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Maria Carolina Trevisan

"É fundamental a descriminalização das drogas", diz ex-ministro da Justiça

Maria Carolina Trevisan

02/03/2018 09h27

A intervenção federal no Rio de Janeiro atua na desconstrução da democracia, tem caráter político e é inócua em relação à violência. Essa é a avaliação do grupo de ex-ministros e especialistas em violência reunidos na manhã de quinta-feira (1), em São Paulo, por iniciativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Os participantes apontaram que o combate ao crime organizado só pode funcionar se houver mudança estrutural na política de drogas, no sentido da descriminalização, e uma reestruturação do sistema de justiça e penal.

Na mesa para discutir a intervenção federal no Rio estavam José Viegas Filho (Ex-ministro da Defesa), Tadeu Valadares (Embaixador, Ex-diretor do departamento de direitos Humanos MRE),  Julita Lemgruber (Ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário e ex-ouvidora de polícia do Estado do Rio de Janeiro), Claudio Lembo (Ex- governador de São Paulo), José Gregori (Ex- ministro da Justiça) e José Carlos Dias (Ex- ministro da Justiça). O ex-secretário de Estado de Direitos Humanos Paulo Sergio Pinheiro, um dos idealizadores do encontro, mediou a conversa.

Ex-ministros e especialistas em segurança pública discutem intervenção no Rio. Foto: José Benigno Jr

Decreto

Todos os participantes reconhecem a situação caótica em que se encontra o Rio de Janeiro: seus principais governantes estão presos e a anomia – que pode ser uma das justificativas para a uma medida drástica como a intervenção – levou o estado a um processo profundo de deteorização. O que, no entanto, não justifica nenhum tipo de abuso ou perda de direitos. A suspensão de algumas garantias individuais está prevista em situações de Estado de Defesa e Estado de Sítio. Mas estão preservadas em caso de intervenção federal.

Em termos jurídicos, o decreto é uma aberração, informaram os participantes da reunião. O ex-governador de São Paulo Claudio Lembo, doutor em Direito, classificou o decreto da intervenção como "totalmente equivocado, absolutamente esdrúxulo e deformado". Apontou que tem uma função política muito clara. "Só os ingênuos não percebem que a próxima caminhada não será uma mera intervenção na área de segurança do Rio de Janeiro. Vai ser o Estado de Defesa e depois o Estado de Sítio", alertou Lembo. "Nós estamos numa caminhada amarga para o futuro do Brasil democrático."

O embaixador Tadeu Valadares, ex-diretor do departamento de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores do governo FHC afirmou que "a intervenção federal está destinada ao fracasso". "Muito mais do mesmo será operacionalizado no corpo da população mais pobre. Muito mais do muito que ja foi feito e que é sabidamente ineficaz."

Direitos Humanos

Uma situação extrema com respostas extraordinárias pode facilmente resvalar para arbitrariedades. Temer afirmou, no dia 16 de janeiro, ao comunicar o decreto, que "não podemos aceitar passivamente a morte de inocentes", mas as medidas que vem adotando colocam como suspeitos todos os moradores das favelas do Rio. Milhões de pessoas. A maioria pobres e negros. Tornaram-se alvo do Exército. Na Vila Kennedy, os moradores chegaram a ser fichados e fotografados pelos soldados, medida autoritária.

"Essa intervenção é uma violência ao respeito aos direitos individuais. Temos que nos unir, não só para salvar as pessoas que são vítimas da violência, mas para garantir que o postulado dos direitos humanos continue a ser a bandeira que nós empunhamos", alerta o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que atuou na defesa de presos políticos durante a ditadura militar.

Os participantes apontaram a organização da sociedade civil como um dos meios de vigilar a atuação das Forças Armadas e denunciar abusos e violações de direitos humanos.

"Para os direitos humanos nunca existe o último problema, sempre o penúltimo", diz José Gregori o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Direitos Humanos do governo FHC.

Gregori diz que uma das atitudes imediatas que a sociedade civil deveria cobrar do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, requerer o fim da norma que requere que o cidadão se identifique para a autoridade policial.

"É algo que não vai conferir nenhuma vantagem operacional para as forças de segurança e tem tudo a ver com um indício, para quem a sofre, de que isso pode ser uma tendência ao apartheid", afirma Gregori.  

