima daquilo que eu prego." 

Na mesma entrevista à CBN, quando respondeu sobre ter pedido o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, em 1999, relativizou o próprio discurso, disse que a declaração é antiga e que o emprego do verbo "fuzilar" foi apenas uma metáfora.

"Metáfora" que ele repete com demasiada frequência e nenhuma responsabilidade ou compromisso. Sua postura influencia seus eleitores. Apenas nesta semana, a Agência Pública contou mais de 50 casos de violência partindo de bolsonaristas.

Mestre Moa do Katendê e todos os brasileiros que ele representa

Homenagem a mestre Moa do Katandê no Pelourinho. Foto: Denny Neves

Sobre o assassinato de mestre Moa, Jair Bolsonaro primeiro disse que não controlava seus eleitores, depois condenou a violência e por fim afirmou dispensar os votos de quem comete violência em seu nome. Mas o candidato não foi veemente. Não pensou em se solidarizar com a família, telefonar ou expressar pesar.

A morte do mestre Moa tem muitos significados e dimensões: era mestre de capoeira, homem negro de forte atuação nas favelas, nordestino, liderança comunitária e do movimento negro, educador de muitas crianças e jovens, compositor, referência cultural, fundador do Afoxé Badauê, homem de axé, pai de seis. São muitos os brasileiros que se identificam com Moa.

"O assassinato brutal de mestre Moa com 12 facadas ao revelar a um bolsonarista que votou no PT, reflete, por um lado, a face radical de um bolsonarismo civil, ou seja, uma intolerância radical com aquilo que expressa o que foi a agenda democrática nos anos 1980 e 1990: o direito das minorias, a questão das minorias negras, a questão da diferença e das práticas da cultura popular", diz o doutor em Sociologia pela USP Matheus Gato de Jesus, que atualmente desenvolve pesquisa de pós doutorado em Relações Raciais.

"Tem nessa morte uma reação a esse percurso de construção da democracia, que envolveu o reconhecimento de que as pessoas são iguais mas que as diferenças devem ser respeitadas."

É uma recusa civil do que foi o percurso da democracia até aqui. "Tem um aspecto mais geral também. Ele tomou 12 facadas depois de ter dito qual era o seu voto. O voto de algumas camadas, sobretudo as camadas populares e negras, não é respeitado", afirma o sociólogo. Ele lembra que nas eleições de 2014 o candidato derrotado, Aécio Neves (PSDB), demonstrou descontentamento com o que mostrou as urnas e desqualificou o processo eleitoral. Naquele momento, como agora, foi o Nordeste que mais votou no Partido dos Trabalhadores. Não é por acaso que o assassinato tenha ocorrido nessa região.

No pleito deste ano, antes mesmo do resultado, Jair Bolsonaro desacreditou o processo democrático e colocou dúvida sobre as urnas. "A ideia de que o brasileiro não sabe votar é dirigida à presença dos interesses populares no sistema político", explica Matheus. Manifestar voto e receber 12 facadas é dizer que determinados grupos não têm o direito de expressar suas posições políticas nesse sistema. "A morte de mestre Moa no campo civil assim como a morte de Marielle Franco, que era uma parlamentar, revelam o que são as bordas da República. Essas duas mortes representam uma recusa em escalas muito diferentes do que significa a presença de interesses populares de negros, mulheres e pobres no sistema político", afirma o sociólogo.

Uma procissão de berimbaus

Foto: acervo Iphan

Tombar um mestre de capoeira de maneira tão violenta tem ainda outros significados. A capoeira é um símbolo da resistência, da solidariedade e da construção da identidade negra no Brasil. Nasceu no período escravista do país. Por isso, no funeral de mestre Moa havia uma procissão de berimbaus. No toque triste, outros mestres demarcaram a resistência dessa luta, que também é dança, que também é jogo, que também é arte.

"O papel de um mestre de capoeira é de um educador, de uma liderança, de uma pessoa que se dedicou a um conhecimento, a uma sabedoria sobre técnica, filosofia e história", explica a professora Amélia Conrado, angoleira e doutora na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA). "Quando ele parte, significa que você perde a sabedoria que forma outras pessoas de geração em geração, que transmite conhecimento. É um patrimônio imaterial."

Quando se assassina um mestre de capoeira, se fere também um movimento, um pensamento, a memória. "Mata-se a possibilidade de a arte e a cultura poderem colaborar para a transformação das questões sociais, a legitimação de convivência com as diferenças, de respeito à diversidade", afirma Denny Neves, professor mestre da Escola de Dança da UFBA.

A capoeira e seus mestres são considerados "patrimônio cultural imaterial e da humanidade" pela Unesco e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan). Como tal devem ter preservados e salvaguardados seus ensinamentos. "É um dos maiores símbolos da identidade brasileira e está presente em todo território nacional, além de praticada em mais de 160 países, em todos os continentes", diz o Iphan.

Foto: acervo Iphan

Não adianta calar mestres de capoeira para apagar sua memória. O legado de mestre Moa sobrevive ao tempo e à violência, pela voz de seus discípulos, de seus alunos e das comunidades por onde passou. Moa vive.

De um lado a barbárie, de outro a crescente representatividade negra

Se quase metade dos eleitores do Brasil está se sentindo ameaçada, há uma força contrária que segue firme e crescendo. O movimento negro é um dos movimentos sociais mais antigos e fortes do Brasil. Está presente em toda a história do país. Essa resistência tem chegado aos níveis de representatividade política, mesmo que mais lentamente do que seria desejável.

Em 2018, 122 candidatos autodeclarados negros (pretos e pardos) foram eleitos. Em 2014, foram 102. São Paulo elegeu a primeira deputada estadual negra e transgênera, a Érica Malunguinho (PSOL). E a Bahia, que Arnaldo Antunes chamou de "coração do Brasil", elegeu Olívia Santana (PCdoB), primeira mulher negra a assumir um cargo na Assembleia Legislativa da Bahia. "Queremos ser o comum, não o inusitado", disse Olívia.

Ao mesmo tempo, o deputado estadual mais votado do Rio de Janeiro, Rodrigo Amorim (PSL), é também o mesmo que quebrou a placa em homenagem a Marielle, celebrando uma segunda morte da vereadora executada e cujo crime nunca foi elucidado. A macabra e sádica atitude aconteceu em comício do candidato ao governo do Rio mais bem votado no primeiro turno, o juiz Wilson Witzel (PSC).

"A questão é que o bolsonarismo joga com duas faces: é extremamente institucional, na medida em que existe uma campanha política e as regras do jogo estão presentes; mas Bolsonaro se coloca como um candidato que tenta convencer ao dizer que é capaz de romper com a institucionalização. Sua ideia força é: estou dentro das regras do jogo enquanto elas me favorecem, se não me favorecerem, não tenho pudor de ultrapassá-las", analisa o sociólogo Matheus Gato de Jesus.

Para ele, a radicalização à esquerda não tem a mesma intensidade, uma vez que a violência não é um recurso para a esquerda neste momento.

"Um dos elementos novos que o bolsonarismo coloca é que a violência é um instrumento da política de novo. A eleição de Bolsonaro coloca as regras do jogo democrático em xeque no Brasil. O candidato não diz se, ao ser eleito, vai seguir as regras do jogo. Sua base civil claramente não segue." 

Por isso, a resiliência da população negra é o que inspira. Por um Brasil mais justo em tempos tão duros.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.