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Maria Carolina Trevisan

Intimidação sobre Supremo é resultado de atuação inconsistente

Maria Carolina Trevisan

04/04/2018 09h23

A manifestação política do comandante-geral do Exército, Eduardo Villas Boas, às vésperas do julgamento no STF do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, indica que o a Suprema Corte está intimidada. Na noite desta terça-feira (4), o general agregou ainda mais pressão sobre os ministros ao dizer que "repudia a impunidade". Insinuou, portanto, que se posiciona a favor da prisão após segunda instância.

As crescentes tentativas de constranger os ministros demonstram a instabilidade do STF. Esse quadro é resultado da condução de suas ações mais recentes: o país tem assistido – via jornais impressos e TV – a embates e contradições que denotam uma enorme falta de coesão. O último ato de sua presidente, Cármen Lúcia, ao propor votar primeiro o HC de Lula antes de rever a jurisprudência da prisão em segunda instância agravou esse desequilíbrio.

"Já não há mais saída que não seja desastrosa para o próprio tribunal. O STF não tem mais condições de sinalizar imparcialidade e integridade, independentemente do que decida. Degradou-se tanto que o debate hermenêutico tornou-se mero verniz", afirma o professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes, doutor em direito e ciência política.

"Nem que o STF tome uma decisão analiticamente sofisticada, com argumentos jurídicos densos e razoáveis, poderá afastar a imagem de casuísmo e voluntarismo. Afinal, a reputação de rigor jurídico não se constrói a partir de caso isolado, mas ao longo do tempo, numa sucessão de casos. E o que o STF tem demonstrado ao longo do tempo não inspira respeito", avalia Hübner.

Lula em Curitiba Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

Inconsistência fragiliza credibilidade do STF

Juristas dizem que faltou consistência decisória ao Supremo. "Há uma atuação razoavelmente voluntarista e pouco criteriosa do tribunal do ponto de vista da necessidade de deferência à ordem constitucional, ao Legislativo e à representatividade do voto", alerta a professora de direito constitucional da PUC-SP Adriana Ancona de Faria, cuja tese de doutorado tratou do "ativismo judicial" do Supremo.

"A atuação do Supremo tem sido conjuntural e isso é muito ruim", afirma Adriana.

Ou seja, o tribunal não pode ser mais um ator no processo e na "fogueira das paixões políticas", como se referiu o ministro Luís Roberto Barroso ao momento atual. Seu papel é defender a Constituição. Mas nunca esteve tão pressionado. "Hoje existe essa condição de dúvida sobre o protagonismo e a atuação do STF. É preciso manter um distanciamento para proteger a ordem constituída", alerta Adriana.

Prisão em segunda instância x presunção de inocência

condenação em segunda instância do ex-presidente Lula, em 18 de janeiro, devolveu à pauta a discussão sobre a legitimidade de uma votação de fevereiro de 2016, em que o Supremo decidiu por 6 votos a 5 que a sentença deve começar a ser cumprida depois de um tribunal referendar a decisão de primeira instância. Em outras palavras, a nova jurisprudência definiu, em decisão apertada, a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado.

Seis ministros votaram a favor da execução provisória da pena: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia.

Cinco foram contra e defenderam que o réu recorra em liberdade até julgado o último recurso: Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello.

"Na minha opinião, o Supremo deu uma pirueta de interpretação constitucional. Uma pirueta hermenêutica", afirma o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Azevedo Marques Neto.

De acordo com a Constituição brasileira, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; a Constituição também garante que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. "Independentemente de quem seja o réu, não me convenço da interpretação que o Supremo quer dar – ou deu já – e acho uma forçação de barra", afirma o professor Floriano. "O Supremo interpretou um dispositivo desdizendo o texto da Constituição. Isso é muito perigoso no plano jurídico", alerta.

A condenação de Lula pelo TRF-4, pressionou o STF a se posicionar. Primeiro, o ministro Marco Aurélio disse não acreditar na prisão do ex-presidente antes do fim do processo, sob custo de "incendiar o país" e ameaçar a "paz social". Classificou como "extravagante jurisprudência" a votação apertada que mudou o entendimento do Supremo sobre a execução provisória da pena.

Contrariando o colega, dias depois, a ministra Cármen Lúcia declarou, em jantar com empresários e jornalistas, que revisar a prisão em segunda instância seria, neste momento, "apequenar muito o Supremo". E jogou mais fogo na fogueira. 

As divergências públicas entre os ministros se seguiram. Luis Roberto Barroso publicou um artigo na Folha de S.Paulo, que assinou com o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogério Schietti, em que defende justamente o oposto de Marco Aurélio: afirma que "voltar atrás nessa matéria traz pouco benefício para a Justiça e grande incentivo à continuidade dos esquemas de corrupção".

Mas para o professor Floriano Azevedo Marques Neto, não importa que esse percentual seja relativamente pequeno. "A existência de meio por cento de brasileiros inocentes condenados é o suficiente" para que o STF não adote essa regra, ressalta. "A Constituição já disse."

Dias depois, o ministro Ricardo Levandowski afirmou, em artigo na Folha de S.Paulo, que a prisão antes do trânsito em julgado fere a "presunção de inocência", uma das mais importantes salvaguardas da Constituição. "Afigura-se até compreensível que alguns magistrados queiram flexibilizar essa tradicional garantia para combater a corrupção endêmica que assola o país. Nem sempre emprestam, todavia, a mesma ênfase a outros problemas igualmente graves", escreveu. O ministro chamou a atenção para o risco de acontecerem erros judiciais na primeira e na segunda instâncias.

"Se vingar essa ideia de que a pena pode ser provisoriamente executada, teremos um agravamento do caos que já existe hoje no sistema prisional", diz o advogado Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

Maronna se refere ao número já elevado de presos provisórios (40% da população carcerária) nos presídios superlotados do Brasil. "O próprio STF considera o sistema prisional um 'Estado de Coisas Inconstitucional' por causa das violações sistemáticas de direitos a que está submetida essa população", completa. Não se trata de pouca gente. Há 700 mil pessoas presas no país.

O que a país deve assistir hoje no julgamento do HC de Lula é uma Suprema Corte em situação de "sinuca de bico". "Se conceder [o Habeas Corpus], vai ser lido como rendição ao lulismo, se não conceder vai ser lido como rendição ao antipetismo, ao MP, ao abaixo-assinado de juízes etc", afirma Conrado Hübner.

"Ter discricionariedade de agenda requer competência política. O STF colhe o que plantou."

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.