De fato, a experiência de anos com as operações do Exército nas favelas do Rio fez com que os moradores se organizassem para prevenir e fiscalizar eventuais abusos. Diversas organizações surgiram, como Redes da Maré, Maré Vive , Favela em Pauta, entre muitas outras. A juventude ganhou confiança e compreendeu melhor o sentido da cidadania. Agora, o CESeC – Centro de Estudos de Segurança e Cidadania está montando um observatório e organizações comunitárias estão estruturando uma "Comissão da Verdade das Favelas" em um importante sinal de que a sociedade civil não aceitará violações.

O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, enviou uma mensagem aos participantes e disse: "É neste equilíbrio instável que teremos que navegar. Tomara forças políticas democráticas, com sentimento social e sensíveis às realidades econômicas daqui e do mundo, se organizem para preservar as liberdades e os direitos das pessoas, pelos quais sempre lutamos".

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Descriminalização das drogas como solução

Só em janeiro deste ano, a polícia do Rio matou 154 pessoas. É o maior número registrado nos últimos 15 anos. Um aumento de 57,1% em relação a janeiro de 2017, segundo relatório Instituto de Segurança Pública. "No ano passado, o Rio de Janeiro ultrapassou a marca dos 1.000 mortos pela polícia", afirma Julita Lemgruber, ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário e ex-ouvidora de polícia do Estado do Rio de Janeiro.

"O que a gente não pode perder de vista é o fato de que nós enquanto sociedade escolhemos combater com violência o varejo do tráfico que acontece nas áreas pobres da cidade. A única política pública que chega [às favelas] é o fuzil apontado para a cabeça do morador", diz Julita.

Os convidados foram unânimes em apontar a necessidade de reformulação da lei de drogas – para descriminalizar e não para recrudescer, como sugeriu o governo – e uma reforma no sistema jurídico e penal do país. "O que nós poderíamos esperar era uma reforma profunda que não envolvesse uma intervenção. Precisamos de uma reforma penal profunda, que teria como capítulo central a reformulação da política de drogas. Não existe coragem para isso. Enquanto não enfrentarmos a questão da descriminalização das drogas, nós não teremos possibilidade de caminhar neste país", afirma o embaixador José Viegas Filho, ex-ministro da Defesa do governo Lula.

"A política de drogas que nós temos hoje é a garantia do monopólio dos bandidos no comércio de drogas",  O diplomata Viegas Filho tem profundo conhecimento sobre as organizações latinoamericanas de narcotráfico. Para ele, uma solução só poderia ser efetiva se a política de segurança, a política de drogas e de direitos humanos se congregassem.

Sistema penitenciário

Quando anunciou a intervenção federal, o presidente Michel Temer disse que atuaria nos presídios. "Nossos presídios não serão mais escritórios de bandidos", afirmou. Mas não explicou como pretende chegar a esse objetivo, uma vez que o sistema penitenciário está absolutamente lotado, com o dobro de presos para a sua capacidade. Para os participantes do encontro, os presos são tratados "como animais da pior espécie".

Melhorar a situação dos presídios também passa, necessariamente, por intervir na política de drogas.

"Ao meu ver tudo isso é um palavrório. Se ele quiser terminar com o crime organizado, tem que fazer uma reforma no serviço penal brasileiro. A política de drogas é um desastre. É fundamental a descriminalização da droga. Não acredito que isso seja possível por parte do poder executivo e nem o Congresso Nacional aceitaria uma posição dessa jogando para as arquibancadas. Não têm interesse em qualquer ideia liberalizante", afirma José Carlos Dias.

Reforma da Previdência

Em entrevista na manha de quinta-feira (1), Temer disse que pode suspender a intervenção entre setembro e outubro deste ano para dar tempo de votar a reforma da previdência. "Se ele tivesse tanto empenho na reforma da previdência, não teria decretado uma intervenção federal. Isso aí é uma jogada do Michel", diz o ex-minstro José Carlos Dias.

Os participantes da reunião sobre a intervenção têm grande experiência com políticas públicas. Todos atuaram em diferentes instâncias de governo. Apesar de estarem preocupados com o "abismo profundo" em que o Brasil pode se afundar, apontam a reação da sociedade civil como uma saída para garantir direitos – e a exigência de mudanças estruturais na política de drogas, no sistema de Justiça e nas políciais como uma pauta fundamental das eleições presidenciais de 2018.

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Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.